China, Rússia e Turquia: os atores que é preciso ter em conta no novo Afeganistão

Nem Pequim nem Moscovo tiraram os diplomatas de Cabul, após a chegada dos talibãs, e apostam na estabilidade. Ancara tinha planos para garantir a segurança do aeroporto e está preocupada com os refugiados.
Publicado a
Atualizado a

A tomada de poder no Afeganistão por parte dos talibãs representa "uma nova oportunidade" para China, Rússia e Turquia ampliarem a sua influência na Ásia Central "em detrimento do Ocidente", disse nesta semana o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell. Já a Itália defendeu, na reunião de preparação da cimeira virtual extraordinária de chefes de Estado do G7 da próxima semana, que deve também haver uma reunião do G20 (ao qual preside), sendo importante coordenar as posições dos sete países mais industrializados com mais parceiros importantes, nomeadamente China, Rússia e Turquia. Mas, afinal, o que têm estes três países a ganhar ou a perder com os talibãs?

Pequim e Moscovo, que quando os talibãs estiveram no poder entre 1996 e 2001 não reconheceram o seu regime, têm vindo a acelerar os contactos com o grupo, nomeadamente desde que Washington anunciou que pretendia sair do Afeganistão. A retirada militar, 20 anos após a invasão, abriu o caminho para o desmoronar do governo de Cabul, no culminar da ofensiva dos talibãs que em dez dias conquistaram quase todas as 34 províncias do país.

Mas apesar de se poderem congratular com o revés do rival norte-americano, nem China nem Rússia estão interessadas num cenário de instabilidade ou na possibilidade de o Afeganistão se tornar num porto de abrigo para o terrorismo islamita. Já Ancara olha com preocupação para o fluxo de refugiados.

A 28 de junho, o chefe da diplomacia chinesa, Wang Li, recebeu o líder político dos talibãs, mullah Abdul Ghani Baradar, num encontro que foi visto como o primeiro passo para um eventual reconhecimento, por parte de Pequim, de um futuro governo dos talibãs. Um dia depois de estes terem chegado a Cabul, os chineses disseram estar preparados para aprofundar relações de "amizade e cooperação". O ponto fulcral para a China, que partilha cerca de 70 quilómetros de fronteira com o Afeganistão, é que o país não sirva como base para os extremistas uigures - minoria muçulmana que tem sido acusada de reprimir.

O interesse de Pequim passa pelas questões económicas. Um Afeganistão estável (algo que parece estar longe de acontecer) poderá fazer parte da iniciativa "Uma Faixa, Uma Rota" (a nova Rota da Seda), além de abrir as portas à exploração das riquezas que se escondem no subsolo (desde cobre a lítio, passando por terras-raras), avaliada em três biliões de dólares.

Os talibãs terão expressado, segundo uma porta-voz do Ministério das Relações Externas de Pequim, "o seu desejo de manter boas relações com a China e esperavam que Pequim faça parte da reconstrução e desenvolvimento do Afeganistão". Os diplomatas chineses continuam a trabalhar normalmente em Cabul, apesar de a maioria dos cidadãos do país já ter deixado o Afeganistão.

Além disso, para a China, o desaire norte-americano representa uma oportunidade de propaganda e de vender a ideia do declínio da imagem dos EUA. Sendo que já estão também a ser feitas, pelos media oficiais, algumas comparações entre o Afeganistão e Taiwan - que Pequim considera fazer parte do seu território, sendo a reunificação um dos seus grandes objetivos. A ideia é que os EUA não iriam sair em defesa dos aliados, caso haja uma ação militar da China. Os EUA já vieram contudo reiterar o seu compromisso com Taiwan.

Os talibãs são considerados um "grupo extremista" na Rússia e estão desde 2003 na sua lista de grupos terroristas, mas isso não impediu que o Kremlin tivesse recebido os seus representantes em várias ocasiões. Tal como Pequim, Moscovo está preocupada com o terrorismo ou que a instabilidade possa espalhar-se para os países da região, nomeadamente as antigas repúblicas soviéticas (tem vindo a reforçar a cooperação militar com Tajiquistão, Usbequistão e Turquemenistão), mas acredita que "não há alternativa aos talibãs".

O chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, disse que não há pressa em reconhecer os talibãs, mas que o grupo tem mostrado "sinais encorajadores" desde a tomada de Cabul. O embaixador russo, Dmitry Zhirnov, continua na capital afegã, não tendo planos para sair. A União Soviética invadiu o Afeganistão em 1989 e só retirou uma década depois, tendo apoiado a Aliança do Norte contra os talibãs quando estes chegaram ao poder. Mais recentemente, Moscovo foi acusada de pagar aos talibãs para matar militares norte-americanos, o que a Rússia negou.

O presidente russo, Vladimir Putin, defendeu ontem que a prioridade deve ser evitar o "colapso" do Afeganistão. "Os talibãs controlam quase todo o território. Esta é a realidade e é daqui que temos de prosseguir, prevenindo o colapso do Estado afegão", indicou, criticando a "política irresponsável" de querer impor "valores externos" no país. Um recado para os EUA. Tal como a China, a Rússia também está a aproveitar a situação em questões de propaganda.

A preocupação do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, é com o fluxo de refugiados que pode chegar às suas fronteiras caso a situação do Afeganistão não seja estabilizada. Ainda há menos de um mês, Erdogan pedia aos talibãs para acabarem com a "ocupação" do Afeganistão, tendo estes respondido na mesma moeda - deixando claro que a relação não era a melhor.

A Turquia, que é um membro da NATO, tinha discutido com os EUA um plano para manter centenas de militares no país (não-combatentes), de forma a garantir a segurança do aeroporto de Cabul - em troca de apoio financeiro e logístico e talvez algum aliviar das sanções pela compra de mísseis russos. A rápida progressão dos talibãs obrigou a abandonar essa ideia, mas Erdogan quer que seja repensada.

A Turquia tem defendido também uma "transição pacífica" no Afeganistão, dizendo esperar pela formação de um governo antes de analisar se irá ou não reconhecê-lo. Erdogan elogiou as "declarações moderadas" que têm sido feitas pelos talibãs, dizendo-se aberto a "cooperar" com eles.

Os dois inimigos têm interesses opostos no Afeganistão e a vitória dos talibãs, que nasceram no Paquistão e encontraram neste país uma linha de apoio vital, é uma má notícia para a Índia. Esta nas últimas décadas gastou milhões em projetos de investimento e de ajuda ao desenvolvimento no apoio ao governo de Cabul. Ainda assim, Nova Deli abriu canais de comunicação com os talibãs.

O Paquistão (um de três países que reconheceram o anterior governo talibã) tem tido uma relação de conveniência com o grupo - no meio da sua rivalidade com a Índia. Mas enfrenta o problema dos "talibãs bons e talibãs maus" e vê com preocupação o apoio que o novo governo possa dar aos talibãs paquistaneses - que querem derrubar Islamabad.

susana.f.salvador@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt