Chernihiv. A uma hora e meia de tanque da Rússia
Chernihiv fica no norte da Ucrânia a 70 km da Bielorrússia e a 100 da Federação Russa, ou como se diz por aqui a uma hora e meia de tanque. Parte da grande coluna de militares russos que se dirigiu para Kiev passou por aqui, entrando sobretudo pela estrada P13, que em troços já perto da cidade, tem crateras de quatro metros de profundidade causadas por bombas da força aérea, rockets, mísseis e artilharia. Aqui toda magnitude bélica foi usada sem qualquer pudor. A própria estrada tornou-se um campo de batalha que invadiu a cidade até ao seu centro, onde se veem tanques e outros veículos militares destruídos. Nesta estrada, a zona de Novoselivka parece que foi apagada do mapa tal é a magnitude da destruição, que depois continua para a Rua Shevshenko onde em algumas zonas não resta pedra sobre pedra, tudo é estilhaço.
Para além da magnitude do confronto, a primeira coisa que salta à vista em Chernihiv é a quantidade de prédios totalmente destruídos em vários pontos da cidade num esquema aparentemente aleatório. "Era perigoso sair de casa e ir comprar pão", afirma Olena de 39 anos, que perdeu a sua casa na rua Viacheslava Chornovola. Um prédio novo de 17 andares. "No dia 3 de março, pela manhã, lançaram pelo menos oito bombas daquelas pesadas", as FAB-500. "Aqui ninguém morreu por sorte", conta Oleksandr Gonchar, de 53 anos, que comprou a casa com as economias que tinha dos seis anos em que trabalhou no Afeganistão como tradutor de russo. "Usei esta casa dois anos", explica desolado. "Estamos todos vivos porque estávamos a dormir já nas caves do prédio", explica Olena.
Nos prédios ao lado, onde fica também uma farmácia que nesse dia tinha várias pessoas à espera numa fila e o Hospital de Cardiologia, morreram pelo menos 59 pessoas vítimas diretas deste ataque. "Esta zona da cidade nunca tinha sido atacada até então. Não estávamos à espera", afirma Olena. E foi esse aleatório e o isolamento que espalhou o terror e o medo pelos seus habitantes.
A cidade esteve cercada por 39 dias pelas tropas russas e em isolamento quase total porque todas as pontes foram destruídas por um dos exércitos. O confronto foi feroz e visou sobretudo alvos civis provocando a morte de 700 pessoas diretamente pela guerra, a um ritmo médio de 50 pessoas por dia. É impossível perceber olhando para as ruas agora desertas mas que começam a ter mercados abertos, crianças a brincar, habitantes a passear os cães. As tropas russas anunciaram a saída a 29 de março e saíram na totalidade uma semana depois.
Mas durante o cerco não foi assim. Muitas partes da cidade estavam sem luz, gás e água há semanas. O sinal de telemóvel era intermitente. "No centro de Chernihiv não era muito assustador porque as bombas não chegavam até nós. Nos arredores da cidade era muito pior e foi muito assustador quando era bombardeado," afirma Nastya, de 18 anos, que nunca saiu da cidade. "O Hotel Ukrayna está em pé mas destruído, vai continuar assim até ao fim. Como a nossa Ucrânia ficará de pé até ao fim. Estamos a lutar pela nossa liberdade". Nastya acrescenta: "Grande parte dos mísseis atingiram os arredores da cidade. Mas não foi suficiente para destruir toda a beleza da nossa cidade", relata por fim com um sorriso e olhos azuis faiscantes.
A destruição na cidade é tal que até o cemitério Yatsevo, onde há militares sepultados, foi atacado e a igreja destruída. Há campas de granito totalmente fragmentadas. "Claro que não podíamos fazer ali os funerais porque havia fogo cruzado constante, decidimos começar a enterrar as pessoas noutro local, o parque Yalivshchyna, junto ao centro comercial Hollywood", afirma o presidente da câmara, Vladyslav Atroshenko. "Escolhi ficar na cidade apesar da situação muito complicada. Muita gente saiu e nem os serviços era possível assegurar, mas eu escolhi ficar e se necessário morrer pela cidade", afirma este homem calmo de estatura média. A cidade ficou reduzida a cerca de 180 mil habitantes dos 285 mil que tinha antes da invasão.
"Eu estive na cidade quase sempre e só fui para abrigo duas vezes. Na segunda fez que fui, foi quando fui visitar os meus pais que já não via há algum tempo e não era possível comunicar por telefone. Fui ter com eles ao Zaz Microrayon onde moram. Lembro-me que a minha mãe estava a picar cebolas para o jantar e as sirenes começaram a tocar. E a minha mãe decidiu ignorar, mas cerca de três minutos depois comecei a ouvir explosões e estavam muito perto." conta Ira Hosia de 25 anos. "Tive que lhe dizer para irmos mesmo para um abrigo ali perto. E corremos. Quando entrámos já estava a haver explosões mesmo ao nosso lado. Uma rapariga que entrou depois de nós no abrigo tinha a perna em sangue. A ferida era enorme. Conseguimos trazê-la para dentro mas ninguém conseguiu parar o sangue da perna. Um dos rapazes no abrigo foi lá fora tentar pedir ajuda e conseguiu falar com militares que vieram ao abrigo cerca de 15 minutos depois mas já era tarde".
Ira esteve sempre a segurar na mão de Tatiana até ao último suspiro. Não se conheciam até aquele dia. Tatiana tinha 28 anos. Hoje quando fui ao cemitério construído no último mês tentei encontrar o seu nome nas centenas de placas metálicas recentemente enterradas na terra ainda húmida da paisagem que se roubou às bétulas ao ritmo de retroescavadora. Não encontrei a placa de Tatiana. Mas encontrei cinco Tatianas, de idades diferentes. O terror da guerra nesta cidade viveu-se intensamente durante os 39 dias de cerco e o que pesa mais é o enorme silêncio que permanece entre os vivos.