Avanços nas negociações sem trégua nem ajuda a Mariupol
Enquanto as delegações da Rússia e da Ucrânia se reuniam no maior palácio de Istambul, Dolmabahce, para se negociar um acordo de paz, Moscovo enviava mais um sinal em como pode prosseguir a destruição do país vizinho mesmo sem conseguir tomá-lo, ao fazer explodir o edifício da administração regional em Mykolaiv, uma cidade que tinha sido poupada nos últimos dias. Moscovo disse que iria "reduzir drasticamente" a atividade militar perto de Kiev e Chernihiv "para aumentar a confiança mútua e criar as condições necessárias para novas negociações", uma declaração vista com muitas reticências, uma vez que a invasão terrestre está a ser repelida pelos ucranianos nessas regiões. A boa vontade russa não se estende a Mariupol, com Vladimir Putin a não permitir a entrada de assistência humanitária sem que os ucranianos deponham as armas.
Com a presença do bilionário Roman Abramovich - que na véspera fora notícia, entretanto desmentida, por ter sido alvo de tentativa de envenenamento, tal como outros dois negociadores ucranianos, numa ronda negocial no início do mês - , a Rússia terá deixado cair a exigência da "desnazificação", que era o objetivo não declarado de derrubar o governo e o presidente ucranianos, segundo adiantara o Financial Times. Do outro lado, e como já era sabido, a Ucrânia mostra-se aberta em aceitar a neutralidade, sem acolher bases de forças estrangeiras nem armas nucleares, mas com garantias de segurança vinculativas de outros países, e a possibilidade de integrar a União Europeia com o compromisso de Moscovo não se opor.
Para o negociador chefe da Ucrânia David Arakhamia, as garantias de segurança para a neutralidade do seu país devem concretizar-se num acordo internacional que proporcione o mesmo tipo de proteção que o artigo 5.º do tratado da Aliança Atlântica, que estipula que um ataque a um membro é um ataque a todos. "Insistimos que este deve ser um acordo sobre garantias de segurança assinado e ratificado [pelos parlamentos] para evitar a repetição do erro do memorando de Budapeste", disse Arakhamia. O acordo que o negociador se refere, assinado em 1994 pela Rússia, EUA e Reino Unido não era vinculativo, tendo Moscovo violado o compromisso de não utilizar a força militar contra a Ucrânia em troca da renúncia às armas nucleares que tinham obtido da União Soviética.
Segundo a proposta de Kiev, os países garantes devem consultar-se mutuamente no prazo de três dias após o início da agressão militar ou da guerra híbrida e depois devem prestar ajuda à Ucrânia com o envio de tropas, armas e proteção do espaço aéreo. O conselheiro do presidente Zelensky Mykhailo Podolyak disse que o governo ucraniano só assinará um acordo sobre garantias de segurança se este for ratificado por um referendo nacional, o qual só pode realizar-se após a retirada das tropas russas do país.
Kiev faz mais uma concessão ao propor que as garantias de segurança não devem cobrir para já a Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, nem os territórios sob o controlo de separatistas pró-russos desde 2014. Estas disputas terão de ser negociadas separadamente. No primeiro caso, foi acordada uma "pausa de 15 anos e conduzir conversas bilaterais para discutir o estatuto desse território", período de tempo no qual não pode haver "hostilidades militares". Sobre Donetsk e Lugansk a discussão ficará reservada para as lideranças dos dois países.
O ministro dos Negócios Estrangeiros turco Mevlüt Cavusoglu saudou os "progressos mais significativos" desde o início da guerra, dizendo que as conversações não seriam retomadas no dia seguinte. "A partir de agora caberá aos ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países reunirem-se para resolver as questões mais difíceis", acrescentou, após três horas de conversações. De acordo com os meios de comunicação turcos, os chefes das duas delegações tiveram uma reunião à margem das conversações.
O chefe da delegação russa Vladimir Medinsky disse que houve "discussões substanciais" e que as propostas "claras" e "construtivas" da Ucrânia para um acordo seriam "estudadas muito em breve e apresentadas ao presidente". Também indicou a possibilidade de uma reunião dos líderes de ambos os países - algo que Zelensky pede há semanas. "Quanto a uma reunião dos dois presidentes, dissemos desde o início que será possível quando houver um acordo. A reunião poderia ser multilateral, com a participação dos estados garantes", propôs. "Desde que trabalhemos rapidamente no acordo, e encontremos os compromissos necessários, a possibilidade de alcançar a paz aproximar-se-á", disse Medinsky.
Após as conversações, o vice-ministro da Defesa russo Alexander Fomin prometeu reduzir "drasticamente" a atividade militar junto de Kiev e Chernihiv, mas mais tarde Medinsky disse que não se trata de uma trégua.
Os Estados Unidos reagiram com ceticismo ao anúncio de Moscovo. O presidente Joe Biden, que voltou a falar com os líderes da França, Alemanha, Reino Unido e Itália, disse que há que esperar para ver, enquanto o seu secretário de Estado afirmou que "há o que a Rússia diz e o que a Rússia faz". Antony Blinken disse não saber "se estas declarações refletem uma reorientação sobre a Ucrânia do leste e do sul ou se este é um meio pelo qual a Rússia está a tentar distrair e enganar". Mais tarde, o porta-voz do Pentágono disse que "ninguém se deve iludir" com o anúncio de Moscovo, lembrando que a Rússia tem meios para infligir "uma violência gigantesca". "Acreditamos que se trata de um reposicionamento, não de uma verdadeira retirada, e que todos devemos estar preparados para assistir a uma grande ofensiva contra outras áreas da Ucrânia", disse John Kirby. Também o chefe do governo britânico Boris Johnson se mostrou cético e disse que se "deve julgar o governo de Putin pelas suas ações, não pelas palavras".
Ao nono telefonema entre Emmanuel Macron e Vladimir Putin desde que este último decidiu invadir a Ucrânia, o francês tentou convencer o russo com um cessar-fogo para se avançar com uma missão humanitária francesa, turca e grega. Segundo o Eliseu, Putin disse que iria pensar no assunto. De acordo com o Kremlin, porém, o russo exigiu que os "nacionalistas" ucranianos em Mariupol teriam de "depor as armas" antes de permitir qualquer ajuda de emergência.
Algum otimismo após encontro de russos e ucranianos em Istambul, com cedências à vista. Moscovo anuncia redução de atividade junto a Kiev, mas EUA desconfiam.