Sei que era ainda muito jovem quando Franco morreu. Que memórias guarda daquele dia?Para mim, foi um dia ótimo: tinha 13 anos e as aulas foram suspensas na escola. Quanto ao sentimento predominante em Espanha, não era de alegria nem de tristeza, mas de incerteza. Logicamente: tinham passado 40 anos de ditadura e ninguém sabia o que poderia acontecer.Nasceu na Extremadura, mas a sua família instalou-se na Catalunha. Nas viagens de carro através de Espanha, sobretudo para as férias, foi possível perceber as transformações do país nas décadas de 1960 e 1970, os últimos anos do regime franquista e o início da era pós-Franco?Sim, claro. A Espanha era um país pobre e subdesenvolvido, com algumas zonas ricas, como a Catalunha ou o País Basco, e outras pobres ou muito pobres, como a Andaluzia ou a Extremadura. Portanto, nas décadas de 1950 e 1960, assistiu-se a uma migração significativa das zonas pobres para as ricas, que esvaziou e empobreceu as primeiras e encheu e enriqueceu as segundas, e foi absolutamente determinante para o futuro do país.Em Soldados de Salamina, aborda o tema da Guerra Civil. Como surgiu o seu interesse por este conflito que marcou ideologicamente a Europa de então e que ainda hoje parece dividir os espanhóis?Não creio que a Guerra Civil divida hoje os espanhóis; é o que dizem alguns romancistas e cineastas que escrevem romances ou fazem filmes sobre a Guerra Civil, para vender os seus produtos; mas não é verdade. Ou não totalmente verdade: claro que o passado está sempre presente, porque é uma dimensão do presente sem a qual o presente é incompleto; mas isso não acontece apenas em Espanha: acontece em todo o mundo. Quanto a mim, sempre me interessei pela Guerra Civil, mas só escrevi sobre ela quando fiquei obcecado por uma imagem, ou melhor, por um gesto: o gesto de um soldado republicano que, no final da guerra, após uma execução coletiva de prisioneiros franquistas, quando tinha a obrigação de matar um deles, decidiu não o fazer. Além disso, devo acrescentar que, nessa altura - falo de 2001 -, ninguém escrevia romances sobre a Guerra Civil: era um tema considerado esgotado. Mas depois, e em parte graças ao enorme e inesperado sucesso desse livro, a minha geração e a seguinte começaram a escrever muito sobre a Guerra Civil.O seu livro, O Monarca das Sombras, que narra uma história familiar, é um alerta sobre a forma como uma Guerra Civil pode afetar a vida de qualquer pessoa, até mesmo de vizinhos, amigos e familiares, de repente em lados opostos?É exatamente isso que as guerras civis fazem, tal como as guerras em geral. Mas este livro fala mais sobre como as melhores intenções podem levar às piores catástrofes; ou seja, fala sobre como o caminho para o inferno está cheio de boas intenções (este é um ditado que acredito estar presente em quase todas as línguas: deve haver uma razão). E isto, como quase todas as coisas importantes, não é algo exclusivamente espanhol, mas sim universal..Como vê o papel do rei Juan Carlos na Transição?Obviamente, o seu papel foi crucial para o estabelecimento da democracia em Espanha. Isto não é uma opinião: é um facto. Outra questão completamente diferente é o que aconteceu nos últimos anos, onde o seu papel foi muito pior.Acha que a Revolução Portuguesa acabou por condicionar a Espanha pós-Franco?Em 1974, a Revolução Portuguesa causou o pânico entre os franquistas, que receavam que se propagasse a Espanha. Isso não aconteceu. Portugal e Espanha chegaram à democracia por caminhos muito diferentes, em alguns aspetos opostos; mas o essencial é que chegaram.No livro Anatomia de Um Instante, aborda o 23F. A democracia espanhola esteve realmente ameaçada nesse dia?Absolutamente. O golpe de Estado de 23 de fevereiro não foi uma brincadeira: foi muito grave. E quase teve sucesso. É disso que trata Anatomia de Um Instante, essencialmente, através de um momento decisivo deste golpe: a história da conquista da democracia em Espanha. Apesar do papel histórico de Adolfo Suárez, foi a vitória eleitoral do socialista Felipe González que confirmou a democracia em Espanha?Juridicamente, a democracia começou em Espanha em dezembro de 1978, quando foi promulgada a atual Constituição; mas, simbolicamente - isto é, na realidade - tudo começou no dia 23 de fevereiro de 1981, às 18h30, no hemiciclo do Congresso dos Deputados, quando três homens se recusaram a obedecer aos golpistas para se deitarem no chão enquanto as balas zumbiam à sua volta: esses três homens eram Adolfo Suárez, primeiro-ministro; o general Gutiérrez Mellado, vice-primeiro-ministro; e Santiago Carrillo, secretário-geral do Partido Comunista. Nenhum dos três tinha acreditado na democracia durante a maior parte da sua vida, mas nessa tarde os três, que tinham suportado o peso da transição da ditadura para a democracia, decidiram arriscar tudo pela democracia: nesse momento a democracia começou realmente em Espanha, como disse, nesse momento a Transição terminou, nesse momento o Franquismo terminou e nesse momento a Guerra Civil terminou, porque a Guerra Civil não durou três anos, como dizem os livros de História, mas sim 43: o franquismo não foi paz, mas a guerra por outros meios. Quanto à vitória socialista de 1982, sim, foi importante, porque finalmente consolidou a democracia.A adesão à CEE em 1986 foi um passo importante para a construção de uma Espanha moderna?Sem dúvida: foi decisiva. Foi também a concretização do sonho dos melhores espanhóis desde o século XVIII, que procuravam reintegrar a Espanha na Europa, porque a Europa representava para eles a liberdade, a razão e o progresso. É mais ou menos o que continua a representar para mim. Uma Europa unida é, na minha opinião, a única utopia razoável que nós, europeus, inventámos; utopia não no sentido etimológico da palavra (“Não existe tal lugar”, traduziu Francisco de Quevedo do grego no século XVII), mas no sentido, hoje muito mais popular, de um projeto desejável; é isto que representa para mim uma Europa unida, capaz de combinar a unidade política com a diversidade linguística e cultural: a única forma de preservar a paz, a prosperidade e a democracia no continente. As autonomias negociadas durante a Transição e consagradas na Constituição de 1978 criaram o problema dos independentismos atuais?Foram uma tentativa de os resolver, mas não funcionaram bem, ou não completamente, ou não em todas as comunidades autónomas. A Espanha é uma espécie de Estado federal, como a Alemanha ou os Estados Unidos, mas precisa de ser aperfeiçoada, ou melhor, a sua construção precisa de ser concluída (embora os nacionalistas não a desejem, porque federalismo significa igualdade, não desigualdade). É a isto que aspiro: uma Espanha federal numa Europa federal. Em todo o caso, não nos deixemos enganar: o problema do nacionalismo não é apenas espanhol; a Europa também o enfrenta. E é impossível construir uma Europa unida se não o resolvermos: se não passarmos de uma mentalidade nacionalista excludente - que dominou o continente durante dois séculos - para uma mentalidade federalista inclusiva. A monarquia, com Felipe VI, é hoje a instituição que mais une os espanhóis?Poderia ser. O certo é que hoje o verdadeiro dilema em Espanha não é a monarquia ou a república, mas melhor ou pior democracia; em todo o caso, a monarquia não é um obstáculo para se ter a melhor democracia possível, como demonstra o facto de as melhores democracias do mundo - as escandinavas - serem monarquias parlamentares. Quanto a Felipe VI, não há dúvida de que está a fazer bem o seu trabalho.Há saudosistas de Franco em Espanha?Claro. Mas são irrelevantes. A extrema-direita espanhola não quer regressar ao franquismo (embora alguns utilizem símbolos franquistas): quer o que as outras extremas-direitas europeias querem. O que, obviamente, a torna muito mais perigosa..O seu livro mais recente é sobre Francisco. Um ateu a escrever sobre um papa. Uma das mudanças em Espanha nos últimos 50 anos foi o fim da ideia de que o país era um bastião do catolicismo mais conservador?Sim. Em Espanha, as igrejas estão vazias, os seminários estão vazios e o número de católicos está a cair a pique. O franquismo foi um regime católico - o nacional-catolicismo, como era chamado - que provocou uma fobia anticatólica entre aqueles de nós que sofreram sob ele, uma fobia que só agora começa a desaparecer entre as gerações mais jovens. Isto não significa que os jovens se estejam a tornar católicos novamente, mas simples- mente que já não têm essa fobia. Igreja e Estado estavam fundidos sob o franquismo; felizmente, a democracia separou-os. Mas é certo que a Igreja espanhola continua a ser uma das mais conservadoras do mundo, como se comprova pelo facto de ter sido uma das mais opositoras a Francisco. Este é, talvez, o legado do nacional-catolicismo franquista. Estou a falar da hierarquia católica, claro, não dos fiéis. Quanto a mim, sim, sou ateu, ou agnóstico, mas como poderia recusar a oportunidade que a Igreja me ofereceu de acompanhar o papa à Mongólia e, sobretudo, de entrar no Vaticano e falar com quem quisesse e perguntar o que quisesse? Durante mais de dois mil anos, a Igreja Católica foi absolutamente determinante, em todos os sentidos, para a Europa, ou melhor, para o Ocidente, e pela primeira vez na sua História, abriu as suas portas a um escritor; por isso repito: como poderia eu recusar uma oportunidade destas?.O ateu e o papa.O mais recente livro de Javier Cercas é O louco de Deus no Fim do Mundo, que resulta do desafio do papa Francisco para que o escritor espanhol, um ateu, o visitasse no Vaticano e o acompanhasse numa viagem à Mongólia.