Ilustração de 1986 de um ataque no espaço.
Ilustração de 1986 de um ataque no espaço.Wikicommons - domínio público

As bombas atómicas no espaço estão de volta para nos assustar

O presidente russo, Vladimir Putin, pode vir a descobrir que colocar uma arma nuclear em órbita é menos útil para a guerra do que a intimidação.
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Em 1982, o presidente Ronald Reagan ponderava o que mais tarde viria a ser conhecido como a “Guerra das Estrelas”, um plano que visava proteger a América dos mísseis soviéticos, posicionando milhares de armas no espaço. No mesmo período, enquanto jovem escritor de ciência, escrevia sobre como os raios de uma única detonação nuclear em órbita poderiam destruir frotas inteiras de estações de batalha e raios laser mortíferos. “Guerra das Estrelas: Loucura do Pentágono”, lia-se numa das manchetes.

Décadas mais tarde, tanto Reagan como a União Soviética desapareceram, mas a ansiedade provocada por uma explosão nuclear a grande altitude continua presente, reavivada mais recentemente pelos ostensivos objetivos de guerra do presidente russo Vladimir Putin. No mês passado, as agências de espionagem americanas informaram o Congresso, bem como aliados estrangeiros, que Putin poderia lançar e servir-se de uma bomba atómica no espaço capaz de desativar milhares de satélites. Presumivelmente, não só as ligações de comunicação militares e civis estariam em risco, mas também os satélites responsáveis por espionagem, monitorização do tempo, transmissão de emissões, disponibilização de mapas para telemóveis, estabelecimento de ligações à Internet e realização de dezenas de outras tarefas modernas.

A simples alegação de um tal lançamento poderá ajudar Putin a assustar os seus adversários.

“O objetivo é o mesmo que o nosso nos anos 80, com a Guerra das Estrelas”, disse Jonathan McDowell, um astrofísico que publica um relatório mensal sobre o espaço. “A intenção é assustar o outro lado.”

No entanto, segundo os analistas, trata-se de um passo difícil de imaginar em contexto de guerra efetiva, a menos que Putin queira que alguns dos seus mais importantes aliados e apoiantes enfrentem a perspetiva de uma dor indescritível.

Num estudo de 2010, cinco especialistas em energia nuclear explicaram que os astronautas atingidos pelos raios mais potentes sofreriam náuseas e vómitos durante entre duas a três horas antes de a doença por radiação os colocar perante uma “probabilidade de morte de 90%.”

Geralmente, a Estação Espacial Internacional acomoda sete astronautas: três americanos, um de outro país e, adivinhou bem, três russos. Os raios também podem transformar a estação espacial do principal aliado de Putin, a China, numa armadilha mortal. O novo posto avançado de Pequim acolhe três astronautas chineses e deverá expandir-se para receber ainda mais.

Os satélites da China, 628, segundo uma contagem recente, representariam uma vulnerabilidade adicional. Stephen M. Younger, ex-diretor dos Laboratórios Nacionais de Sandia, que contribui para a fabricação de armas nucleares dos Estados Unidos, afirmou numa entrevista que uma explosão espacial russa poderia deixar os satélites de reconhecimento da China sem visibilidade e, assim, pôr fim à principal forma de o país monitorizar a localização da frota do Pacífico da Marinha dos EUA.

“Isso não será muito bem recebido”, referiu Younger, sobre a possibilidade de Pequim perder os seus olhos no céu em tempos de guerra.

A suposta ação bombista de Putin, acrescentou, representava mais uma fanfarronice do que um plano de guerra sério. “Putin não é parvo”, afirmou.

Segundo David Wright, especialista em armas nucleares do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, a ideia por detrás das armas nucleares prende-se “em parte, com o facto de o utilizador ser dissuadido pelos danos colaterais significativos provocados a si próprio ou a outros países pelas armas.” Esta dissuasão também se poderia estender a uma bomba espacial, acrescentou, a menos que o atacante estivesse desesperado e considerasse os riscos aceitáveis.

“Seria perigoso para os próprios russos”, disse Richard L. Garwin, um físico e consultor de longa data do governo federal que contribuiu para a conceção da primeira bomba de hidrogénio do mundo.

Desde que Putin invadiu a Ucrânia, tem feito ameaças nucleares que os analistas consideram cruciais para a sua estratégia de dissuasão da intervenção por parte do Ocidente. A colocação de uma bomba nuclear em órbita violaria dois tratados fundamentais da era nuclear, assinados em 1963 e 1967, e marcaria uma grande escalada no conflito.

A 20 de fevereiro, Putin negou que tencionasse colocar uma arma nuclear em órbita. “A nossa posição é clara”, afirmou. “Sempre fomos categoricamente contra e somos contra a colocação de armas nucleares no espaço.”

No entanto, dias mais tarde, a 29 de fevereiro, no seu discurso anual sobre o estado da nação, voltou ao seu habitual discurso inflamado, alertando que o Ocidente enfrentava o risco de uma guerra nuclear. Putin identificou os Estados que ajudaram a Ucrânia a atacar o território russo. O Ocidente tem de compreender, declarou, que essa ajuda traz consigo o risco da “destruição da civilização.”

As armas nucleares em geral, e as bombas espaciais em particular, representam o oposto de precisão. São indiscriminadas, ao contrário das armas convencionais, que se caracterizam normalmente por uma precisão exata. Em 1981, quando escrevi pela primeira vez sobre armas nucleares orbitais como repórter da revista Science, referi-me ao caos do espaço exterior como o “Fator Caos.”

O fenómeno inesperado ganhou vida em julho de 1962, quando os Estados Unidos detonaram uma bomba de hidrogénio a cerca de 250 milhas (cerca de 402 quilómetros) acima do Oceano Pacífico. O céu escuro iluminou-se. No Havai, a iluminação pública apagou-se. Os satélites em órbita falharam.

O presidente John F. Kennedy, perturbado pelas surpresas técnicas, receava que a radiação resultante das explosões nucleares pudesse pôr em perigo os astronautas. Em setembro de 1962, cancelou um teste com o nome de código Urraca. A bomba de hidrogénio deveria ter sido detonada a uma altitude de mais de 800 milhas (cerca de 1 287 quilómetros), sendo a mais elevada de qualquer explosão de teste, americana ou soviética. No ano seguinte, Kennedy assinou um tratado que proibia as explosões experimentais no espaço.

Na altura, o mundo científico fazia uma distinção importante sobre as detonações espaciais, algo que não faz parte da maioria das discussões atuais. Trata-se de o facto de os efeitos das explosões atómicas serem imediatos e residuais.

As repercussões iniciais são as mais conhecidas. Os raios de uma bomba atravessam grandes distâncias e produzem relâmpagos de eletricidade nos satélites e nas redes terrestres, queimando os circuitos elétricos. Os especialistas chamam-lhes impulsos eletromagnéticos, ou IEM. Os impulsos provocaram o apagamento das luzes no Havai.

Porém, o que chamou a atenção de Kennedy foi um efeito a mais longo prazo: a forma como os detritos radioativos e as partículas carregadas de uma explosão nuclear aumentam os cinturões naturais de radiação que rodeiam a Terra. Estes cinturões são intensos, mas nada que se compare com o que se tornam quando amplificados pela radiação de uma bomba.

Os cinco especialistas nucleares autores do estudo de 2010 atribuíram essa sobrecarga dos cinturões não só aos riscos para os astronautas, mas também aos graves danos em pelo menos oito satélites, após o ensaio de julho de 1962. A perda mais famosa foi o Telstar, o primeiro satélite de comunicações do mundo.

Ao longo dos anos, comecei a preocupar-me com o facto de este tema complexo estar a ser demasiado simplificado. Os grupos marginais e os políticos mais agressivos fizeram soar o alarme sobre os ataques russos de IEM à rede elétrica do país, embora raramente tenham referido o risco para as naves espaciais e os astronautas de Moscovo.

Peter Vincent Pry, um antigo oficial da CIA, avisou num relatório de 2017 que Moscovo estava preparado para ataques surpresa com IEM que paralisariam os Estados Unidos e destruiriam os seus satélites.

Em 2019, o presidente Donald Trump ordenou o reforço das defesas IEM do país. Rick Perry, secretário da Energia, afirmou que a ordem “envia uma mensagem clara aos adversários de que os Estados Unidos levam esta ameaça a sério.”

Os especialistas em segurança nacional são conhecedores de como as armas de destruição maciça surgem em ciclos de medo que andam ao sabor dos ventos políticos. Após décadas a refletir sobre os aspetos básicos das explosões nucleares no espaço, cheguei à conclusão de que os riscos são extremamente baixos ou inexistentes, porque uma detonação, tal como McDowell, Younger, Wright, Garwin e outros defenderam, prejudicaria não só o atacado, como o atacante.

“Talvez os russos decidam que os seus astronautas têm de se sacrificar pela pátria”, disse McDowell. “Todavia, penso que Putin, por mais louco que seja, não o fará.”

Este artigo foi publicado originalmente em The New York Times 

c.2024 The New York Times Company

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