"A perceção da fragilidade e falta de coesão europeia terá sido o catalisador para a invasão da Ucrânia"
Putin diz que o objetivo da invasão é "desnazificar" a Ucrânia e tirar o presidente do poder. Mas os avanços russos têm sido mais lentos do que o Kremlin esperaria. Podemos esperar um rápido escalar dos ataques - mais violentos e mortíferos?
A narrativa que Putin utiliza, como a desnazificação da Ucrânia, pretende sobretudo legitimar uma ação ilegítima contra um Estado soberano que viola o direito internacional público, nomeadamente o art. 2.º, para. 4, segundo o qual "os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado". Não podemos dizer se os avanços russos estão a decorrer ou não como planeado, uma vez que desconhecemos o planeamento quer da invasão, quer da condução das operações. Provavelmente, Putin não esperaria a resistência que o povo ucraniano está a revelar, nem tão-pouco o estoicismo do presidente Zelensky. Depois do término do cessar-fogo acordado relativamente aos corredores humanitários, podemos esperar um agravamento dos ataques às principais cidades e infraestruturas críticas.
Houve vários alertas de que estaria iminente, mas ficou surpreendida com o timing e a escala da invasão russa da Ucrânia?
Claro que fiquei surpreendida! Depois da invasão conseguimos identificar alguns indicadores que poderiam indiciar as ambições territoriais por parte do Kremlin, desde logo a invasão da Crimeia em 2014, mas ninguém previra que Putin poderia conduzir um ataque a todo o território ucraniano. Relativamente ao tempo escolhido, vislumbra-se que Putin poderá ter percebido que a balança de poder estava desequilibrada a seu favor. A UE estava fragilizada pela gestão da pandemia nos últimos dois anos e a apresentação do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, com o foco no apoio à transição ecológica e na promoção do crescimento sustentável, iria penalizar os interesses económicos russos. Como tem sido reportado nos últimos dias, há vários Estados-membros europeus com uma elevada dependência energética face à Rússia, quer ao nível do petróleo, quer do gás natural. A transição ecológica iria reduzir as exportações da Rússia a longo prazo. De acordo com um relatório publicado esta terça-feira pela organização ecologista Transport & Environment (T&E) a UE paga diariamente cerca de 260 milhões de euros pelas importações de petróleo russo. Mas não podemos esquecer que nas relações internacionais, os vácuos de poder tendem a ser ocupados. A perceção da fragilidade e falta de coesão europeia terá sido o derradeiro catalisador.
Qual será o objetivo final de Putin? É de temer que as suas ambições imperialistas não se fiquem pela Ucrânia e possam alastrar a outros países da ex-URSS?
O objetivo final de Putin, apenas ele e o seu governo saberão qual é. Podemos antecipar vários cenários, como o alargamento do espaço de influência da Rússia. Já em 2008, a Rússia tinha ocupado 20% do território da Geórgia, reconhecendo a independência da Abcásia e da Ossétia do Sul. Nos últimos dias, o presidente da Moldávia recebeu o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, uma vez que teme que a presença militar russa na região separatista de Transnístria antecipe que a Moldávia seja o próximo alvo do ataque russo. Cumpre-me sublinhar que estes dois países pediram adesão à UE, logo nos primeiros dias da invasão da Ucrânia. Mas outros países poderão neste momento estar em perigo.
Cada vez mais especialistas falam na hipótese de conflito nuclear. é uma ameaça que visa dissuadir a NATO de intervir ou Putin pode mesmo ir por esse caminho?
No início do conflito, devo confessar, que mantive a narrativa em torno do poder nuclear como um elemento exclusivamente estratégico e, necessariamente, dissuasor que Putin estaria a utilizar apenas para provocar o medo e dissuadir os aliados de um possível auxílio à Ucrânia. No entanto, com a escalada do conflito e a acusação ucraniana que a Rússia já utilizou armas termobáricas neste conflito, temo que a Rússia possa utilizar armas nucleares táticas. O poder nuclear que fora durante o período da Guerra Fria exclusivamente estratégico poder-se-á tornar num poder tático.
Fala-se já mais de 2 milhões de refugiados ucranianos. A Europa está pronta para lidar com este afluxo e com esta crise migratória?
Neste momento o ACNUR já prevê que nos próximos dias esses números possam ser quase duplicados, estimando quatro milhões de refugiados. A Europa está melhor preparada para responder aos desafios económicos, políticos e sociais dos refugiados ucranianos do que a possibilidade de uma invasão de um Estado-membro da UE que não seja, simultaneamente, membro da Aliança Atlântica. Esta invasão teve o efeito, paradoxalmente positivo, de unir os Estados-membros europeus e conciliar as opiniões públicas de todos os Estados-membros em torno dos ucranianos. Com efeito, a UE funda-se nos valores "do respeito pela dignidade humana e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade" segundo o art. 2.º do Tratado de Lisboa, por isso e, não obstante, os constrangimentos económicos que a UE irá enfrentar nos próximos tempos estou convencida que os europeus serão solidários e fraternos e saberão encontrar os instrumentos de resposta necessários.
Qual o papel da China neste conflito? Tem garantido que pode mediar, é uma opção?
A China inicialmente manteve-se neutral, quer no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, quer na Assembleia Geral e, por isso, eu própria cheguei a sugerir que a China poderia assumir-se como um possível mediador, mas não sabemos o que o presidente Putin ou o presidente Xi Jinping acordaram a 4 de fevereiro , em Pequim, numa cimeira na qual afirmaram que a "amizade entre ambos os países não tem limites". Com efeito, nas últimas horas tive conhecimento que o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Zhao Lijian, veio acusar os EUA e a NATO de serem os responsáveis pela invasão russa à Ucrânia. Este discurso altera a posição da China no conflito e compromete, inevitavelmente, a sua capacidade de mediação.