O presidente do Conselho Europeu.
O presidente do Conselho Europeu.Pedro Granadeiro/Global Imagens

Charles Michel: “Se acreditássemos nas sondagens, não teria havido Brexit e Trump não teria sido presidente dos EUA”

Numa passagem pelo Porto, para participar numa cimeira da organização Concordia, o presidente do Conselho Europeu falou ao DN do recuo na sua candidatura ao Parlamento Europeu, da tarefa de lidar com 27 personalidades na reunião de líderes, do apoio à Ucrânia e do desafio do crescimento da extrema-direita.
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Tinha anunciado a sua candidatura às eleições europeias, mas depois recuou. Ficou desapontado por ter que abandonar a corrida? 
Não fiquei desapontado, na medida em que sou realista. E quando tomei a decisão de me candidatar a estas eleições, foi uma escolha muito sincera, porque tinha a impressão de que tinha a oportunidade de desempenhar um papel no debate democrático sobre o futuro da União Europeia (UE). Mas apercebi-me rapidamente de que esta decisão foi usada por alguns para tentarem enfraquecer o Conselho Europeu e nestes tempos difíceis quis proteger o Conselho. Foi por isso que decidi cumprir o meu trabalho.

Não foi porque ninguém queria que o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, assumisse a presidência do Conselho Europeu durante a presidência húngara da UE, no segundo semestre do ano?
Não, isso foi uma desculpa usada por aqueles que não queriam que eu participasse na campanha, porque havia muitas opções possíveis. É suposto nós tomarmos uma decisão até ao final de junho. É o nosso dever decidir. O meu mandato é suposto acabar em novembro, mas, de facto, o verão é um período de transição. Por isso era possível para o meu sucessor assumir funções mais cedo e havia várias opções. Isto foi uma desculpa usada e abusada por aqueles que optaram por desenvolver argumentos injustos, não para me atacar, mas provavelmente para tentar minar a importância do Conselho Europeu, que é responsável pela transição institucional. Porque nas próximas semanas há duas importantes decisões que temos de tomar. A primeira é a agenda estratégica, e sinto-me confiante porque trabalhámos muitos meses nesse tópico com o envolvimento pessoal dos líderes. E depois precisamos de escolher a equipa que ficará responsável pelo próximo ciclo institucional. 

Ursula von der Leyen candidata-se a um novo mandato à frente da Comissão Europeia, mas há rumores de que se poderia escolher outra pessoa, por exemplo Mario Draghi. Acha que é possível os líderes escolherem outra pessoa?
Na minha capacidade considero que sou o guardião da unidade do Conselho Europeu. A minha tarefa é garantir que o Conselho Europeu tome decisões por unanimidade, por isso não vou falar sobre nomes. Há um processo institucional e democrático. Eu tenho um papel a desempenhar, porque sou eu que lidero o Conselho Europeu. Informei os meus colegas de que vou começar, e já comecei, a consultar os líderes para preparar essas decisões que precisamos de implementar. E, claro, vamos ver o resultado das eleições europeias e quais os números, porque eles vão desempenhar um importante papel. Estou confiante de que iremos tomar uma decisão sobre as orientações para o futuro da UE ao nível do Conselho Europeu, mas precisamos de uma maioria estável no Parlamento Europeu. Espero que em linha com as prioridades do Conselho, consistente com essas mesmas prioridades. Este é o processo e temos que fazer de tudo, como é nosso dever, para tomar uma decisão até ao final de junho. Para a continuidade da UE é importante essa decisão até ao final do mês e farei tudo para a tornar possível. 

Charles Michel - Presidente do Conselho Europeu
(Pedro Granadeiro / Global Imagens)

Como é trabalhar com 27 personalidades e políticas diferentes no Conselho Europeu?
É muito empolgante a nível intelectual e a nível político, mas requer muito esforço político. Os líderes têm diferentes sensibilidades, têm os seus pontos de partida, as suas opiniões sobre os desafios que precisamos de enfrentar, o que é legítimo, e a minha tarefa é, em primeiro lugar, ouvir ativamente todos eles. E tentei desenvolver este método, porque ouvir ativamente e tendo em conta os detalhes, sem perder o panorama geral, é a melhor forma de estar numa posição onde posso fazer propostas para tomar decisões e conseguir compromissos. E se há algo de que me orgulho muito é do facto de, desde que sou presidente do Conselho Europeu, ter visto que o texto que ponho em cima da mesa umas horas antes da reunião dos líderes e o resultado dessas reuniões serem muito semelhantes. A diferença é mínima, o que mostra que há uma preparação profunda e que tentámos gerir e ter em conta as várias sensibilidades para podermos tomar resoluções corajosas. Ninguém pode duvidar de que tomámos decisões corajosas nos últimos cinco anos e que eram as necessárias. E por causa da boa preparação, do envolvimento dos líderes e das suas equipas, conseguimos estar unidos, incluindo em tópicos que são controversos ou que são difíceis. 

E há espaço de manobra dos líderes? Porque parece que, na sociedade em geral, assistimos a um confronto cada vez mais de extremos, onde não parece haver espaço para o compromisso. Naquela sala existe?
Os resultados falam por si, porque a cada Conselho Europeu tomamos determinadas resoluções. Nunca aconteceu termos um encontro sem chegarmos a uma decisão. Isto é uma indicação clara de que, apesar das diferentes sensibilidades, percebemos que existe um valor acrescentado em trabalharmos juntos e em cooperarmos para chegarmos a visões conjuntas. Nós enfrentámos a covid-19, a guerra contra a Ucrânia e as consequências dessa guerra e podemos ver que em todos esses assuntos, sistematicamente, definimos o tom no Conselho Europeu. E o que decidimos no Conselho Europeu é a base da nossa abordagem estratégica em todos os campos possíveis.

Falando da guerra na Ucrânia, vimos a Bélgica, Espanha e Portugal anunciarem uma série de medidas de apoio militar concreto à Ucrânia. Acha que são suficientes?
Saliento duas coisas. Este é outro exemplo muito poderoso que mostra como o Conselho Europeu desempenha um papel crucial, na medida em que nas reuniões que tivemos em Bruxelas nas últimas semanas, nos últimos meses, decidimos encorajar todos os Estados-membros a serem concisos e muito operacionais. O que eles precisam na Ucrânia não são mais comunicados. O que eles precisam é de mais mísseis, de mais munições, de mais sistemas de defesa aérea. Isso é o que eles precisam agora, não daqui a dois anos. Agora. E tivemos um momento de verdade no último Conselho Europeu quando, junto com outros, encorajei os líderes a voltarem às suas capitais, a reunirem-se de imediato com os responsáveis da defesa e a olharem de uma forma muito concreta para o que podiam fazer para ajudar a Ucrânia neste momento. Estou muito orgulhoso por ver que nas semanas seguintes a esta reunião muitos Estados-membros decidiram formalizar o seu apoio à Ucrânia. Isto são boas notícias. Falei com o presidente Zelensky antes de vir a Portugal e discutimos o assunto. Estamos a trabalhar também na preparação da cimeira que irá ter lugar na Suíça, que apoiamos e ajudamos a organizar. Tentamos convencer os líderes a vir de fora da Europa para estarem presentes, o que é fundamental, porque sabemos que não podemos deixar a Rússia ganhar. Temos que defender os nossos valores e temos de apoiar a Ucrânia. 

No próximo semestre será a presidência húngara da UE. O facto de se terem pedido medidas concretas agora tem algo a ver com o facto de, nesses seis meses, a Ucrânia não ser prioridade, devido à posição da Hungria?
Essa não é a minha impressão. Estou confiante, porque as decisões fundamentais já estão tomadas: sanções contra a Rússia, apoio financeiro à Ucrânia, equipamento militar para a Ucrânia. E estamos a implementar o que já decidimos a nível de estatuto de país candidato da Ucrânia. Este é o primeiro ponto. O segundo é que estou seguro de que a presidência húngara se vai focar num ponto que é uma prioridade para o desenvolvimento económico dentro da UE. Tivemos um encontro com Enrico Letta depois da publicação do seu relatório, para o qual houve um amplo apoio. E estou muito satisfeito porque Viktor Orbán deixou claro que irá trabalhar muito no follow-up desse relatório. Isso é importante porque, se queremos ser mais fortes no campo da defesa, da segurança, no apoio aos nossos parceiros e amigos, temos de ter uma base económica mais forte. E a verdade é que o mercado único foi negligenciado nos últimos anos, o que é um problema. Precisamos  de discussões corajosas no campo do mercado único e da união dos mercados de capitais. 

Então vão focar-se nesse tema e não tanto na Ucrânia...
Temos que implementar e estar constantemente a avaliar o que é preciso fazer. Mas existe um direito de veto no Conselho Europeu, pelo que cada Estado-membro pode decidir se quer bloquear esta ou aquela decisão. No entanto, apesar desse direito de veto, conseguimos tomar decisões desde o primeiro dia. Quando a guerra foi lançada pela Rússia, conseguimos imediatamente tomar providências por unanimidade. Às vezes há comentários na imprensa com dúvidas muito legítimas, mas o que conta para mim são as decisões que assumimos, quais são os factos e os números. E aqui é muito claro. Os Estados Unidos têm enormes dificuldades em tomar decisões no Congresso, e até nem precisam de unanimidade, precisam de uma maioria... Nós precisamos de unanimidade, mas conseguimos tomar resoluções por unanimidade e muito rapidamente.

No Conselho Europeu haverá em breve um novo primeiro-ministro neerlandês, da coligação liderada pela extrema-direita. Está a UE preparada para lidar com mais uma voz extremista na sala?
Quero ser realista e racional. Teremos de facto ocasião de reunir com a nova equipa, com o novo primeiro-ministro, e vamos preparar a cooperação e a coordenação com eles, porque, gostemos ou não, temos instituições democráticas e isso significa que o governo que tem legitimidade no seu país é o que tem responsabilidade na mesa do Conselho Europeu, portanto vamos trabalhar com eles.

Mas também no Parlamento Europeu as sondagens apontam para um forte crescimento da extrema-direita. Apoia a ideia de isolar esses partidos?
Em primeiro lugar, e peço desculpas por ter de dizer isto, mas se tivéssemos acreditado nas sondagens, não teria havido Brexit e Donald Trump não teria sido presidente dos EUA. E posso dar muitos outros exemplos. Dito isto, vamos ver qual será o resultado das europeias, mas mantendo a calma, vamos lutar politicamente para defender uma UE corajosa e que defenda os seus interesses e valores. Esse é o primeiro elemento, na medida em que precisamos de uma certa sensatez neste debate político. Em segundo lugar, vamos ver quais irão ser os números no Parlamento Europeu. Eu ainda estou confiante de que será possível construir uma maioria estável a favor do apoio à Ucrânia, a favor do apoio aos princípios democráticos e aos valores europeus e em consonância com o fortalecimento da base económica da UE. Estes são os princípios essenciais pelos quais temos que lutar.

Mesmo ficando dependentes dos votos da extrema-direita...
Ainda acho que não iremos depender desses votos. 

Penso que o medo é a normalização dos partidos de extrema-direita na UE. É um pouco como a história da rã que salta para fora da panela quando é posta em água a ferver, mas se a água está fria e começa a aquecer não dá conta. Será que não estamos nessa situação e perto de a água começar a ferver?
Eu explico a minha resposta, porque de facto a nível da UE há várias realidades em termos do conceito do “corredor sanitário” e nem todos os Estados-membros têm a mesma interpretação das mesmas realidades. Isto também se passa porque temos várias realidades institucionais, na medida em que em alguns países há sistemas de coligação, noutros há outros sistemas. É difícil sumarizar este debate em duas frases e é por isso que acho que temos que nos focar no programa, no projeto e em quem são aqueles que estão preparados para apoiar o programa, pois os pilares do problema são bem conhecidos. É tarefa do Conselho Europeu decidir sobre esses pilares. E vou nomear três desses pilares: valores e princípios democráticos; ambição e crescimento económico e investimento e competitividade, e o terceiro ponto é segurança e defesa. Aqui precisamos de um novo paradigma e de mais ambição a nível europeu. E há um nova tendência dominante no Conselho Europeu em comparação com o que existia há alguns anos. Podemos ver que uma grande maioria dos líderes está convencida de que, se queremos ser mais influentes, temos que investir mais em defesa e investir de uma forma coordenada e menos fragmentada tanto na defesa como na segurança.

Para terminar, em relação ao facto de o nome do ex-primeiro-ministro português António Costa estar a ser apontado para lhe suceder, acha que tem possibilidades?
Como já lhe disse, sou responsável pela unidade do Conselho Europeu e não tenho intenção de fazer qualquer comentário sobre possíveis nomes. 

E em relação ao seu futuro? Vê-se de novo como primeiro-ministro belga? Há eleições agora...
Como sabe, não sou candidato.

Mas o seu nome pode ser sugerido mais tarde...
Só tenho uma ambição, que é cumprir a minha tarefa até ao último dia. Há muitos desafios à nossa frente e depois vamos ver. Não tenho ambição pessoal e a única prioridade para mim é garantir que, até ao último dia, consigo ajudar o Conselho Europeu a tomar decisões unido nestes tempos desafiadores. É extremamente importante que este órgão funcione bem.

susana.f.salvador@dn.pt 

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