Há um ano esfumou-se o sonho de um Médio Oriente em paz, apresentado dias antes na Assembleia Geral da ONU por Benjamin Netanyahu. Talvez porque a paz que o primeiro-ministro israelita visava ignorava a Palestina e partia do princípio que Israel iria normalizar as relações com a Arábia Saudita, encostando o Irão às cordas. Talvez porque se tratava de uma distração quando os israelitas saíam à rua em ira contra a tentativa de reforma judicial feita à medida do homem com maior longevidade na chefia do governo israelita, a verdade é que os ataques de 7 de outubro inviabilizaram por completo a intenção manifestada perante os restantes países. A guerra começou na Faixa de Gaza e hoje multiplicou-se para território libanês e iemenita em resultado dos ataques do Hezbollah e dos houthis. Mas também da pouca vontade demonstrada por Netanyahu em alcançar um acordo de cessar-fogo, como esteve para ser assinado em julho, para depois passar ao próximo capítulo e ter de responder pelo fracasso de segurança do 7 de outubro, bem como pelos antigos processos judiciais que tem à perna. No início de julho, quando especialistas falavam das três frentes em que Israel agia (Gaza, sul do Líbano e Iémen), o primeiro-ministro disse outra coisa. “O Irão está a combater-nos numa guerra de sete frentes”, afirmou ao receber militares judeus reformados dos EUA. Disse também: “O seu objetivo [Irão] é ter uma ofensiva terrestre combinada a partir de várias frentes, juntamente com um bombardeamento combinado de mísseis.” .Faixa de Gaza.Palestinianos em euforia por capturarem veículo militar israelita no dia 7 de outubro de 2023. EPA/HAITHAM IMAD.Os ataques executados por grupos armados liderados pelo Hamas mataram 1189 pessoas e levaram 251 pessoas de várias nacionalidades para Gaza de território israelita, das quais 97 continuam por libertar. Israel diz que deste número pelo menos 33 estão mortas. Em consequência, Netanyahu ensaiou um governo de unidade nacional, criou um gabinete de guerra e dirigiu uma resposta militar que incluiu a invasão terrestre ao enclave governado pelo Hamas. Os objetivos enunciados no início passavam pela eliminação do ameaça terrorista a partir de Gaza, destruir as capacidades militares e governativas do movimento islamista, e libertar os cativos. Ao fim de um ano, Israel matou cerca de 40 mil pessoas (segundo o Hamas); destruiu escolas, hospitais e arrasou blocos habitacionais, e estrangulou a passagem de ajuda humanitária ao ponto de peritos da ONU declararem que a “campanha de fome” é uma “forma de violência genocida”. No entanto, nenhuma das metas foi alcançada e inclusive o seu maior aliado, os EUA, criticou o facto de Telavive não ter um plano sobre o pós-guerra - tendo antes apresentado uma nova exigência, controlar o corredor entre Gaza e o Egito. Além disso, uma comissão da ONU concluiu existirem provas credíveis de que o Hamas e outros grupos armados palestinianos cometeram crimes de guerra, mas também encontrou provas de crimes de guerra por parte de Israel. Em paralelo, corre um processo iniciado pela África do Sul e apoiado por outros países no Tribunal Internacional de Justiça que acusa Israel de cometer genocídio. .Cisjordânia.As tensões subiram a pique no território a que Netanyahu chama de Judeia e Samaria e que os organismos internacionais chamam de territórios ocupados, Jerusalém Oriental incluída. Telavive apertou o cerco aos habitantes, ao retirar licenças de trabalho em Israel a 80 mil palestinianos. Além disso, atacou repetidamente os militantes dos grupos armados com operações terrestres, mas também com dezenas de ataques aéreos, o último dos quais atingiu um café em Tulkarem e matou 18 pessoas, quatro delas da mesma família. Desde 7 de outubro, dizem as autoridades palestinianas, mais de 700 pessoas foram mortas na Cisjordânia e 5 mil foram deslocadas devido às ações violentas dos colonizadores ou a demolições do exército israelita. A violência tem dois sentidos: cinco membros das forças de segurança morreram em ação na Cisjordânia e 40 civis em ataques em Israel e na Cisjordânia, sete deles num tiroteio perpetrado num elétrico em Telavive, na terça-feira passada. .Líbano.Em meados de setembro, o primeiro-ministro israelita acrescentou aos três objetivos delineados para Gaza, um quarto: o regresso dos habitantes do norte de Israel, obrigados a fugir dos ataques diários do Hezbollah oriundos da fronteira libanesa. Isso significava aumentar a parada militar ao ponto de controlar a faixa de território até à margem do rio Litani contra o maior exército não estatal do mundo. Numa sequência de ações tão audaciosas quanto criticadas pelo secretário-geral das Nações Unidas e por defensores dos direitos humanos, Israel fez explodir milhares de aparelhos de comunicação de membros do movimento xiita patrocinado pelo Irão e de seguida foi liquidando os seus comandantes de topo, líder incluído (Hassan Nasrallah), enquanto bombardeava milhares de alvos. Em resultado, ao fim de duas semanas de ataques aéreos, as autoridades libanesas contam mil mortos e um milhão de deslocados, numa população de menos de seis milhões. As forças israelitas, entretanto, expandiram o seu raio de ação com uma incursão terrestre. Se ao fim de poucos dias alegaram ter morto 250 combatentes do Hezbollah, também sofreram oito baixas mortais e viram o exército libanês envolver-se pela primeira vez, ao responder a um ataque israelita que atingiu um posto e matou um soldado. .Iémen.Ataque dos houthis ao petroleiro Cordelia Moon, no Mar Vermelho. EPA/HOUTHIS MEDIA CENTER.Tal como o Hezbollah passou a lançar foguetes, mísseis e drones numa base diária para Israel a partir de 7 de outubro, também a milícia aliada do Irão, que controla a capital do Iémen e outras cidades do sul, passou a atacar das mais variadas formas dezenas de navios da marinha mercante no Mar Vermelho e no Golfo de Adem. Os Estados Unidos e outros países responderam com uma aliança naval para travar a ameaça, mas os houthis continuam a atingir alvos no mar. O Ansar Allah, grupo islamista fundado por Hussein al-Houthi, ataca também Israel com mísseis balísticos, como aquele que tinha como destino o aeroporto de Telavive quando o avião de Netanyahu aterrava. Os houthis dizem-se dispostos a entrar em guerra com Israel, apesar da distância física. .Irão.A teocracia que não reconhece Israel está por trás de todos os focos de tensão contra Telavive. É o ponto crucial do chamado eixo da resistência, patrocinando milícias xiitas no Líbano e Iraque e mantendo relações próximas com regimes de dois ramos do xiismo, o alauismo de al-Assad na Síria e o zaidismo dos houthis mo Iémen. Mas também se aproximou dos sunitas do Hamas, no que é visto como uma aliança de conveniência para combater Israel e ganhar ascendência em relação ao grande rival do mundo muçulmano, a Arábia Saudita. Em abril, em resposta ao bombardeamento ao seu consulado em Damasco, pela primeira vez a república islâmica atacou Israel de forma direta: mais de 300 mísseis e drones que foram intercetados com a ajuda de EUA, Reino Unido, França, Jordânia e Arábia Saudita. Na semana passada, ao lançar quase 200 mísseis contra alvos militares, Teerão disse ter agido em legítima defesa em resposta às mortes dos líderes do Hamas e do Hezbollah e do seu general Abbas Nilfroushan. Respondia também ao discurso de Netanyahu na ONU, no qual este apresentava a normalização das relações com Riade como o ponto de partida para uma “era brilhante de prosperidade e paz” em contraponto com uma “era negra de terror e guerra” representada pelo Irão e seus aliados. A esperada retaliação de Israel ao ataque de terça-feira passada poderá moldar todo o conflito para novas e mais perigosas formas. .Iraque.A Resistência Islâmica no Iraque, um conjunto de milícias xiitas que diz agir em solidariedade para com o Hamas, reclama ter realizado 170 ataques contra Israel em 2024, a grande maioria em setembro. Esta aliança, que inclui grupos como o Kataib Hezbollah, o Movimento Nujaba, ou o Ashab al-Kahf, tinha vindo a desferir golpes contra os militares norte-americanos quer no Iraque quer na Síria, e é a prova de vida da crescente influência iraniana no Iraque pós Saddam Hussein e pós ocupação dos Estados Unidos..Síria.Bassar al-Assad deve aos grupos armados xiitas (e a Vladimir Putin) a sua sobrevivência, no entanto não é de esperar que o seu exército - incapaz de obrigar à retirada de turcos, norte-americanos ou de eliminar os grupos islamistas que o combate - se envolva com Israel, apesar dos Montes Golã ocupados. Por outro lado, também não quer ou não pode controlar o Hezbollah e outras milícias pró-iranianas, que de forma esporádica atacam Israel através do território sírio. Telavive mostra-se mais focado em acabar com a passagem de armas para o Líbano. Avisou há dias o líder sírio, ao atingir a casa do seu irmão, o comandante Maher Assad. E na sexta-feira destruiu a principal passagem síria-libanesa, alegando ter visado um túnel utilizado pelo Hezbollah para receber armas iranianas. cesar.avo@dn.pt