"Temos sempre evitado ir aos centros de entrega de ajuda humanitária que Israel está recentemente a criar em Gaza pois todos os dias ouvimos notícias de mais mortes nestes locais. Como já não temos o que comer e estamos desesperados, decidi ir pela primeira vez tentar a minha sorte e tentar conseguir trazer algo para dar de comer à minha família. [...] Felizmente eu sobrevivi, desta vez, mas por que razão o mundo que assiste a tudo isto não faz nada perante esta aberração e violência atroz?”O testemunho é de Mahmoud, sobrinho de João Tomás Bossa, um português que vive no Luxemburgo e pede há quase dois anos ajuda ao Governo para retirar 20 familiares da Faixa de Gaza - em dezembro de 2023, Portugal resgatou a sogra de João, mas o sogro e outros parentes (entre eles vários menores) continuam no enclave palestiniano. .O desespero de um português para tentar tirar 20 familiares da Faixa de Gaza.Em dezembro do ano passado, numa Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, o ministro Paulo Rangel “esclareceu que o Estado português aplica critérios rigorosos para o resgate de cidadãos, considerando apenas familiares diretos de portugueses, como ascendentes, descendentes de primeiro grau e cônjuges” e que no caso de João Tomás Bossa isso não é possível pois a esposa, cidadã luxemburguesa, não tem ligação a Portugal. Mas o português defende que ajudar é uma questão de humanidade ao abrigo das leis humanitárias vigentes.O testemunho de Mahmoud está na primeira pessoa, mas foi escrito por João Tomás Bossa com base no que o sobrinho de 21 anos lhe contou. O relato é semelhante a outros que saem da Faixa de Gaza e que foi também enviando ao Ministério dos Negócios de Estrangeiros de Portugal.“Para que fique bem registado”, explica João Tomás Bossa, e o Ministério “jamais possa dizer que não teve conhecimento” do que Mahmoud e outros sofreram “aquando de uma tentativa de conseguir um saco de arroz nos ‘famosos’ centros de ajuda humanitária montados por Israel, que não são mais do que armadilhas para matar” e “criar banhos de sangue de pessoas inocentes”.Como numa “gaiola”Segundo o testemunho, Mahmoud e o tio Ahmed, com vários amigos, resolveram tentar a sorte a 15 de junho, no centro de distribuição perto de Al-Mawasi, onde a família oriunda de Khan Yunis está a viver. “Quando nos aproximámos do local vemos muitas pessoas juntas e a serem dirigidas para um local específico criado por Israel, como se estivéssemos todos dentro de uma gaiola. Era a sensação que eu tinha. De repente, a vedação abre e todos começam a correr em frente pois é aí que, alguns metros à frente, Israel colocou os sacos de farinha e arroz que todos correm para agarrar, pelo menos um saco”, lê-se no testemunho.“Corri o mais rápido que pude, mas os outros eram mais rápidos do que eu e havia muita gente à minha frente, muitos atropelos e muito desespero e confusão. Quando começo a ver já algumas pessoas com sacos de arroz na mão, começo a assistir a algo inimaginável: de repente, os militares de Israel que estavam colocados nas laterais e em locais mais elevados, começam a disparar contra todos nós. Inacreditável.“Mahmoud conta como procurou o tio Ahmed, que se tinha conseguido esconder atrás de um dos sacos de farinha. “Tremia por todos os lados, pois só ouvia gritos e tiros à minha volta. Só queria voltar para trás, mas até isso era perigoso pois os militares de Israel estavam a matar todas as pessoas que se mexiam”, indica Mahmoud. Junto aos dois, um homem ferido na perna pedia ajuda, tendo o tio conseguido ajudar. “Consegui até nesse momento ouvir os risos de regojizo dos militares de Israel que matavam apenas por um prazer demoníaco quem já sofre horrores e desesperava por comida.”O sobrinho de João Tomás Bossa relata o desespero. “Eu tremia ainda mais e sentia uma adrenalina em que o medo de morrer contrastava com a vontade de lutar contra a injustiça destes seres humanos horríveis com armas e farda de Israel, mas sabia que não podia fazer nada… estou muito cansado e tenho fome. Já não tinha forças para fugir… e confesso que pensei por alguns segundos em levantar-me e ir contra um dos soldados mais próximos de mim e impedi-lo de matar mais pessoas, mesmo sabendo que isso significaria a minha própria morte.” Mahmoud alega também que os militares israelitas usaram retroescavadoras para lançar areia não só sobre os mortos, mas também sobre os feridos. “Os soldados estavam literalmente a enterrar vivos aqueles que estavam deitados no chão a pedir misericórdia a rezar a sua última oração… e eu não podia fazer nada… absolutamente nada.”Crime de guerra?Depois de vários meses de cerco total à Faixa de Gaza, durante o qual a ajuda humanitária não foi autorizada a entrar, Israel permite desde o final de maio a entrada do mínimo. As organizações humanitárias falam de uma “gota de água” num “oceano de necessidades”, criticando o novo método de distribuição de ajuda que foi orquestrado pela Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), uma organização privada apoiada por Israel e financiada pelos EUA. E acusam Israel de “usar a comida como uma arma” - um crime de guerra.Em vez de a ajuda ser distribuída pelas organizações no terreno (há algumas que continuam a fazê-lo mesmo no novo esquema), os palestinianos necessitados têm de se deslocar quilómetros para chegar aos centros de distribuição que foram criados. E as notícias de violência e mortes têm sido quase diárias. Segundo os dados do Governo de Gaza, controlado pelo Hamas, até quarta-feira da semana passada pelo menos 549 palestinianos foram mortos pelas forças israelitas quando tentavam obter ajuda nos centros, que apelida de “armadilhas de morte”. Houve ainda mais de quatro mil feridos. A ONU admite pelo menos 410 mortos. Israel alegou, em várias ocasiões, disparar apenas tiros de aviso para o ar, quando grupos de pessoas se aproximam de forma considerada ameaçadora dos seus militares. Numa entrevista à Sky News, na sexta-feira, o diretor executivo do GHF, Johnnie Moore (um pastor evangélico que foi conselheiro do presidente Donald Trump no primeiro mandato), denunciou uma “campanha de desinformação” para fechar as operações. E disse que já distribuiu mais de 44 milhões de refeições aos palestinianos..Português que luta por tirar família de Gaza queixa-se de que Portugal "até um cão resgatou (e bem)" de Israel