O mês de agosto traz a época dos ventos fortes ao Estado do Ceará, no Litoral Nordeste do Brasil. Na Praia do Futuro, um dos pontos mais famosos da capital cearense, Fortaleza, os adeptos do kitesurf aproveitam o embalo da ventania no mar. Em terra, o areal parece que se está a mover. O vaivém dos minúsculos grãos de areia incomoda na pele e dificulta a chegada a um ponto que não passa despercebido: a barraca Vela Latina , que sobrevive, mas já quase soterrada. Foi aqui que no dia 12 de agosto de 2001 seis portugueses foram torturados e enterrados vivos a mando de um compatriota..O DN esteve no local nas vésperas dos 23 anos do crime e encontrou uma cena de abandono. Uma barraca de praia brasileira é uma combinação de bar e restaurante, com espaço para animação musical. Come-se, bebe-se, assiste-se a concertos, tudo com vista para o mar. No auge de sua atividade, a Vela Latina tinha todos esses elementos, o que talvez tenha ajudado o português Luís Miguel Militão Guerreiro a atrair as seis vítimas para a morte..Hoje, pela força dos ventos, alguns muros da barraca já vão a meio caminho de serem engolidos pela areia e uma porta frágil, de madeira bastante deteriorada, está trancada e inutilizada. Ninguém mais a abre, pois é a porta de acesso ao cômodo onde as vítimas foram espancadas com paus, baleadas e, por fim, jogadas numa vala cavada no chão, para morrerem soterradas..O crime.A jornalista Carla Soraya conta ao DN que estava a sair do trabalho, no dia 24 de agosto de 2001, quando um colega a informou de que os portugueses, desaparecidos há dias, tinham sido encontrados. O desaparecimento do grupo já era noticiado na comunicação social do Ceará, portanto a primeira reação da jornalista foi fazer uma piada ao saber que os estrangeiros estavam na Praia do Futuro. “Que danados, estavam na praia o tempo todo!” Até que ouviu o resto da história: os homens estavam enterrados. “Com o passar do tempo, as investigações foram mostrando detalhes mais escabrosos”, diz Soraya..Militão convidou os seis compatriotas para uma semana de férias em Fortaleza. Foi buscar os turistas ao aeroporto e de lá seguiram para a Praia do Futuro. A barraca estava arrendada há alguns meses para um cúmplice de Militão. Depois de horas de bebidas e diversão, começou a tortura. Os cinco agressores renderam e espancaram as vítimas. O plano inicial, segundo depoimentos dos criminosos à justiça, era apenas roubar o dinheiro, mas acabou no que a comunicação social brasileira apelidou de “chacina dos portugueses”..Carla Soraya lembra-se vivamente dos detalhes na cena do crime. “Era um cheiro insuportável. Cada vez que a gente voltava à barraca, tinha que despir a roupa, porque o cheiro da decomposição dos corpos ficava impregnado nela”, lembra. Foi a jornalista quem, numa entrevista com o médico responsável pela autópsia dos corpos, trouxe uma informação que escancarou a brutalidade do crime. “A autópsia revelou que eles tinham areia nos pulmões. Foram enterrados vivos, ainda tentaram respirar debaixo da terra, por isso a areia chegou até aos pulmões deles. Isso torna a situação ainda mais inacreditável”, destaca..Os contornos do caso só foram conhecidos após a prisão de Militão, que estava em fuga e foi encontrado já fora do Estado do Ceará, depois de gastar cerca de 25 mil reais (4157 euros na cotação atual) do cartão de crédito de uma das vítimas. Presos, os cinco envolvidos contaram os pormenores não só aos polícias e autoridades da justiça, mas também aos inúmeros jornalistas que acompanharam toda a operação. “Não se falava noutro assunto na cidade”, relembra Carla Soraya. O próprio Militão deu entrevistas, bem ao estilo do que acontece em coberturas de casos policiais no Brasil, e ficou a ser referido nas peças como “o monstro de Fortaleza”..Militão, ainda algemado, deu entrevistas sobre o crime.EPA..Mãe e filha.Adelina e Virna moram no local.Foto: Caroline Ribeiro / Diário de Notícias.A situação de abandono na qual se encontra atualmente o local do crime leva qualquer pessoa a pensar que ninguém mais pisa aquele espaço desde que os corpos das vítimas foram desenterrados. No entanto, a situação é bem diversa. Num imóvel vizinho ao onde os portugueses foram assassinados, Adelina Farias Barroso, de 71 anos, vive com a filha mais nova, Virna Sousa, de 28..As duas recebem a reportagem do DN com a simplicidade de quem sabe que os obstáculos impostos pela vida se fazem presentes para que sejam superados. Aliás, de superação Adelina percebe bem - e não apenas pela coincidência de ser essa a palavra escrita nas sua T-shirt cor-de-rosa..Agora reformada, Adelina é proprietária da barraca Vela Latina desde 1978. Alguns meses antes da chacina, recebeu de um dos comparsas de Militão, não se lembra exatamente de quem, uma proposta para arrendar o espaço, que aceitou. “Aluguei por seis meses por um salário mínimo por mês”, conta ao DN. Na época, o ordenado mínimo no Brasil era de 180 reais, quase 30 euros na cotação atual. “Esse aluguer saiu caro”, lamenta..Já naquela altura Adelina e Virna, que tinha cinco anos, viviam no local, num espaço reservado do salão da barraca, onde acontecia a movimentação de clientes e funcionários. Na noite do crime, as duas estavam fora, em casa de familiares. Depois de os corpos serem encontrados, a dona do imóvel chegou a ser investigada, mas logo foi constatado que não havia qualquer envolvimento com o grupo de assassinos..A barraca ficou bastante tempo interditada, tanto para as investigações criminais como para que as lideranças da autarquia “resolvessem o que fazer”, diz a proprietária, que conta ter recebido várias promessas. “Primeiro, disseram que seria construído aqui um memorial para homenagear os mortos, mas não aconteceu nada. Uns tempos depois, disseram que seria uma igreja, mas tudo conversa”, ressalta..Entretanto, o tempo foi passando e Adelina viu morrer a esperança de receber qualquer ajuda para recuperar a atividade da Vela Latina. Depois da chacina, tentou vender a barraca algumas vezes, mas ninguém a quis comprar . Dificuldade que não relaciona apenas com o crime, mas com o contexto de abandono geral desta zona da Praia do Futuro pelo poder público..Uma rápida caminhada pelos arredores confirma a situação. Além da Vela Latina, há outras estruturas deterioradas, lixo espalhado por vários pontos do passeio e terrenos vazios, fora os casos de assaltos. “Já antes do crime era uma zona que teve o seu auge, mas não era mais tão frequentada. Depois ficou pior”, comenta a jornalista Carla Soraya..Pelo menos uma vez por ano Adelina precisa de contratar um trator para remover areia e tentar evitar que a barraca seja completamente engolida . O serviço mínimo contratado são 10 horas, com cada hora a custar 300 reais. Ao todo, a reformada gasta pelo menos três mil reais (quase 500 euros) sempre que precisa de desenterrar os muros do local. Para quem ganha a vida como vendedora ambulante de alimentos na praia e recebe uma pequena reforma, a despesa é grande..Já um peso maior, para a filha, é a “falta de noção” de algumas pessoas. “Tá cheio de vídeos no YouTube, gente que passa aqui e filma, dizendo que a culpa foi nossa. Tem uns comentários pesados”, conta a estudante ao DN. Ela diz que descobriu recentemente que um jornal local “fez um filme” sobre a chacina. “Tava cheio de drones aqui em cima um tempo, filmando do alto, mas ninguém entrevistou a gente”, reclama..Se para mãe e filha o estigma parece que não vai acabar, para o mentor do crime a justiça brasileira garante o recomeçar de uma vida. Luís Miguel Militão Guerreiro foi condenado, em 2002, a 150 anos de prisão..O Tribunal de Justiça do Ceará informou o DN que ele cumpre a pena desde janeiro de 2023 em regime semiaberto, podendo sair do presídio por alguns dias, “em razão do seu comportamento carcerário e do percentual de pena cumprido”, e deverá sair em liberdade em 2027..caroline.ribeiro@dn.pt