"A História de Espanha é tanto os Reis Católicos como Luis Vives" 

Ministro espanhol da Cultura e Desporto veio a Lisboa inaugurar a exposição Ídolos - Olhares Milenares, no Museu Nacional de Arqueologia. Professor de Filosofia do Direito e de Filosofia Política, fala das culturas ibéricas, também da defesa da Espanha plural e de como a pandemia, apesar de todos os problemas, trouxe recordes de leitura ao seu país.
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Quem visitar esta exposição de ídolos antigos em Lisboa o que pode aprender da História da Península Ibérica? Porque mais do que a História de Espanha ou a de Portugal é uma História comum antes das nações.
Sim, inclusivamente poderíamos ir mais longe e falar de uma História da humanidade em território comum partilhado. Esse tempo da História, esse passado comum, é também um elemento de comunicação agora entre duas nações, dois povos soberanos, Espanha e Portugal.

Pode dizer-se que a Ibéria era um foco de civilização importante ainda antes da chegada dos romanos?
Exposições como esta mostram que o ideal da condição humana está muito presente desde o princípio, é a própria ideia do antropocentrismo, e na Península Ibérica dessa época, de há 3000 anos a. C., já estava presente. Toda a simbologia é a exaltação, o reconhecimento do próprio ser humano. Demonstra cultura, demonstra civilização e também demonstra que a exaltação do ser humano não é um conceito moderno.

O que acha que hoje distingue culturalmente os portugueses dos espanhóis? As semelhanças são maiores do que as diferenças?
Eu creio que são muito maiores as semelhanças, pois partilhamos valores que não são só de Espanha e Portugal como têm também um caráter universal, mas nós temos uma proximidade histórica que cria laços, como nas famílias. Temos duas línguas diferentes - mas Espanha também tem outras línguas próprias de determinados territórios -, mas tudo o mais é perfeitamente comum. Há autores como Fernando Pessoa, por exemplo - que me influenciou muito na minha formação -, onde há muitos elementos culturais que são comuns, que partem da mesma visão do mundo, com todos os matizes e as diferenças que a enriquecem.

Falando das diferentes línguas de Espanha, e sendo o senhor de Valência, como é que se vive em Valência, por exemplo, todo este processo da Catalunha?
Bom, simplificando, pois a realidade é muito mais complexa, em Espanha há três posições. Há uma visão de Espanha muito reducionista, no sentido de muito identificada com o castelhano apenas, e, portanto, centralista também; há uma posição desagregadora, que tem a ver também com os movimentos independentistas, que se afasta da ideia de Espanha, pois, historicamente, em Espanha sempre houve separatistas, e há uma posição, que eu creio maioritária, que representa o PSOE a que pertenço, que é a de uma Espanha plural, não no sentido imperial, mas sim no sentido integrador. As diferentes línguas espanholas, tal como está na Constituição, fazem parte do todo de Espanha. Portanto, esta posição está afastada da uniformidade simplificadora e reducionista da visão centralista e também daquela que pode ser uma posição refratária e independentista. Talvez este seja o momento, apesar das dificuldades, em que estamos melhor - temos uma Constituição, pertencemos à União Europeia, vivemos numa democracia constitucional, portanto com direitos, com liberdades.

Há uma grande evolução numa Espanha em que o separatismo catalão é, hoje em dia, pacífico, enquanto no País Basco havia há uns anos o terrorismo da ETA, e o senhor foi responsável pelo apoio às vítimas do terrorismo, portanto pode falar sobre isto...
Sim, fui diretor, responsável pelo apoio às vítimas do terrorismo no Ministério do Interior durante os últimos sete anos da ETA, desde as vítimas do atentado no terminal 4 do Aeroporto de Barajas até aos últimos dois guardas civis assassinados em Maiorca, que morreram muito jovens com uma bomba colocada no carro-patrulha. Essa experiência marcou-me muito e também compreendeu o final da ETA. A ETA era uma organização terrorista, e eu distingo sempre o que é o nacionalismo - um sentimento perfeitamente democrático - do que é uma operação terrorista. No País Basco, há bascos nacionalistas pacíficos - a grande maioria, a imensa maioria. Mas a era da organização terrorista ETA durou muito em Espanha, demasiado tempo, começou no franquismo e terminou em 2010. Portanto, eu não iria mais além da bandeira que eles utilizaram como pretexto, em caso algum identificaria uma coisa com a outra.

Esta vitória sobre a ETA foi uma vitória importante da democracia espanhola?
Claro, da democracia espanhola e da democracia basca. O povo basco ganhou à ETA e o povo basco inclui nacionalistas e não nacionalistas. Hoje há um governo de coligação de cariz nacionalista e é uma sociedade pacífica, desanuviada. A ETA é provavelmente o episódio mais negro da nossa História recente, e vencemo-lo. É um êxito de todos os democratas espanhóis e bascos, nacionalistas e não nacionalistas. Na Catalunha há um sentimento nacionalista que tem muitos anos, nuns casos tem uma veia independentista e noutros não - pois há o catalanismo que se integra em Espanha. As variantes são muitas e a complexidade do tema é enorme, portanto eu não simplificaria. Em todo o caso, as ideias são todas defensáveis em democracia, mas há que respeitar também os procedimentos, as regras do jogo, que são tão importantes como os conteúdos. Há um livro que eu recomendo quando me dizem, às vezes, que tem de haver um ministro da Cultura e do Desporto, que são áreas que têm muito em comum, como, por exemplo, os valores. É um livro de dois grandes escritores - Paul Auster, um escritor americano, e Coetzee, escritor sul-africano que recebeu o Nobel da Literatura -, que são dois grandiosos escritores e ambos aficionados do desporto, o norte-americano do basquetebol e o sul-africano do râguebi. Os dois fizeram um livro com cartas que escreveram um ao outro e nas quais fazem uma reflexão sobre o que significam os melhores valores da civilização humana, onde falam da importância das formas e vinculam-nas ao desporto. Falam de tudo o que significa a sofisticação do desporto, das regras. Assim, uma pessoa pode ser ou não independentista, mas as regras do jogo têm de ser respeitadas, se não quebra-se a convivência. É como no futebol, importante é não só meter o golo mas metê-lo da forma adequada, não o meter com a mão nem em fora de jogo.

Crê que a Constituição de 1978 foi apenas a possível naquela época de transição para a democracia ou tem uma fórmula que permite ainda, hoje em dia, resolver estas diferenças?
Foi a Constituição possível naquele momento, mas parece-me que, vista com alguma perspetiva, não só foi a melhor possível naquele momento como é uma boa Constituição. Creio que na Constituição assentam as bases para que não aconteça o confronto dos espanhóis. Tivemos três grandes problemas históricos que levaram os espanhóis a enfrentarem-se, cujo corolário foi a Guerra Civil de 1936-1939 e a ditadura de Franco. Uma é a questão territorial, e a Constituição fixou as bases de reconhecimento das nacionalidades que formam a ideia de Espanha e, portanto, da sua singularidade linguística, cultural, o estado autonómico, uma forma quase federal. A segunda é a questão religiosa, que também provocou um confronto entre, por um lado, essa ideia da Espanha confessional, cuja expressão máxima foi o nacional-catolicismo franquista, que deriva dos Reis Católicos, etc., e uma Espanha laica, civil, que em muitos momentos da História foi até ao outro extremo e foi anticlerical, digamos. Essa dualidade é superada também com a Constituição, com o Estado não confessional. Eu publiquei um livro há dois ou três anos que se chama Elogio de la laicidad. Hacia el Estado laico: la modernidad pendiente. Essa modernidade marca um caminho até um Estado laico, não num sentido anticlerical ou contrário à religião, mas de respeito pela liberdade de consciência consagrada na Constituição. O terceiro tema que nós, espanhóis, enfrentámos foi a decisão entre a monarquia e a república, e também aí se encontrou a fórmula: não podia ser a monarquia constitucional, ou seja, a monarquia histórica com poder, nem a república, que não poderia vigorar nesse momento, pois já havia sido designado o rei D. Juan Carlos. Era algo que havia que assumir para a reconciliação, e então encontrou-se a monarquia parlamentar, quer dizer, um rei, chefe de Estado, mas sem poder executivo nem legislativo. Portanto, os três grandes problemas que enfrentámos foram resolvidos com fórmulas sintéticas, que não são de tudo ou nada, mas permitem-nos a todos conviver. Parece-me que, vista por este prisma, é uma grande Constituição. Mas isso não quer dizer que não tenha de ser atualizada.

A cultura espanhola é também um elemento unificador dos espanhóis, ou seja, ninguém olha para Cervantes como um castelhano, é olhado como um espanhol. Podemos afirmar isto?
Bom, há aí dois sentidos - se se ler, por exemplo, Mater Dolorosa, o livro de Álvarez Junco, o ideal de Espanha como nação soberana no século XIX é a Espanha da soberania nacional; se pensarmos na Hispânica maior, podemos recuar muito mais na História, como fizemos com esta visita ao museu, e irmos ao encontro da pré-história dos nossos povos, mas a ideia de nação soberana vem do século XIX. Do ponto de vista cultural, não do ponto de vista político-jurídico, a ideia de Espanha é muito mais ampla, pode-se voltar muito mais atrás na História. Uma das coisas que fez o ditador Franco foi apagar da História de Espanha tudo o que significavam os grandes homens e mulheres que falaram de Espanha de forma muito elaborada, muito culta, mas crítica e construtiva. Aí encontramos Luis Vives, o grande humanista valenciano, espanhol, universal, numa tradição de homens e mulheres que foram rechaçados muito tempo da História de Espanha e que são a cultura do país. Eu creio que agora, em democracia, há que reivindicar todas as tradições e, portanto, a História de Espanha são tanto os Reis Católicos como Luis Vives.

Quando viaja como ministro da Cultura de Espanha, sente que está a representar um país com uma das maiores pujanças culturais?
Acho que o que nos dá uma força enorme é a língua. O espanhol é uma língua universal, a língua de Cervantes. Acontece algo de parecido com o português e com o que significa também na História da humanidade. São línguas que dão uma força enorme às nações que estão na sua origem. Mas todos os povos têm a sua cultura e tem de haver um grande respeito pela cultura dos outros, pois todas confluem para a cultura universal. Eu sou espanhol e gosto muito do meu país, mas também tenho um olhar universalista - não tanto em termos de globalização, que é um conceito mais económico -, um olhar de universalidade dos valores. Por exemplo, os valores da Revolução Francesa são franceses mas também universais - a liberdade, a igualdade e a solidariedade.

Como é que a pandemia está a afetar a vida cultural em Espanha? Em Portugal tem tido um forte impacto.
Tem tido um impacto muito forte. Foi duro e continua a sentir-se. É verdade que conseguimos atenuar um pouco os danos com dois tipos de ações: por um lado, com ajudas económicas que aliviaram um pouco - a cultura, em Espanha, é uma atividade que é partilhada por outras instituições públicas, pelas comunidades autónomas -, mas o Ministério da Cultura fez tudo o que era possível com os apoios. Aí, conseguimos incorporar as salas de cinema, que estão numa situação complicada, os festivais de música, os tablaos flamencos, o teatro, a dança... Tudo o que depende da presença do público sofreu muito.

Essas medidas permitem atenuar a crise económica das pessoas, mas há uma produção cultural que se perdeu.
Evidentemente. Por isso a outra medida que tentámos manter, num equilíbrio imperfeito e muito complexo, que foi a "cultura segura". Em Espanha, depois de três meses, entre março do ano passado e o final de maio, em que estivemos confinados, a atividade cultural voltou. É verdade que limitada, dependendo do sítio e da evolução da pandemia, nuns casos reduzida a 50%, noutros a 60%, 75%, dependendo do momento. Mas de então até agora, salvo em circunstâncias e lugares muito concretos, porque o pico da pandemia afetou muito a cultura, os teatros, os cinemas, os concertos de música, o Teatro Real de Madrid, os museus, estão abertos. Portanto, entre os apoios que estão nas nossas mãos, incluindo os subsídios de desemprego para os artistas dos espetáculos públicos e para os técnicos da cultura, e essa ideia de "cultura segura" e "cultura aberta" conseguimos que os danos fossem os menores possíveis. Eu acho que o único setor que resistiu melhor foi o do livro, o que também se compreende, porque, ao estarmos muito mais em casa, lemos mais. Também houve a baixa do IVA do livro eletrónico para 4%, que foi um dos elementos que permitiu que os níveis de leitura em Espanha durante o confinamento atingissem recordes que nunca tínhamos atingido antes. Claro que as pessoas estavam em casa e tínhamos ajudas importantes para as livrarias de bairro, para as livrarias independentes, o que permitiu que a cultura nesta pandemia, apesar dos danos evidentes, tenha conseguido resistir.

Esta exposição de ídolos é um bom exemplo da cooperação cultural entre os dois países. Há mais iniciativas a serem incrementadas?

Sim. É com a colaboração entre Portugal e Espanha, através dos seus museus, que hoje conseguimos esta exposição maravilhosa, que eu recomendo que visitem. Mas temos outros projetos importantes, pois estamos na altura da celebração dos 500 anos da viagem de circum-navegação de Magalhães e de Elcano entre 2021 e 2023. Neste contexto, teremos de fazer muitas coisas para celebrar as efemérides. Também noutras áreas culturais, e já tive uma conversa com a ministra da Cultura portuguesa sobre isso, tanto quanto o permitam as circunstâncias, pensamos nos próximos meses implementar um grande festival de fado e de flamenco - em Espanha de fado e em Portugal de flamenco.

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