Quais as suas memórias do 2 de agosto de 1990? Lembra-se bem daquele dia em que o Iraque invadiu o seu país?Sim, nessa data, estava no Koweit com a família e vivíamos em paz. E era, claro, agosto, verão, tempo de férias escolares. Acordei cedo, como é habitual, e ouvi as bombas, os aviões, percebi que qualquer coisa estava a acontecer. Não tinha a certeza se era real ou apenas um pesadelo. Infelizmente, era real e a minha família contou-me que o Iraque tinha invadido o Koweit. Bem, vivemos então longos sete meses, até a comunidade internacional, liderada pelos Estados Unidos, com o apoio da França, do Reino Unido e dos países do Conselho de Cooperação do Golfo, libertar o Koweit em fevereiro de 1991. Foi uma altura muito difícil para viver no Koweit. Havia um clima de terror e estávamos sempre com medo, mas decidimos ficar e servir o país e a nossa comunidade. Eu era muito novo, tinha 16 anos. Todas as pessoas que eram de outras nacionalidades, que trabalhavam em todo o tipo de emprego, deixaram o Koweit, e encontrámo-nos sozinhos, quase só koweitianos. Os padeiros, os eletricistas, os que limpavam o lixo, deixaram o país. Assim, organizámo-nos, fizemos trabalhos que nunca tínhamos feito, utilizámos os camiões do lixo, repartimos os dias e os horários e dividimo-nos por grupos para limpar a nossa cidade, a nossa área. Normalmente, há muitos imigrantes que trabalham neste tipo de trabalhos porque a comunidade nacional do Koweit é muito pequena, não consegue trabalhar em todas as áreas. E, portanto, temos muitos imigrantes que trabalham em diferentes funções. Naqueles meses da ocupação iraquiana limpámos o lixo e sentimo-nos honrados em fazer esse tipo de trabalho.Foi uma surpresa para si e para os koweitianos em geral a reação da comunidade internacional? Foi um momento muito especial da história? Como a União Soviética estava sob o comando de Mikhail Gorbachev e tinha boas relações com os EUA de George W. Bush, foi possível a votação nas Nações Unidas para ajudar o Koweit a recuperar a independência.Penso que tivemos sorte, pois nessa altura a comunidade internacional decidiu fortemente libertar o Koweit. Acreditava, penso eu, que se após o Iraque invadir o Koweit não tomasse qualquer atitude, talvez no futuro outro país tivesse a mesma iniciativa negativa noutra região, e há assim uma grande decisão das Nações Unidas. Votaram no artigo 7 da Carta das Nações Unidas para utilizar todas as medidas para libertar o Koweit. E ficámos muito felizes por ver a comunidade internacional a apoiar a libertação do Koweit, porque, e isso é outra parte desta história, o Koweit tem uma boa relação com o mundo todo. Temos uma relação muito positiva com o mundo todo, não apenas com os ocidentais. Temos uma ótima relação com os africanos, com os asiáticos, e todos estes países apoiaram a libertação do Koweit. Foi um momento muito especial para as Nações Unidas tomarem esta decisão, e tomaram-na, e nós tivemos sorte.Lembra-se do dia da libertação, quando os iraquianos foram expulsos?O dia nacional do Koweit é a 25 de fevereiro e o dia 26 é o dia da libertação. Durante um mês, desde meados de janeiro de 1991, até ao 26 de fevereiro, as forças internacionais atacaram as tropas iraquianas por via aérea. Houve bombardeamentos no Koweit e no Iraque para enfraquecer as tropas iraquianas, para que as forças internacionais pudessem entrar por terra sem problemas e libertar o Koweit. Permaneceram a atacar durante um mês, até que Saddam Hussein, o ditador iraquiano da altura, decidiu recuar e libertaram o Koweit a 26 de fevereiro, em poucas horas. Finalmente chegou o dia da comemoração.Saddam Hussein manteve-se no poder até 2003, quando uma segunda intervenção americana o derrubou. Agora, o Iraque é um país diferente. Têm hoje boas relações com o Iraque?Sim, elaborámos uma boa estratégia nacional e precisamos de cooperar com o Iraque. Saddam Hussein já não está lá, e o Iraque foi afetado por Saddam Hussein, tal como nós fomos afetados. Fomos vítimas, e os iraquianos também foram vítimas de Saddam Hussein. Depois de 2003 muito mudou. Portanto, precisamos de tornar a relação com o Iraque positiva, porque é o nosso país vizinho e sempre tivemos uma boa relação com a comunidade iraquiana. Esta é a estratégia. Como país vizinho, tentamos sempre ter uma boa relação, uma relação positiva, uma cooperação com o Iraque, e conseguimos. Temos uma ótima relação com o governo iraquiano e temos uma boa relação com os cidadãos iraquianos.Quando Saddam decidiu atacar o Koweit, reivindicou que o Koweit era uma parte tradicional do Iraque. Pode explicar-me um pouco sobre a história do seu país? São um país árabe, com uma maioria muçulmana, tanto sunitas como xiitas, mas incluindo até uma pequena minoria de cristãos nacionais. Como descreve a história do seu país?Bem, o Koweit foi fundado há mais de 400 anos. Nessa altura, começou como uma aldeia e foi-se tornando cada vez maior, até que chegámos ao que somos agora. E a família governante, Al-Sabah, no Koweit, foi escolhida para ser uma família governante pela própria comunidade do Koweit. Pediram à família Al Sabah para governar essa aldeia, uma aldeia que cresceu.Está a falar já do século XVII?Vou dizer-lhe exatamente a data: 1613.Mas durante algum tempo esteve sob o domínio do Império Otomano? E depois, até à independência em 1961, houve colonização britânica, certo?Fizemos um acordo de Protectorado com os britânicos em 1899. Os otomanos estavam no Iraque até à Primeira Guerra Mundial, mas nós tivemos logo esta ligação aos britânicos. Temos uma história muito diferente da do Iraque.A história está muito ligada à tal aldeia, hoje a Cidade do Koweit, a capital. Têm também uma forte ligação com o mar, como mostram as réplicas de embarcações que tem expostas aqui na própria embaixada em Portugal? Sim. O mar é muito importante na nossa história. Só descobrimos petróleo em 1938 e a primeira carga de exportação foi em 1946. Antes disso a economia do Koweit dependia da apanha das pérolas. As pérolas para fazer jóias eram o petróleo daquela época. A nossa riqueza. Então, os koweitianos mergulhavam no mar para apanhar ostras e tiravam as pérolas dessas ostras. E depois viajavam de barco para a Índia, por exemplo, para fazer comércio. E com esse dinheiro, compravam aquilo que era preciso, por exemplo madeira para as construções, a cidade não era nada como hoje, cheia de prédios altos.Como lida o Koweit com toda esta turbulência atual no Médio Oriente? Como é que um pequeno país, com apenas 17 mil km2 e 4,5 milhões de habitantes (e dois terços são imigrantes) reage a todas estas questões, desde a tensão entre sunitas e xiitas, mas também ao conflito entre Israel e os palestinianos e até a recente guerra de israelitas e americanos contra o Irão?Primeiro, sobre a região, sunitas contra xiitas, ou o contrário, acho que isso não existe. Não existe no meu país, e na região também não, digo-lhe eu. Viveram sempre lado a lado, sem problemas. O problema é o extremismo, é o fundamentalismo, é o terrorismo. E esse terrorismo não reflete nem xiitas nem sunitas. Nós acreditamos, tal como é a opinião internacional, que o terrorismo não tem Estado, nem religião. Portanto, a questão é completamente diferente. E tal como os terroristas atacam os xiitas, também atacam os sunitas. Mas o grande problema na região é o conflito atual com Israel, e o que Israel está a fazer em Gaza. Sabe, vê-se nas notícias como os palestinianos estão a sofrer. Estão a matar civis, crianças e mulheres, e a matá-los também à fome, em nome de atacar aqueles que consideram ser terroristas.Houve algumas especulações antes desta nova guerra em Gaza de que o Koweit poderia fazer parte dos Acordos de Abraão. Mas isso foi desmentido. Não há planos para seguir os exemplos dos Emirados Árabes Unidos ou do Bahrein, também monarquias do Golfo, e estabelecer relações com Israel?Não, não há. Fazemos parte sim da Iniciativa Árabe. A Iniciativa Árabe é muito importante, e esta iniciativa árabe pedia o reconhecimento de dois Estados, entre os quais Israel, e ao lado deste a Palestina. E neste momento em que estamos aqui em Lisboa a conversar, há uma reunião em Nova Iorque, com a Arábia Saudita e a França a copresidir, sobre esta iniciativa. E o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros está lá a participar, e nós apoiamos totalmente esta iniciativa. Queremos ter dois Estados e viver em paz. Mas até ao momento Israel não acredita nesta solução, infelizmente. Em relação ao Irão e à recente guerra, acreditamos sempre em encontrar uma solução diplomática, não através de ataques. Por isso, apoiamos a solução diplomática para qualquer questão, porque, com os ataques e a guerra, todos sairão a perder na região.Referiu que o petróleo foi descoberto em 1938. E um dos motivos da invasão iraquiana de há 35 anos foi, obviamente, a cobiça do petróleo koweitiano. Qual a importância do petróleo para o Koweit hoje?O petróleo ainda é muito importante para o nosso orçamento. Representa cerca de 90% das nossas receitas. Mas pensamos que precisamos de outras fontes de riqueza e desde os anos 50 criámos um fundo de segurança para o investimento. Por isso, hoje chama-se KIA, Koweit Investment Authority. É um dos maiores do mundo. E o mais antigo. Foi uma ideia muito criativa. Depois outros países tiveram a mesma ideia, como os países do Golfo ou a Noruega. E o KIA está a investir nestes últimos 70 anos em todo o mundo. Em Portugal também?Sim, Portugal faz parte, naturalmente, desse investimento. E está sempre a monitorizar as oportunidades para investir mais. Consegue identificar um ou dois exemplos? Principalmente no mercado imobiliário.Além do KIA, há investimentos privados koweitianos?Sim, por exemplo, por empresas que apostam na área hoteleira, como Pine Cliffs Resort. Ao entrar, verá apenas a bandeira portuguesa e a bandeira do Kuwait. Também o Hyatt Regency em Lisboa é um investimento koweitiano, tal como o Sheraton Cascais e o Hotel Yotel no Porto. E a Quinta Marques Gomes, um complexo de apartamentos que vai abrir no próximo ano em Gaia. Também há um investimento público importante na rede gasolineira Q8 que vai ser reforçado no futuro próximo.Sei que fala português. E gostava de fazer umas perguntas finais em português e não em inglês. Claro, claro, claro.Onde aprendeu português? Aprendi português quando trabalhei na nossa embaixada no Brasil, em 1999. Quando cheguei ao Brasil, achei muito raro encontrar pessoas que falassem inglês, infelizmente. Mas eu queria comunicar com a comunidade no Brasil. Decidi aprender a língua. Não sabia nada, mas mesmo nada, de português. Estudei na Universidade de Brasília. Todos os dias, depois do trabalho, ia para lá estudar. Até que aprendi a língua. E comunicava muito bem em português. Eu gosto da língua, da filosofia da língua, da forma como se fala a língua. Quando falo português, não digo apenas as palavras. Eu falo com sentimento, o que é que a palavra que diz, o que a palavra significa. Foram cinco anos no Brasil e nunca me esqueci dela. Em Portugal, onde estou desde 2022, voltei a falar de novo.E quando se encontra com o nosso presidente, com o primeiro-ministro ou com o ministro dos Negócios Estrangeiros, fala em inglês ou português?Eu misturo. Às vezes falo inglês, outras vezes português. Mas eles sabem que eu falo português e gostam de ouvir.E é uma grande vantagem para si, pois além da vida quotidiana, porque pode ler os jornais, pode ver e ouvir as notícias e estar a par do país.Exatamente. Mesmo aqui no trabalho, leio para me preparar, para acertar algumas coisas em português. Eu uso muito a língua portuguesa.É possível o Koweit estreitar relações com Portugal?Bem, a nossa relação com Portugal é muito positiva. Na área política, os dois países, o Koweit e Portugal, concordam em todos os temas internacionais. Não há dúvida. A relação económica está a crescer agora. Estou aqui a trabalhar para reforçar as relações económicas. Estou a tentar atrair empresas do Koweit para Portugal, vindas do setor privado ou do público. Também estou a tentar enviar empresas portuguesas para o Koweit. Mas infelizmente não há nenhum embaixador português a viver no Koweit. Se houvesse, ajudaria a desenvolver mais a relação, porque há muitas boas oportunidades para trazer o Koweit para cá, ou para levar empresas portuguesas para trabalhar no Koweit. Há muitas boas oportunidades. Temos um fundo muito importante do Koweit, muito grande. Está a trabalhar no mundo todo. Também está a trabalhar, como já disse, em Portugal. Mas pode trabalhar mais. Há boas oportunidades aqui em Portugal. Estou a trabalhar aqui, muito bem, na economia, mas a tentar aumentar ainda mais os nossos investimentos, o nosso trabalho aqui em Portugal..O iate de Saddam, o palácio com mármore alentejano e o cozinheiro açoriano do ditador