A Ucrânia fez uso dos mísseis balísticos ATACMS pela primeira vez em território russo - e não em território ocupado ou anexado. Coincidência, no mesmo dia Vladimir Putin promulgou a nova doutrina nuclear e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros disse que o país irá “responder em conformidade”. A União Europeia e os Estados Unidos criticaram a ameaça nuclear mais ou menos velada. “Sem entrar em pormenores, a Ucrânia tem capacidades de longo alcance. A Ucrânia produz drones de longo alcance. Agora temos o Neptune [míssil de cruzeiro antinavio] de longo alcance. E agora temos os ATACMS. E vamos usá-los todos”, disse o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, ao lado da primeira-ministra dinamarquesa Mette Frederiksen. Foi desta forma que não desmentiu o que fontes ucranianas confirmaram à agência RBC, um ataque contra uma instalação “atingida com sucesso” na região de Briansk. À mesma agência, Andrii Kovalenko, diretor do Centro de Combate à Desinformação, disse que o alvo armazenava munições de artilharia, incluindo norte-coreanos, bombas aéreas guiadas, mísseis antiaéreos e munições para sistemas de foguetes de lançamento múltiplo. A instalação, situada em Karachev, a 130 quilómetros da Ucrânia, já tinha sido atingida por drones no mês passado. O Estado-Maior da Ucrânia confirmou o ataque, e disse que houve 12 explosões e detonações secundárias, embora sem dizer com que arma. À Reuters, uma fonte norte-americana disse que as defesas russas conseguiram intercetar dois de oito mísseis disparados. Segundo o Ministério da Defesa russo, foram disparados seis ATACMS, tendo cinco sido destruídos e o restante danificado. Quando o The New York Times revelou a mudança de posição de Joe Biden, foi dito que o uso de mísseis balísticos em solo russo estaria circunscrito à região de Kursk, onde a Ucrânia ocupou uma parte do território e para onde Moscovo despachou 50 mil soldados seus e 10 mil norte-coreanos. O ataque a Briansk mostrou que essa restrição não se aplica, ficando por esclarecer se essa informação errónea foi transmitida para despistar os russos. A mesma opacidade está a ser aplicada à possibilidade de a Ucrânia utilizar os mísseis de cruzeiro franco-britânicos SCALP/Storm Shadow. Questionado sobre o assunto, o primeiro-ministro Keir Starmer foi claro que não iria sê-lo. “Obviamente, não vou entrar em pormenores operacionais porque o único vencedor, se o fizéssemos, seria Putin e eu não estou disposto a fazê-lo”, afirmou o britânico. Em Bruxelas, numa reunião com os ministros da Defesa da UE, o secretário-geral da NATO também defendeu que certas informações não devem ser trazidas a público. “Sempre fui da opinião de que é sensato não falar demasiado sobre o que estamos a fazer. Não vou entrar na questão se cada um dos aliados deve ou não fazer algo, ou o que estão a fazer. Cabe-lhes a eles comunicar se o quiserem fazer. De um modo geral, diria que não devemos comunicar demasiado e que não devemos tornar os nossos adversários mais esclarecidos do que o necessário”, considerou Mark Rutte. A resposta do Kremlin foi a publicação do decreto presidencial sobre a nova doutrina nuclear, enquanto Sergei Lavrov, entre reuniões na cimeira do G20, no Rio de Janeiro, disse que o disparo de ATACMS só pode ser feito com a intervenção de pessoal norte-americano e recomendou a leitura “na íntegra” da referida doutrina nuclear. Esta passou a considerar um “ataque conjunto”à Federação Russa a agressão de qualquer Estado desprovido de armas nucleares “com a participação ou apoio de um Estado com armas nucleares”. O Ocidente usou a mesma palavra para definir a iniciativa russa: irresponsabilidade. “Isso é mais da mesma retórica irresponsável da Rússia que temos visto nos últimos dois anos”, disse um funcionário do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Em comunicado, este órgão disse não haver “qualquer razão para ajustar” a sua postura ou doutrina nuclear “em resposta às declarações da Rússia”. Por parte da UE, o ainda chefe da diplomacia Josep Borrell lembrou que não é a primeira vez que Putin joga a carta nuclear. “Uma decisão irresponsável”, afirmou, mas sem consequências. “Tem um significado simbólico”, disse. Mais tarde, questionado de novo sobre o tema, disse não ver “uma relação entre a decisão do presidente [ Joe Biden] e uma hipotética guerra nuclear”. O primeiro-ministro britânico também acusou Vladimir Putin de irresponsabilidade. “Há uma retórica irresponsável vinda da Rússia e isso não nos vai dissuadir de apoiar a Ucrânia”, declarou Keir Starmer. Ao notar a ausência do líder russo do G20 pelo terceiro ano consecutivo, comentou: “Ele é o autor do seu próprio exílio e, no milésimo dia da guerra ilegal da Rússia na Ucrânia, volto a dizer: acabem com a guerra, saiam da Ucrânia.” Zelensky aproveitou a data (mil dias da invasão) para revelar, em discurso aos eurodeputados, que em breve poderá ter até cem mil norte-coreanos à sua porta. Num outro discurso disse aos deputados ucranianos que tem como meta a produção de 3 mil mísseis de longo alcance. Já os seis maiores países europeus escolheram a ocasião para se comprometerem em apoiar ainda mais Kiev ao nível militar, económico e financeiro e enviaram uma mensagem para o próximo presidente norte-americano. “A paz só pode ser negociada com a Ucrânia, com os parceiros europeus, norte-americanos e do G7 do seu lado”.