Milhares de pessoas juntaram-se em Daca para celebrar o primeiro aniversário da chamada Revolução de Julho - semanas de protestos em massa liderados por estudantes que afastaram do poder, a 5 de agosto de 2024, a primeira-ministra Sheikh Hasina, dando lugar a um governo interino liderado pelo Nobel da Paz Muhammad Yunus.Este dia de festa ficou também marcado pelo momento em que o coordenador-chefe do executivo leu a chamada Declaração de Julho, documento que “constará do cronograma da Constituição revista, tal como será elaborada pelo governo formado nas próximas eleições nacionais”. “O povo do Bangladesh expressa o seu desejo de que a revolta estudantil de 2024 receba o devido reconhecimento estatal e constitucional”, prosseguiu Yunus, que foi convidado para o seu atual cargo pelos líderes da revolta depois da fuga de Hasina para a Índia, após 15 anos no poder. A data das primeiras eleições após aquilo a que os bengalis chamam de “segunda libertação” foi também conhecida, estando previsto que se realizem em fevereiro do próximo ano, encerrando assim a incerteza da duração do governo interino. “Devemos garantir que nenhum futuro governo se torne novamente fascista. O Estado deve ser reestruturado de tal forma que qualquer sinal de fascismo, onde quer que apareça, possa ser imediatamente erradicado”, alertou o conselheiro-chefe do governo interino, chamando ainda a atenção para o facto de que “os autocratas caídos e os seus aliados egoístas continuam ativos” e apelando à unidade do país para proteger o que foi conseguido com a revolta do ano anterior. O Bangladesh é um dos países mais pobres e corruptos do mundo e a tarefa de Yunus de tentar inverter problemas precisamente como a corrupção, a burocracia sistémica, a falta de emprego e a inflação tem-se revelado mais lenta do que era esperado pelos revoltosos, dando origem a alguma frustração. “Os nossos sonhos continuam por realizar”, confessou ao New York Times Abdullah Shaleheen, um dos estudantes universitários envolvido na Revolução de Julho. Apesar desta frustração são visíveis mudanças, nomeadamente na economia, a área de formação de Muhammad Yunus, tendo sido criados programas de formação para jovens e atraído investimento estrangeiro para a criação de emprego. Ao mesmo tempo, o governo interino conseguiu negociar com os Estados Unidos tarifas de 20%, abaixo dos 35% propostos inicialmente por Donald Trump, o que beneficiará a economia do segundo maior fornecedor mundial de vestuário. “O governo interino tem muito para celebrar ao marcar o seu primeiro aniversário. Do caos que se seguiu imediatamente à saída de Hasina, conseguiu restaurar o funcionamento básico do Estado. Não foi uma tarefa fácil, dado o grau de politização do funcionalismo público e das forças de segurança durante os quinze anos de poder da Liga Awami [o partido de Sheikh Hasina]”, defendem os antigos diplomatas norte-americanos M. Osman Siddique e Jon Danilowicz numa análise no think tank Atlantic Council. Além do acordo celebrado com os EUA, o governo interino conseguiu também estabelecer uma relação cordial com a China, com Muhammad Yunus a ser recebido em Pequim pelo presidente Xi Jinping em março, naquela que foi a sua primeira visita de Estado. No mês seguinte, o Nobel da Paz encontrou-se com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, mas as relações entre os dois tradicionais aliados mantiveram-se frias - a opinião pública no Bangladesh virou-se contra a Índia neste último ano, em parte devido à sua decisão de receber Hasina, sendo que Nova Deli ainda não respondeu ao pedido de Daca para a repatriar a fim de ser julgada em pessoa.O Tribunal Internacional de Crimes, uma instituição judicial do Bangladesh criada em 2009, já deu início ao julgamento da antiga primeira-ministra e outros elementos do seu governo, tarefa dificultada pela fuga de muitos dos suspeitos. “Talvez os desafios mais difíceis que o governo interino tenha enfrentado sejam garantir a responsabilização pelos crimes cometidos no mandato de Hasina e proporcionar às vítimas do regime um certo grau de justiça. Estes crimes não se limitam aos horrores infligidos aos manifestantes em julho e agosto de 2024, documentados pelas Nações Unidas. Incluem também as numerosas execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados e outros abusos que antecederam a revolta de julho”, conforme notam Siddique e Danilowicz. .Direitos humanos e islamismoUm ano depois da revolução, a Human Rights Watch diz que o governo interino está ainda “aquém” de cumprir a sua promessa de melhorar os direitos humanos no país. “A esperança dos milhares que enfrentaram a violência letal há um ano, quando se opuseram ao governo abusivo de Sheikh Hasina, de construir uma democracia que respeite os direitos continua por realizar”, sublinhou Meenakshi Ganguly, vice-diretora da HRW para a Ásia, num relatório. No documento é referido que “parte do medo e da repressão que marcaram os 15 anos de governo da Liga Awami de Sheikh Hasina, bem como abusos como desaparecimentos forçados generalizados, parecem ter terminado (…) No entanto, o governo interino tem utilizado detenções arbitrárias para atingir alegados opositores políticos e ainda não implementou reformas sistémicas para proteger os direitos humanos”.Paralelamente, o islamismo, reprimido por Hasina, ressurgiu sob o governo de Yunus. Logo no final de agosto, vários indivíduos associados a organizações terroristas islamistas e a partidos islâmicos foram libertados - a mais polémica foi a do mufti Jashimuddin Rahmani, a principal figura do Ansar al-Islam, afiliado da Al-Qaeda.Em março, o Hizb ut Tahrir Bangladesh, considerada uma organização terrorista desde 2009, organizou nas ruas de Daca, e sem grande interferência por parte das autoridades, aquilo a que chamou de Marcha pelo Califado, exigindo a implementação da sharia como lei primária do país.“Muhammad Yunus garantiu que o extremismo não vai ressurgir no Bangladesh, mas as provas sugerem o contrário. O seu governo não está a combater o terrorismo, está a oferecer aos terroristas um escritório de esquina com vista”, critica Wahiduzzaman Noor, diplomata na embaixada do Bangladesh nos EUA até março, numa análise no Atlantic Council. Noor nota ainda que “a revolta estudantil de julho deveu muito do seu poder às mulheres na linha da frente, mas, neste renascimento fundamentalista, elas são as primeiras vítimas. As mulheres são assediadas pela forma como se vestem, castigadas por não se cobrirem e, em alguns locais, totalmente proibidas de frequentar os mercado”.As minorias religiosas enfrentam igualmente uma nova onda de violência, sendo que nem as minorias muçulmanas têm sido poupadas. De acordo com o Conselho de Unidade Cristã Hindu Budista do Bangladesh, organização sem fins lucrativos criada para proteger os direitos humanos das minorias religiosas, ocorreram 2.442 incidentes de violência contra minorias religiosas e étnicas entre 4 de agosto de 2024 e 30 de junho de 2025. “Entre eles, assassinatos, violações, vandalismo em locais de culto, desalojamentos forçados e ataques a pequenas comunidades”, pode ler-se no site desta organização. Também a Comissão dos EUA para a Liberdade Religiosa Internacional, num relatório divulgado após uma visita a Daca em maio, documentou um aumento dos ataques contra hindus, muçulmanos ahmadis e outras minorias desde a deposição de Hasina, referindo ainda que as mulheres hindus deixaram de usar bindis e pulseiras para evitar o assédio, enquanto foram destruídos pelo menos 25 templos e 20 casas hindus só este ano.Khalid Hossain, conselheiro do Ministério da Religião, declarou que “a polícia investigou exaustivamente estes incidentes e não encontrou motivos comunitários. Consideramos todos os cidadãos iguais”..À espera das eleiçõesNas últimas eleições, em janeiro 2024, a Liga Awami venceu mais uma vez, enquanto que a outra força política dominante do país, o Partido Nacionalista do Bangladesh (BNP), optou pelo boicote. Agora, muitos militantes do BNP e o seu líder, a ex-primeira-ministra Khaleda Zia, detidos no anterior regime, estão já em liberdade e a prepararem-se para as eleições de fevereiro. Pelo contrário, a Liga Awami (AL) provavelmente não estará nos boletins de voto, pois o governo interino proibiu as suas atividades políticas e dos seus militantes, estando também o seu registo como partido suspenso pela comissão eleitoral. Entre as dezenas de partidos no Bangladesh existem outros a ter em conta, como o Jamaat-e-Islami - a maior força política islamista do país e que já fez parte de uma coligação liderada pelo BNP - que tinha sido proibido há mais de dez anos por Hasani, tendo recuperado a legalidade há um ano. Nahid Islam, um dos líderes da revolta estudantil, criou o Partido Nacional do Cidadão em fevereiro, depois de abandonar o governo de Yunus, tendo começado há cerca de um mês uma espécie de digressão nacional. “O que começou como uma revolta promissora, namorisca agora perigosamente com a possibilidade de se tornar aquilo que procurava derrubar, um sistema em que o poder, e não os princípios, determina quem participa na democracia. O caminho a seguir é claro, ainda que difícil: realizar eleições em breve, torná-las inclusivas, deixar que a justiça vise os indivíduos em vez dos partidos e permitir que os próprios bengaleses escolham o seu futuro. Qualquer coisa menos transformaria a sua primavera democrática num inverno autoritário, com um breve e ilusório degelo entre eles”, defende Wahiduzzaman Noor.