A bordo do Tourville. Submarino nuclear de ataque francês passou por Lisboa a caminho das “águas frias”
"Aqui não podem mesmo tirar fotografia... por causa das armas”, alerta o capitão de fragata Laurent diante de uma porta na dianteira do submarino nuclear de ataque Tourville. Entramos atrás do comandante e, de um lado e do outro de uma estreita passagem metálica, repousam os torpedos luzidios e, atrás destes e dentro de contentores pretos, os mísseis. “Aqui temos os tubos de lançamento das armas”, aponta o comandante, antes de explicar que a diferença entre um torpedo e um míssil é que, o primeiro, fica debaixo de água até atingir o alvo, enquanto o míssil é lançado debaixo de água, emerge e vai atingir um alvo à superfície. A que distância? “Milhares de quilómetros, pode pôr milhares”, garante o militar, sem mais pormenores.
Numa escala em Lisboa a caminho das “águas frias do Atlântico”, onde vai continuar a ser testado, o Tourville prossegue o seu percurso para ser oficialmente admitido ao serviço da Marinha Francesa. Estamos a falar de uma embarcação com mais de 5000 toneladas e 100 metros de comprimento, equipada com a mais recente tecnologia de ponta.
“Vamos testar a resistência do submarino e de todos os seus equipamentos”, explica o capitão de fragata Laurent (sem apelido, como é regra) de pé no convés do submarino, antes de nos convidar a entrar pela escotilha para uma visita ao interior. Antes disso, ainda explica que França está num momento de transição entre os submarinos de classe Ruby e os da classe Sufren, como o Tourville.
A última vez que um submarino nuclear de ataque francês atracou em Lisboa foi há 11 anos - o Améthyste, em 2014. Mas o objetivo agora, explica o comandante do Tourville - que deve o nome ao almirante Anne Hilarion de Costentin, conde de Tourville, que se distinguiu em batalhas navais, como a de Lagos em 1693, que opôs a frota francesa à anglo-holandesa ao largo do Algarve - é tornar a capital portuguesa uma escala regular para os submarinos franceses.
Convidados a ver o interior, descemos uma estreita escada de metal que nos leva pela escotilha até um estreito corredor e sentamo-nos numa simpática salinha - o que o capitão de fragata Laurent descreve como área-vida do navio - onde este nos explica que o Tourville tem uma tripulação de 75 pessoas, mas com capacidade para embarcar mais alguns submarinistas em formação.
Com a segunda maior Zona Económica Exclusiva do mundo, muito graças aos territórios ultramarinos, a França tem, neste momento, uma frota de dez submarinos - quatro submarinos de mísseis balísticos e seis submarinos nucleares de ataque, como o Tourville. “Dizemos nuclear porque tem propulsão nuclear”, diz o comandante, antes de explicar o tipo de missão em que a embarcação pode estar envolvida.
“Vamos garantir indiretamente a dissuasão nuclear para abrir caminho para os submarinos de mísseis balísticos, fazemos escolta ao nosso porta-aviões, o Charles de Gaulle, protegemos o grupo aeronaval durante os destacamentos de longa duração. Somos também capazes de rastrear e destruir outro submarino com a nossa força de ataque, bem como fragatas inimigas. E, por fim, conseguimos recolher informações, uma vez que um submarino é um espião, seja junto à costa com os nossos mastros optrónicos, o equivalente a periscópios, ou através dos nossos sensores como o sonar, ou ainda para a guerra eletrónica”. E, remata, “podemos também destacar forças especiais, os nossos comandos Hubert, através do submarino”. Além de atacar em terra, “graças aos mísseis de cruzeiro”.
São esses mísseis que vemos mais tarde e cujo potencial destruidor o capitão de fragata Laurent destaca. “É extremamente preciso”, diz, lembrando que o míssil de cruzeiro é “uma arma política”, ou seja, o comandante só o usa quando recebe uma ordem do presidente ou para autodefesa, se estiver a ser atacado. “Sou eu que carrego no botão, mas é ele que dá a ordem através do Estado-Maior das Forças Armadas”.
Outra vantagem do submarino é “o efeito surpresa. Podemos aproximar-nos muito da costa sem sermos detetados”.
Num mundo cada vez mais perigoso, em que os mares são mais um palco no confronto entre potências, algumas pouco respeitadoras do Direito Internacional, a França, garante, o capitão de fragata Laurent “está pronta”. E esta passagem por Lisboa foi uma oportunidade para reforçar a cooperação com Portugal. “A visão que eu tenho, enquanto comandante de submarino, é que Portugal é um aliado sólido. Partilhamos uma visão comum sobre vários objetivos estratégicos”, diz , sublinhando que ambos os países “são favoráveis ao desenvolvimento da Europa da Defesa através da Iniciativa Europeia de Intervenção. São ambos membros da NATO. E, através destas duas organizações, fazemos missões que são muitas vezes comuns”. Durante esta escala, o comandante do Tourville garante que houve ainda trocas com as tripulações dos submarinos portugueses, como o Arpão.
Geopolítica à parte, não deve ser fácil controlar uma tripulação de 75 pessoas dentro de um espaço fechado, passando vários dias debaixo de água, por vezes em situações de pressão? “Temos uma hierarquia militar, cada um sabe o seu lugar, as suas responsabilidades”, afirma o capitão de fragata Laurent, que destaca a competência da tripulação. E garante: “Não diria que é difícil, diria que é apaixonante.” Para o comandante, é importante ter uma embarcação moderna e bem equipada, mas “comandar estes 75 homens, esse é o mais belo aspeto do trabalho.”
Nascido perto de Toulon, a cidade do sul de França onde fica o grande Porto Militar de l’Arsenal, quando era pequeno o capitão de fragata gostava de observar os submarinos nucleares que regressavam. E cedo soube que era isso que queria fazer. “Fiz o curso, entrei na Escola Naval, a escola de oficiais da Marinha Francesa e, depois, a especialização de submarinista”, recorda. Agora, depois de ter chegado a comandante de um submarino nuclear de ataque, o seu objetivo é comandar um submarino de mísseis balísticos.
Claro que comandar um submarino tem os seus desafios, como ter de passar, por vezes, cinco meses no mar. “Os destacamentos de longa duração variam entre dois meses e meio e cinco meses, com escalas para que a tripulação descanse”, explica o capitão de fragata, admitindo que é difícil estar longe da família, mas “temos este espírito de equipa. Quase como uma segunda família. A coesão na equipa é muito forte, é o que nos aguenta”, diz este pai de quatro filhos.
Mas mesmo quando estão debaixo de água, sem acesso ao telefone ou à internet, os tripulantes do Tourville conseguem ter um contacto mínimo com as família através dos “Family”, são curtos e-mails que têm de ser lido pelas organizações internas para garantir que não há fugas de informação.
Dentro do submarino, a tripulação organiza-se em função das tarefas - conduzir a embarcação, controlar os sonares ou o reator nuclear, etc. Para isso, em tempos normais, dividem-se em três equipas: das 8h às 12h, das 12h às 16h e das 16h às 20h, e assim sucessivamente durante a noite. “Quando estamos em zona de operações, estamos mais tensos e aí passa a haver só duas equipas com horários rotativos de seis horas”, explica o comandante. Além disso, cada um tem a sua função, seja as transmissões, o reator nuclear, a saúde ou a cozinha.
Mas afinal, o que se come a bordo de um submarino? “Comemos muito bem!”, exclama o comandante, garantindo que “as refeições são extremamente importantes porque influenciam o moral da tripulação”. E brinca: “Tem de ser bom, senão, é um dos únicos serviços em que o comandante não precisa de intervir, a tripulação trata disso!” Na verdade, explica “conseguimos ter alimentos frescos durante 10 ou 15 dias, depois tem de ser à base de conservas e congelados. Mas temos verdadeiros artistas a bordo!” A começar pelo chef Claude, que vamos encontrar pouco depois na sua cozinha, junto à messe onde os tripulantes tomam as suas refeições.
Alimentos, portanto, não faltarão aos tripulantes do Tourville. Um aspeto essencial quando, como o comandante, já se passou mais de cinco meses no mar. Mas qual foi o máximo de dias seguidos submerso? “Não posso dizer exatamente, mas pode escrever entre 40 e 70 dias.” E garante: “A única coisa que nos limita em termos de autonomia num submarino nuclear são mesmo os víveres. Porque com a propulsão nuclear podemos ficar debaixo de água a uma velocidade muito elevada sem problemas. Não temos de voltar à superfície por causa do oxigénio. Nós produzimos o nosso próprio oxigénio a partir da água. Também criamos água. Posso mesmo dizer-lhe, os dois únicos limites são os víveres e a tripulação. No meu caso, a tripulação não me limita, por isso só restam os víveres”, diz com um sorriso.
Num submarino, claro, os imprevistos podem acontecer. Por isso existem tantas redundâncias a bordo. Dentro da sala onde se monitoriza o reator nuclear e diante dos ecrãs onde este surge, num esquema colorido, o comandante explica que, para a propulsão, o Tourville tem “baterias e diesel. Isto para o caso de o reator parar por razões de segurança e ser preciso continuar a navegar”.
No exterior, num dos corredores que percorrem o segundo dos três andares do submarino, o capitão de fragata aponta para uns cabos junto ao teto e para as máscaras do outro lado e explica “em caso de incêndio, o oxigénio é cortado, por isso temos de colocar a máscara e conectá-las a um cabo de ar”. E como as luzes também se apagam, a tripulação tem de recorrer a umas placas metálicas com relevo colocadas no chão para encontrar o local onde conectar as máscaras.
No mesmo corredor, alinha-se um móvel com dezenas de caixas de metal. “Isto é para se a nossa fábrica de oxigénio avariar. É uma reação química que cria oxigénio”, explica o comandante, acrescentando: “Temos sempre meios de continuar no mar. Um submarino está cheio de redundâncias. Se houver uma avaria, tentamos consertá-la. Mas se não for possível, temos sempre alternativas.”
Aqui chegamos ao fim da parte “visitável” do submarino. Para além de uma porta que não estamos autorizados a transpor, fica a sala do reator nuclear. E, por trás, toda a maquinaria. Virando para a direita, chegamos à sala de comando. Nos ecrãs, veem-se esquemas do submarino Tourville, com réguas que, quando submerso, mostram a profundidade e um outro onde conseguimos perceber onde se encontra cada um dos membros da tripulação. “É aqui que se faz a guerra, através dos sonares, mas também dos mastros optrónicos, o equivalente aos periscópios”, explica o capitão de fragata Laurent. Isso quer dizer que quando está sentado ali na sua cadeira, o comandante já não espreita para o periscópio, enquanto roda para ver tudo à volta? “Não, agora vemos tudo nesses ecrãs. Controlamos o mastro com um joystick e é tudo em vídeo. O mastro sobe, em segundos dá a volta, capta tudo e volta a descer. E depois analisamos tudo nos ecrãs.”
O capitão de fragata Laurent até pode ser fã da interpretação de Sean Connery na pele do comandante Mark Ramius - “estava excelente” -, mas a realidade a bordo do Tourville pouco se assemelha ao filme Caça ao Outubro Vermelho.