A papoila, símbolo das comemorações dos militares mortos na I Guerra Mundial, em pano de fundo do britânico Brett Savill e do belga Serge Stroobants (à direita).
A papoila, símbolo das comemorações dos militares mortos na I Guerra Mundial, em pano de fundo do britânico Brett Savill e do belga Serge Stroobants (à direita).LEONARDO NEGRÃO/GLOBAL IMAGENS

Brett Savill e Serge Stroobants: “É muito mais difícil construir a paz do que perdê-la”

Em Portugal para aprofundar projetos com a sociedade civil, o diretor de operações e o diretor para a Europa do grupo de reflexão australiano Instituto para a Economia e Paz levantaram um pouco o véu sobre o próximo Índice Global da Paz, a publicar em meados do mês.
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Como é que medem a importância do Índice Global da Paz?
Brett Savill: O Instituto pensa no impacto, e o impacto vem, antes de mais, da consciencialização. Por isso, medimos o número de cursos universitários que o ensinam. Medimos o número de atos legislativos em todo o mundo que o utilizam. Medimos quantas pessoas acedem aos nossos relatórios e quantos artigos são escritos sobre o trabalho que fazemos. E depois, em termos do trabalho específico que fazemos com organizações individuais, medimos o quanto elas o utilizam.

Mas considera existir um impacto crescente?
Bem, estamos numa situação triste. O mundo está a tornar-se menos pacífico, por isso a mensagem é cada vez mais importante. Vemos que os downloads [do relatório], as referências a artigos de notícias, as referências em publicações académicas aumentam todos os anos, por isso sim. E penso que isso se deve, em parte, ao facto de estarmos a fazer um bom trabalho, mas também porque é muito mais relevante agora, uma vez que o mundo está a tornar-se menos pacífico de ano para ano.

Em sentido oposto, qual é o melhor exemplo de pacificação de um país ou de uma região nas últimas décadas?
Temos a paz negativa, que é a ausência de violência, e a paz positiva, que são as condições em que a sociedade humana prospera. Durante muitos anos, o número um foi a Islândia. É um país muito pequeno, o que torna as coisas um pouco mais fáceis. Mas o que é invulgar na Islândia é que, dadas as condições muito duras em que vivem, há um enorme sentido de pertença e de partilha, que não se vê em países maiores. Historicamente, na Islândia, se alguém vai dar um passeio e há uma tempestade, as portas são deixadas abertas, e as pessoas sentem-se agradadas por alguém entrar e se abrigar da tempestade. É uma sociedade invulgarmente aberta. O que descobrimos é que quando se tem esta paz positiva elevada, recupera-se muito mais rapidamente de uma catástrofe natural ou de uma catástrofe provocada pelo homem. No caso da Islândia, o colapso do sistema bancário foi horrível. Mas a sociedade recuperou muito rapidamente devido a esta paz positiva.
Serge Stroobants: Nos 17 anos em que o índice tem sido produzido houve subidas significativas. O Butão é um bom exemplo de um país que subiu constantemente a escada do Índice Global da Paz e que se tornou efetivamente cada vez mais pacífico. O Índice Global da Paz analisa 23 indicadores. Analisamos a implicação em conflitos, internos e externos. Analisamos a proteção e a segurança no seio da sociedade. Depois, analisamos os níveis de militarização. É um retrato do que está a acontecer na sociedade. Quando a classificação é feita, a questão é: o que fazer em relação a essa classificação? Como se pode melhorar? É aqui que entra em ação o conceito de paz positiva, que analisa de forma sistémica as estruturas, as instituições e as atitudes que devem ser postas em prática para criar mais resiliência e sociedades mais pacíficas. É aqui que é necessário fazer o investimento para se melhorar no Índice Global da Paz. Também vemos as tendências a mudar ao longo do tempo. Penso que uma das mudanças de tendência mais impressionantes ao longo do tempo é, de facto, olhar para os níveis de militarização. Ao longo dos últimos 15 anos, verificámos que o nível de conflito, a implicação do conflito, teve um impacto negativo nos níveis de paz em todo o mundo, com um aumento de quase 5%, impulsionado pelo conflito. A segurança e a proteção mantiveram-se ao mesmo nível, mas assistimos a uma inversão de tendência, há dois ou três anos, no investimento nas forças armadas, depois de durante uma década se registar uma diminuição do investimento. 

Brett Savill: “Portugal é um caso de estudo interessante. Se olharmos para os países com melhor desempenho, todos são ricos. Mas Portugal ocupa o sétimo lugar em termos de índice de paz positiva, e esse índice é muito superior ao seu PIB.” (Leonardo Negrão / Global Imagens)

O investimento dos países da NATO em armas e munições reflete-se de alguma forma no índice?
Claro que está relacionado com o compromisso de 2% do PIB para os países da NATO. E quando a NATO diz que o aumento é de 2%, na realidade é um aumento de 7% do dinheiro que é gasto nas forças armadas. Mas é também uma consequência da nova ordem mundial em que vivemos, que é muito mais competitiva no que diz respeito ao uso das forças armadas, e está também, naturalmente, relacionada com mais conflitos, mais militarismo, mais necessidade de contenção da violência, maior investimento nas forças de segurança, internas e externas, ou seja, forças militares e policiais. E vemos isso também no Índice Global da Paz. Os países que estão no topo do índice, como Portugal, estão sempre no top 10, e parabéns por isso. Mas é uma democracia liberal ocidental, pequenos Estados como o meu país, a Bélgica, que não têm uma indústria de defesa e não são afetados por todas estas revoluções geopolíticas. Por isso, esses países estarão sempre no topo do índice. Quando se trata de um país maior, com mais implicações geopolíticas, com uma indústria de defesa, é lógico que um maior investimento nesta área o fará descer no índice, uma vez que se trata de um dos três principais pilares de indicadores.
Brett Savill: Portanto, se pensarmos na paz como a ausência de violência e a ausência de ameaça de violência, se tivermos de gastar mais em segurança interna ou mais em segurança externa, isso indica claramente que existe uma ameaça. Portugal é um caso de estudo interessante. Se olharmos para os países com melhor desempenho, todos eles são ricos. Mas, na verdade, Portugal ocupa o sétimo lugar em termos de índice de paz positiva, e esse índice é muito superior ao seu PIB. Portanto, Portugal está a fazer alguma coisa bem. Não estamos a dizer isto apenas porque sim. Mas há que reconhecer o mérito onde ele existe.

Deixe-me insistir, porque a Islândia não saiu de uma guerra. Há algum exemplo positivo de pacificação? 
Serge Stroobants: Timor-Leste, penso que é o exemplo das últimas décadas, em que se entrou realmente no conflito, na transformação do conflito, e depois saiu-se dele e encontrou-se uma boa forma de começar a investir na paz positiva. E, claro, e penso que isso também tem de ser dito, é um país muito pequeno, onde os principais países começaram a investir. A Austrália, por exemplo. Podemos ter outros exemplos. Quando olhamos para o Médio Oriente, o Iraque, por exemplo, está hoje numa situação muito melhor do que há 10 anos. Também produzimos um Índice Global de Terrorismo, que analisa o impacto relativo do terrorismo, e é um dos 23 indicadores que utilizamos no Índice Global de Paz. O impacto do terrorismo neste país foi reduzido em números enormes, mais de 80% do que há cinco anos. Mas sair de um conflito e subir na escada do índice de paz é muito, muito difícil. Podemos perder os nossos níveis de paz por vezes em dois dígitos, 10, 15, 20% por ano. Construir a paz só chega com 0,1%, 0,2% por ano. É muito mais difícil construir a paz do que perdê-la e cair na armadilha da violência. A paz é algo realmente valiosa. Por isso, quando a tivermos, continuemos a investir nela e a manter os nossos níveis de paz, porque podemos perdê-los muito, muito, muito rapidamente. Talvez para responder à sua pergunta ao contrário, veja a Ucrânia. O país estava em 67.º lugar no índice de paz mundial. Em menos de dois anos, caiu para o 157.º lugar entre 163.
Brett Savill: Se usarmos o nosso modelo económico, o custo da guerra é de 17,5 biliões de dólares, o que equivale a 2 500 dólares por cada homem, mulher e criança no mundo. E isso é 10 vezes o investimento direto estrangeiro em todo o mundo. E isso é 10 vezes o montante da ajuda externa fornecida. Portanto, parte do nosso trabalho é... Existe esta frase em português? A luz do sol é o melhor desinfetante? 

Não. Mas faz sentido. 
Sim, faz sentido. Por isso, mostrem os factos e as pessoas, com sorte, tomarão a decisão certa. Ou uma decisão melhor.

Então não concorda genericamente com o velho adágio segundo o qual se quisermos viver em paz temos de nos preparar para a guerra?
Não estamos a propor que se deitem fora as armas. Acreditamos que a defesa é necessária. Acreditamos absolutamente que também é necessária alguma forma de defesa e algum tipo de segurança interna. É uma questão de saber qual é o equilíbrio correto para um determinado país num determinado estado do seu desenvolvimento.

Serge Stroobants: “Se olharmos para a região onde a maioria dos fatores estratégicos se cruzam e criam um elevado potencial de violência, a nossa atenção deve ir para a África subsariana, em especial a região do Sara.” (Leonardo Negrão / Global Imagens)


Serge Stroobants: é necessário criar sociedades em que a necessidade de segurança seja reduzida ao mínimo. Assim, o investimento que se faz na polícia, nas forças paramilitares ou nas forças armadas é reduzido ao mínimo. Dos 17,5 biliões, quase 80% desse valor é dedicado à contenção da violência. Cerca de 43-44% são destinados às forças armadas, 28-29% às forças de segurança interna e à polícia. E cerca de 17%, uma percentagem cada vez maior, são empresas militares e de segurança privadas, como a Wagner ou outras. a mensagem que queremos transmitir é a mensagem da paz positiva, de que é necessário criar ciclos virtuosos na sociedade através da paz positiva. Se tivermos níveis elevados de paz positiva, as pessoas serão mais felizes, terão níveis elevados de bem-estar, desenvolvimento económico e serão mais resistentes. Por isso, as suas frustrações e queixas serão menores, não gerando violência ou níveis de violência muito baixos e será possível investir menos na contenção da violência. E todas essas finanças e recursos económicos que não são investidos no exército ou nas forças policiais podem ser reinvestidos numa sociedade melhor e mais pacífica. Se entrarmos nesse ciclo virtuoso, a necessidade de forças de segurança, internas e externas, é muito menor. 

O Médio Oriente foi a região que mais se agravou no novo índice? Decisões institucionais, como o reconhecimento do Estado da Palestina ou deliberações do Tribunal Internacional de Justiça, podem dar um impulso decisivo para o fim ou para o abrandamento da guerra Israel-Hamas?
Brett Savill: Para responder à sua primeira pergunta, não. É a Ucrânia e a Rússia. Porque se trata de um estudo de 2023 não incorpora totalmente os últimos desenvolvimentos no Médio Oriente.
Serge Stroobants: Esta é a minha opinião pessoal: será necessário muito mais do que uma simples detenção ou um acórdão do Tribunal Internacional de Justiça para aproximar dois povos e permitir-lhes viver com dignidade. E não é só em Gaza, é na Ucrânia, é na Etiópia, que também está a produzir um grande número de vítimas anualmente. Sobre a região do Médio Oriente e Norte de África, é claro que temos visto a atenção centrada nessa região ao longo da última década, sem dúvida. Mas a ameaça da violência e a ameaça do conflito são mundiais. E se olharmos para a região onde a maioria dos fatores estratégicos se cruzam e criam um elevado potencial de violência, hoje e no futuro, então a nossa atenção deve ir para a África subsariana. Porque a África subsariana, e em especial a região do Sara, é hoje o epicentro do terrorismo e alberga 80% dos países que constituem os pontos críticos que identificamos no Relatório sobre Ameaças Ecológicas, que analisa os países mais afetados por ameaças ecológicas e com menor capacidade de resistência para as enfrentar. Pode ver-se claramente que esta é agora a região em que estão presentes e se cruzam muitos fatores estratégicos, de influência e de segurança. Por isso, se quisermos concentrar-nos nos locais onde os conflitos estão presentes neste momento, gerando elevados níveis de vítimas, e onde a situação não vai melhorar nos próximos anos, então devemos concentrar-nos na África subsariana em geral e, definitivamente, também no Sahel. 

Em meados do mês, realizar-se-á uma conferência de paz sobre a Ucrânia na Suíça. No entanto, a Rússia não irá participar. É possível lançar as sementes da paz nestas circunstâncias?
O resultado desta guerra terá de ser um acordo de paz negociado, especialmente para a Europa. Esta é novamente a minha opinião pessoal. Não creio que uma vitória de qualquer um dos lados seja muito positiva, porque haverá sempre uma situação pós-conflito em que precisaremos de ter uma relação com a Ucrânia, mas também uma relação com a Federação Russa do outro lado. A organização de uma cimeira como esta seria uma boa oportunidade para pensar estrategicamente e também para trazer à mesa as partes interessadas, como as partes interessadas não habituais. A Ucrânia quer encontrar uma solução para o conflito e não através da violência, mas através da negociação, e isso é algo que deve ser louvado. As hipóteses de sucesso, claro, se o outro ator principal não estiver presente, são muito reduzidas, mas pelo menos há uma reflexão sobre a paz no país e na região. Mas, por fim, caberá à Ucrânia e à Rússia sentarem-se à mesa das negociações e encontrarem uma solução para isso, claro, com o apoio dos aliados e da comunidade regional e global. Mas é preciso compreender o que se está a passar, é preciso voltar às causas profundas, aos geradores de conflito. Se quisermos resolver os conflitos, temos de ir ao fundo da questão e identificar o que está errado, o que levou ao conflito, e temos de ser completamente transparentes, honestos e abertos e abordar cada ponto problemático, um após o outro. É a única forma de chegar a uma paz duradoura. Se não o fizermos, se não investirmos nas coisas certas, então podemos acabar com, diria eu, um acordo de paz que não vai resolver tudo, que vai deixar algumas mágoas, alguns ressentimentos, que podem levar a outro conflito, e a mais violência no futuro.

cesar.avo@dn.pt

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