"Hoje é martes", dia de despedida comunitária de um habitante desta aldeia. Aqui não é Portugal nem Espanha, não termina um país e começa outro. Este é "al lugar", Rio de Onor para os que vivem em baixo, Riohonor de Castilla para os de "arriba" - e a separação geográfica apoiada no dorso de uma colina é a única fronteira permitida. Ir acima, vir abaixo. Deste povo que inunda os caminhos, serpenteando por duas nações e iludindo os marcos trazidos pelos patriotas, num escárnio de terra batida, espera-se um destino comum: a igreja, onde descansam os restos mortais de um dos seus, Manuel Ximeno, Riodonorês até ao nome..São 10 da manhã e o dia há muito que anunciou a sua chegada nas fraldas das serras de Montesinho e Sanábria, aqui onde dois países se encararam de frente e arregaçaram as mangas para construir um lugar comum. Desses tempos que se perdem na memória dos habitantes - mas que apontam para uma génese anterior à divisão da península em nacionalidades - nasceu uma comunidade e um dialecto, o Riodonorês, falado/cantado quase sem transição para uma ocasional sílaba portuguesa aqui, uma interjeição castelhana ali. Ditam os compêndios geográficos que nos situemos no extremo nordeste de Portugal, e também na comunidade espanhola de Castilla y León, mas os mapas nada sabem destas vidas.. A de Manuel Ximeno foi uma dessas existências forjadas a golpes de gantcha na terra batida da faceira comum, horta em solos de aluvião dos quais todos têm um pedaço, na margem esquerda doRio Onor. Viveu entre bitchos aterradores como o lobo, viveu de bitchos mansos e dedicados como as ovelhas, que estes homens levam a pastar comunitariamente aos coutos, rodando entre si consoante a riqueza de cada um: se tem duas vai um dia, se tem quatro vai dois. A mesma terra batida, desta vez pela enxada do coveiro, espera já por Manuel no pequeno cemitério debroado a branco, ao lado da igreja de granito, uma ilha de lápides dedicadas quase sempre ao mesmo apelido: Preto.."Muita gente aqui é descendente de duas famílias com esse nome, que se foram ramificando e perpetuando", explica António Preto, presidente da junta de freguesia, proprietário de dois belos bovinos de raça barrosã e membro da colectividade que gere um dos dois cafés da terra - bom, dos três, se contarmos com a tienda de "arriba". Nessa parte de cima, o apelido comum curvou-se um pouco à pronúncia castelhana e tem assento nos registos oficiais como Prieto. Ou terá sido ao contrário? .Ana Maria Preto também habitou este vale de soutos verdejantes desde sempre - "há 83 ou 84 anos, que não os conto" e tem outra versão para o negro costume. "Muita gente tomou esse apelido como seu e passou a chamar-se assim. Só isso", como quem sublinha a simplicidade da pertença. Não fala com forasteiros em Riodonorês porque "só faz sentido embalar na pergunta e na resposta", é uma melodia comunitária que não se sujeita a monólogos. Quando a vizinha de "arriba" chega e lhe oferece os buenos dias, Ana Maria embala as pernas para fora do alpendre da sua casa coberta de xisto a medo, que já não distingue as pedras traiçoeiras. Mas a aldeia pôs-se ao caminho para a despedida, e esta aldeia também é ela, a despedida também é sua..A terra batida e cavada continua acompanhada apenas pela enxada à medida que o padre avança no discurso fúnebre, fazendo calar um murmúrio feito de duas pronúncias do norte. São 10.45 e muitos pares de olhos azuis, límpidos como cristais - outra característica comum deste povo, a par do apelido Preto -, a maioria rachados de rugas no lugar onde começa a pele, fitam Manuel Ximeno, deitado de olhos fechados. Invoca-se a esperança de que não estivesse em pecado no momento em que a morte o veio chamar, porque não recebeu a extrema unção. Depois da reprimenda à família - é um desafio manter a fé na fronteira -, as vozes do padre e dos fiéis unem-se nos cânticos. Jesus ressuscitou como os frutos da ceara, relembra o pároco: nada há a temer destas liturgias..Não é que Rio de Onor alguma vez tenha temido partilhar a força telúrica dos seus vinhagos e hortas, mas a certa altura foi necessário estabelecer regras. As leiras que separam as parcelas de terra são pequenas e têm de ser semeadas no mesmo dia, devido a prejuízos causados pelo descuido "de quem chegava atrasado a trabalhá-las". António Preto nomeia o Conselho da aldeia como orgão regulador de toda esta vivência em comunidade e, mais uma vez, quem tem riqueza de terras ou gado tem obrigações e assento neste plenário, sem apelo nem agravo de ser de baixo ou de "arriba". Toca-se o sino, reune-se e "decide-se o dia da sementeira. É só"..Quem repica não é bem o sino, é uma gravação, quando o povo que enchia a igreja dobra o cotovelo branco que os separa do cemitério. Ali estão também Juan Manuel, polícia de Madrid nascido na parte de cima que vem passar férias à aldeia sempre que pode. Conversa ao despique de línguas com Ana Maria, natural da parte de baixo, que é agora técnica oficial de contas em Bragança. Nas opções de vida dos seus vinte e poucos anos repousa o fim de uma era de casamentos que não olhavam a nacionalidades e se mantinham naquela fronteira. Repousa também o prometido esvaziamento de uma aldeia que ainda tem 73 habitantes do lado de cá e apenas 14 do lado de lá. .Manuel Ximeno repousa agora na sua última morada, na mesma aldeia de sempre, e o negro carregado que desceu sobre a sua viúva não mais a abandonará. Já não verá a prometida conversão de Rio de Onor na primeira "aldeia europeia", designação oficial que não trará mudanças a esta forma de vida mas que poderá fazer germinar "melhores acessos, uma escola bilingue, um hotel e uma farmácia", nas expectativas de quem lá mora. São 11.30 e o povo regressa a casa. Alguns atravessam aquilo a que outros chamaram fronteira - "à beira do castanheiro grande" - e colocaram a uma hora de distância, por referência a um meridiano distante. Para este povo, demora apenas um minuto.