Recorda-se do momento em que soube o resultado do referendo em Timor-Leste? Recordo-me muito bem desse momento, mas digamos que correspondia às nossas expectativas..Estava convicta de que os timorenses iam votar para não ficar ligados à Indonésia e claramente pela independência? Absolutamente convicta disso. E digamos que o elemento mais poderoso no sentido de me dar esse convencimento tinha sido a esmagadora afluência dos timorenses a registar-se para o voto. Ao contrário do que tinha acontecido uns meses antes com as eleições indonésias. Nessas eleições só se foi registar quem era obrigado a registar-se, os funcionários públicos, basicamente..Nesse momento, era a chefe da secção de interesses de Portugal na Indonésia. A caminho de ser a primeira embaixadora desde a rutura de relações após a invasão de Timor pela Indonésia em 1975. Sim. Não tínhamos ainda as relações restabelecidas. Estabelecemos as relações diplomáticas no fim do ano, no fim de 1999, uma vez feito o referendo e uma vez o Parlamento indonésio tendo anulado a anexação de Timor..A sua chegada a Jacarta só é possível porque, com a queda de Suharto, Jusuf Habibie assume a presidência e finalmente abrem-se negociações com Portugal. O que é que mudou na Indonésia para que aceitasse o referendo de 30 de agosto de 1999? Foi só a mudança de presidente ou houve algo mais profundo? Foi a queda da ditadura de Suharto que trouxe a mudança. Nós sabíamos que Suharto era o grande empecilho para se discutir sequer um projeto de autonomia para Timor. Tínhamos já tentado discutir isso no quadro das negociações sob a égide do secretário-geral das Nações Unidas. E até tínhamos sentido algum interesse de alguns elementos indonésios, mas tínhamos visto que o regime não tinha abertura nenhuma nesse sentido. Quando cai Suharto, percebemos que era a grande janela de oportunidade. E percebemos porque há muitos anos, no MNE, havia uma equipa dedicada a ir seguindo as questões de Timor, e que não podia deixar de passar por todo o conhecimento e análise da realidade interna indonésia. Portanto, quando cai Suharto, em maio de 1998, nós temos a perceção que é a grande janela de oportunidade. O ministro Jaime Gama e o ministro Ali Alatas vão encontrar-se pela primeira vez no dia 5 de agosto de 1998 em Nova Iorque, já depois da queda de Suharto, e acordam que vão então finalmente discutir a possibilidade de um estatuto de autonomia para Timor. Sendo que, quanto à questão de fundo, Portugal e a Indonésia continuavam a discordar, que era a questão de se Timor-Leste já se tinha autodeterminado integrando-se na Indonésia ou se ainda tinha que exercer o seu direito à autodeterminação, escolhendo o que quer que fosse. Portanto, é nesse dia que os dois ministros concordam em passar a discutir um projeto de autonomia, que era para vigorar, por um tempo a acordar, 5, 10 ou 15 anos, e ao mesmo tempo concordam em que vão abrir secções de interesses, respetivamente, em embaixadas amigas, para ter, portanto, missões diplomáticas em cada um dos países e poderem passar a comunicar diretamente. E é nesse contexto que em novembro acertámos que as duas secções de interesses seriam abertas simultaneamente no dia 30 de janeiro de 1999. Era uma data conveniente, por causa do Ramadão, para eles, e uma data conveniente para nós, porque assim me libertava a mim do trabalho que eu tinha, que nessa altura era em Nova Iorque, na delegação no Conselho de Segurança, e estávamos a chegar ao fim do nosso mandato no Conselho de Segurança..Há esta mudança política na Indonésia, mas também há acontecimentos prévios. Ou seja, sem Portugal manter a reivindicação na ONU como potência administrante de Timor, sem a luta dos timorenses, sem o Prémio Nobel da Paz, talvez só a queda de Suharto não tivesse sido suficiente. A pressão diplomática de Portugal foi decisiva? O que foi absolutamente decisivo foi a luta dos timorenses, a resistência dos timorenses. E o ponto de viragem, em termos até da perceção internacional sobre Timor-Leste, foi o massacre de Santa Cruz, em 12 de novembro de 1991. O massacre de Santa Cruz, em Díli, é que é a viragem, incluindo para a própria opinião pública portuguesa. É quando os portugueses veem os timorenses a rezar no cemitério de Santa Cruz, e a partir daí começam a interessar-se por Timor. Porque até aí não havia pressão nenhuma da opinião pública portuguesa sobre o Governo em relação a Timor. E a partir daí começa a haver. É a partir daí que se começa a campanha internacional, que leva, por exemplo, ao Nobel do bispo Ximenes Belo e Ramos Horta em 1996, etc., etc. E que leva, assim, a que quando cai Suharto, os dois países aceitem discutir um estatuto de autonomia, no âmbito das conversações sob a égide do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Depois abrem-se as secções de interesses, como disse, acordado previamente que era para ser no dia 30 de janeiro de 1999. E no dia 27 de janeiro há uma coisa extraordinária que mudou o curso dos acontecimentos outra vez, que é o anúncio de Habibie de que pode haver um referendo. Porquê? Porque o que estava previsto era que íamos discutir a autonomia. Era a nossa perspetiva, era também a perspetiva indonésia. Mas Habibie, que era presidente interino, visto que tinha sido vice-presidente de Suharto, recebeu uma carta do primeiro-ministro da Austrália, John Howard, que estava bastante incomodado porque nós estávamos a resolver o assunto com a Indonésia. Mandou uma carta a Habibie para lhe dar as táticas para a negociação e, claro, Habibie não gosta. Ele, que interpreta um setor que era crescentemente influente na Indonésia, o setor intelectual e islâmico, faz aquele anúncio, dizendo, mas porque é que se há de ir discutir um estatuto de autonomia para vigorar um certo tempo, se podemos fazer um referendo e ver se os timorenses querem ou não este estatuto de autonomia? Muda tudo aí..Há uma convicção da liderança indonésia, de Habibie, quando aceita o referendo de que os timorenses vão votar pela integração? Sim, a maioria, mas não os militares. Os militares indonésios, que tinham muitos interesses em Timor, que era mais do que a sua coutada para ganharem galões, era também uma coutada económica importante para eles, não gostam do anúncio de Habibie. Percebem logo que aquilo muda o jogo. Há aquela história de se oferecer aos timorenses uma bicicleta e depois, quando a oferta passa a ser um Mercedes, eles mesmo que não saibam guiar, preferem o Mercedes..Portanto, os militares percebem que vão perder o referendo, mas Habibie acreditava que podia ganhar? Habibie não sabia bem, mas muitos setores da diplomacia e outros pensavam que ganhavam. Os militares percebem que vão perder e entram numa jogada dramática, que é a de criar as milícias, que é a de intimidar as pessoas, só que isso ainda piorou tudo para o lado indonésio. E rapidamente, já que eu cheguei a Jacarta no dia 30 de janeiro, logo a seguir ao anúncio, e muita gente achou que a minha chegada, a abertura da secção de interesses tinha a ver com o anúncio de Habibie, mas não tinha. Fomos completamente apanhados de surpresa. Alatas foi também apanhado de surpresa, Jaime Gama foi apanhado de surpresa. Toda a gente na própria Indonésia foi apanhada de surpresa, Mas depois de ir por aí não havia volta atrás. E, portanto, no fundo nós continuámos a negociar o acordo, que foi assinado no dia 5 de maio, em Nova Iorque. O pretexto era um estatuto de autonomia, mas simplesmente nos termos do anúncio de Habibie, previa-se um referendo, chamou-se consulta popular, com um homem um voto e uma mulher um voto, e a partir daí a campanha de intimidação dos indonésios criou cada vez mais resistência. Portanto, nós percebemos pouco a pouco que o povo ia votar pela independência, e o elemento mais determinante tinha sido, justamente, a afluência ao registo, feito em condições muito complicadas, já com imensas ameaças das milícias, massacres, lembro-me do massacre de Liquiçá, do massacre em Díli, em casa do Manuel Carrascalão, do massacre em muitos outros sítios. Todos com o objetivo de também nos desviar da mesa das negociações, mas nós não nos desviámos. E o referendo foi por diante. Entrou a UNAMET a 3 de junho e fez toda a diferença ter lá as Nações Unidas. É a UNAMET que vai organizar o referendo. Depois há um processo de consulta com os timorenses, em que o papel de Xanana Gusmão é fundamental. E também era o meu papel fazer a ligação com ele, que estava preso, para ter a garantia que os timorenses do interior estavam no processo. Com os do exterior, nós estávamos em contacto, mas com os do interior era muito importante termos a perceção deles. Há grandes dúvidas e hesitações, porque sabíamos que o acordo era o que era possível, e era um acordo que, do ponto de vista da segurança, não tinha as condições ideais, visto que a Indonésia continuava responsável pela segurança, mas foi uma decisão consciente dos timorenses e nossa, e obviamente não fizemos aqui nada que não fosse em sintonia com os timorenses, e aí o papel de Xanana é absolutamente vital. Decidiu-se arriscar. Apesar das ameaças..Crédito: Leonel de Castro.E quando há aquela nova vaga de violência, já pós-resultados… Sabíamos que ia haver essa violência. Não sabíamos qual era a dimensão dela. Mas sabíamos que ia haver violência e estávamos todos preparados para ela. E o povo também estava, tanto que o povo fugiu para as montanhas..E o que é decisivo nesse momento? É o envolvimento da comunidade internacional para dizer que o resultado é para ser respeitado? Tudo é decisivo. A comunidade internacional é muito importante. Nesse momento há um trabalho fundamental, diplomático, essencial, que é feito por todos, mas em que é muito importante o papel diplomático de Portugal nas Nações Unidas, na missão que era chefiada pelo embaixador António Monteiro. Fernando Neves era o responsável aqui, em Lisboa. E, claro, Jaime Gama, como ministro dos Negócios Estrangeiros..Estamos a falar na época de António Guterres como primeiro-ministro e de Jorge Sampaio como Presidente, ambos muito empenhados na causa timorense. Exatamente. E eles os três, Gama, Guterres e Sampaio, articularam-se maravilhosamente, fizeram mexer todos os seus contactos. António Monteiro consegue que venha uma missão do Conselho de Segurança a Jacarta e a Díli. Que chega no dia 10 de setembro a Jacarta, e a 11 a Díli. Essa missão é crucial para depois haver uma resolução do Conselho de Segurança que respalda a INTERFET, uma missão de paz internacional, e entretanto obter o OK da Indonésia, porque muitos países não queriam aceitar essa missão de paz sem o OK da Indonésia. E quem é absolutamente decisivo para isso são os americanos, e os americanos são magistralmente tocados pelos nossos três governantes..Falaram com Bill Clinton? Claro. Foi a conversa fundamental. Tudo foi fundamental, da entrevista de Jorge Sampaio à CNN aos contactos de Jaime Gama, mas fundamental, fundamental, fundamental foi a conversa dura de António Guterres, primeiro-ministro, com o presidente Clinton, em que ele ameaça retirar os soldados nossos do Kosovo se os americanos não se empenham em obter o OK da Indonésia para a missão de paz, porque obviamente o povo português, que estava vestido de branco nas ruas no dia 8 de setembro, não perceberia que tivesse os seus soldados no Kosovo numa missão internacional e não houvesse apoio internacional a uma missão de paz para Timor-Leste..A Austrália, que já citou aqui, através do primeiro-ministro Howard, depois de uma altura em que deu como facto consumado a integração da ex-colónia portuguesa, depois vai ter um papel também importante para ajudar a Timor a caminhar para a Independência? Sim, no final. Sim. Mas a Austrália é um dos responsáveis pela invasão de 1975. Não são só os americanos. É a Austrália que faz o acordo Timor Gap. Eu já tinha chegado a Jacarta e a Austrália ainda resistia à ideia de que Timor tivesse outro destino que não fosse ser integrado na Indonésia. Mas, com a repressão, com a resistência popular, o embaixador australiano em Jacarta, muito importante, verifica que o povo já não podia mais com aquilo e começa a mandar informação para Camberra e Camberra muda ao ponto de depois perceber e ser a potência decisiva, obviamente, para se fazer a INTERFET e é a Austrália que lidera a INTERFET..Aquela força de paz é sobretudo de militares australianos? Exatamente, Também tem asiáticos, nomeadamente tailandeses e também malaios, porque isso tinha sido uma condição posta pela Indonésia. Nós, Portugal, tivemos também a sageza de não impor a nossa presença para, digamos, não esfregar o pano na face dos indonésios e assim se conseguiu ter a missão de paz..A 20 de maio de 2002, finalmente a independência. Há uns anos entrevistei Sukehiro Hasegawa, diplomata japonês que foi chefe da missão da ONU, que me disse que depois daquela reação inicial, violenta, a Indonésia aceitou a independência de Timor e não a tentou sabotar. Como embaixadora em Jacarta nessa época, partilha desta ideia? É verdade. As relações são exemplares, e é por bom senso de parte a parte, da parte dos timorenses e da parte da Indonésia. Os timorenses, porque obviamente percebem que não se podem dar ao luxo de ter más relações com um grande país vizinho, como é a Indonésia. E os indonésios perceberam também. Aliás, eu acabei por ficar amiga e ter como nosso grande aliado o próprio Ali Alatas, que foi das pessoas que percebeu que a Indonésia não tinha vantagem nenhuma em boicotar a independência de Timor, e que tinha toda a vantagem, pelo contrário, em ajudar Timor a ser um foco de estabilidade ali na região, e a desenvolver-se. E a independência de Timor até era, no fundo, benéfica para a Indonésia, que ficava livre daquilo que ele descreveu como a pedra no sapato. Que era o título do livro que ele escreveu sobre Timor..A opção da língua portuguesa como língua oficial é uma decisão muito política, pela história, mas também para não ser o inglês, da Austrália, para não ser o bahasa, língua da Indonésia. Tem visitado muitas vezes Timor, Como é que se vê ali a afirmação da língua? A língua portuguesa foi uma escolha dos timorenses e uma escolha que tem um sentido estratégico, porque obviamente reforça a identidade nacional. Mais uma razão para Portugal e os países de língua portuguesa se terem, todos, empenhado em fazer Timor recuperar o falar português, sendo Timor membro da CPLP. Deviam. Portugal fez muito, com os professores, mas podia ter feito muito mais. Há um instrumento poderosíssimo que Portugal pura e simplesmente não utilizou de forma estratégica e que devia ter utilizado, e que tinha sido absolutamente chave, em conjunto com todos os outros, para pôr Timor a falar português, que é a utilização da RTPI. Infelizmente, até hoje, a RTPI não foi utilizada de modo estratégico por parte de Portugal. E quando eu digo estratégico, é programas desenhados de português para estrangeiros, programas desenhados para determinadas audiências em Timor, com horários adequados. Mas não usámos este instrumento porque houve sempre um grande acanhamento por parte dos diversos responsáveis dos diversos governos em usar a RTPI como o que é, uma ferramenta do Estado português paga pelos contribuintes portugueses. Dizem-me ministros com quem eu tenho falado que se tentam interferir, dizem-lhes que estão a interferir no controlo editorial. Ora, aquilo não é um canal de notícias, é uma ferramenta do Estado português, paga pelos contribuintes portugueses..Mas continua otimista que a língua portuguesa pode afirmar-se em Timor? Absolutamente, mas isso depende de nós. Temos de criar esse plano estratégico para fazer a língua portuguesa passar a ser usada no dia a dia. Os timorenses são poliglotas natos. Têm também uma tradição de oralidade, eles falam dialetos locais, falam tétum como língua franca interna, que de resto é um crioulo português, falam indonésio, inglês, e falam português. Agora, poderiam falar muito melhor português, e para certas profissões é absolutamente vital dominar bem o português, na administração pública, na justiça, etc. Não houve capacidade de nenhum Governo português de perceber a importância estratégica da ferramenta política que é a RTPI..O facto de Timor ser uma democracia, manter-se uma democracia ao fim de mais de duas décadas de independência, é também fonte de grande admiração? É uma grande demonstração de que o povo percebe, depois de tudo o que viveu, de toda a violência dos anos de colonialismo, dos anos de ocupação, que é pela via pacífica que tem que resolver os diferendos políticos. E, portanto, tem sido estranhamente exemplar para o mundo o empenho dos timorenses e a participação ordeira massiva em todas as eleições. É evidente que estamos neste momento, penso eu, numa fase ainda mais importante, porque vai ter que haver, a lei da vida assim o impõe, uma transição de geração no poder que já tarda e que se impõe. E, portanto, não tenho dúvida nenhuma de que eles estão mais preparados do que nunca. Houve muitas vozes a seguir ao referendo, designadamente em Portugal, vozes de mau agoiro, que primeiro disseram que o referendo ia ser impossível, depois disseram que a segurança não permitiria que o referendo se fizesse, que Timor não era viável. E eu sempre disse, a essas vozes, não, é mentira. Timor é viável. Timor é muito mais governável do que, por exemplo, a vizinha Indonésia. Timor é pequenino, tem recursos próprios, é mais gerível do que a gigante Indonésia, que também é riquíssima, mas que tem também problemas de gestão muito complicados. E, no entanto, a Indonésia progrediu também extraordinariamente e exatamente à conta da democracia. Basta dizer que a classe média triplica nestes 25 anos de democracia na Indonésia. .O Papa vai a Timor. Isso relembra também que Timor é um país fortemente católico. A Igreja foi também decisiva para aquele voto na independência em 1999? A Igreja Católica foi absolutamente decisiva. A Igreja Católica foi um bastião da resistência civil. Não foi só a guerrilha, não foi só a FRETILIN. Na resistência civil foi absolutamente a Igreja Católica. Tive ene demonstrações disso durante esse ano de 1999. A Igreja Católica foi também quem manteve viva a própria língua portuguesa. Ainda me lembro de um tradutor da polícia que me foi pedir uma gramática e um dicionário da primeira vez que eu lá fui a Timor em 1999 e que me disse que só tinha mantido o seu português graças aos santinhos. A Igreja além de tudo mais, além de ser uma força da resistência viva, decisiva, também é um fator da identidade nacional timorense. O facto de os timorenses se dizerem 97% ou mais católicos. E isso também é uma das razões da visita do Papa Francisco. Tem tudo a ver com essa defesa da identidade timorense por oposição, digamos, aos militares ocupantes, que representavam o maior país muçulmano do mundo.