Oficialmente chamado Instrumento de Avaliação de Risco de Violência Doméstica (RVD), este documento é utilizado pelas forças de segurança quando uma vítima denuncia uma situação de violência. O objetivo é avaliar o risco ao qual estarão sujeitas de poderem sofrer atos de agressão física grave ou de serem assassinadas. O documento acaba de ser reformulado e, pela primeira vez, inclui, questões específicas para melhorar o atendimento às crianças, jovens e idosos, população que não era contemplada pela ficha atualmente em vigor.A ficha agora aplicada foi criada em 2014 e, desde então, nunca tinha sido revista. O trabalho de atualização foi feito pela Faculdade Egas Moniz, que ganhou o concurso aberto no final de 2023 para este propósito, e reuniu especialistas da área da Psicologia, do Direito e da Criminologia. A instituição conduz, há 13 anos, investigação científica no âmbito da violência doméstica.De acordo com a coordenadora do projeto, “a atual ficha, que ainda está em vigor, está muito direcionada à violência no contexto das relações de intimidade, especificamente às mulheres vítimas”, explica Íris Almeida ao DN. “Nós sabemos que esta é uma realidade em Portugal e também em todos os outros países, mas não nos podemos esquecer de que a violência doméstica tem outras vítimas”, diz a professora, a afirmar que “o grande desafio” na construção do novo documento passou por tentar criar “uma ferramenta que contemple todas as tipologias de violência doméstica. Contra crianças e jovens, violência contra pessoas idosas, violência filio-parental, porque nós sabemos que, em 10 anos, a violência doméstica evoluiu. Há novos fatores, há uma realidade diferente”..Enquanto a ficha atual traz questões como “a vítima está grávida ou teve bebé nos últimos 18 meses?” ou se “o ofensor demonstra ciúmes excessivos e tenta controlar tudo o que a vítima fez?”, a coordenadora diz que, sem entrar em pormenores, a nova versão introduz perguntas relacionadas com fatores de vulnerabilidade, de dependência física e emocional, de cuidado, passa por estratégias que são utilizadas para educar e também olha para processos de proteção que tenham sido executados no passado no âmbito familiar.Questões que, segundo a professora, fazem sentido porque “nós não nos podemos esquecer daquela franja de vítimas que também existem: crianças, jovens, pessoas idosas”..Rita Júdice, sobre violência doméstica: “Não me conformo com estas mortes e com todo o sofrimento que provocam”.Espaço Júlia completa 10 anos e vai abrir “casa de ponte” para vítimas de violência doméstica .TestesDurante os meses de novembro e dezembro do ano passado, a equipa da Egas Moniz realizou uma fase de testes, em que a ficha atualizada também foi aplicada às vítimas, nas esquadras de certas regiões do país, em conjunto com o documento em vigor.Segundo a professora, na avaliação do risco em casos de violência em relacionamentos íntimos os resultados das duas versões foram similares. De uma forma geral, para estas situações, “os resultados foram muito positivos, nesta perspetiva, de que não havia variações do nível de risco”, salienta Íris Almeida.No entanto, quando o teste foi feito à avaliação de risco às vítimas idosas, crianças e jovens, a atualização mostrou que o instrumento atual já poderia estar a falhar.“Embora, no curto espaço do piloto, a maioria foram vítimas mulheres no contexto de relações de intimidade, tivemos outras vítimas. Conseguimos perceber que os novos fatores são preditivos para a reincidência da violência”, diz a professora.Íris Almeida recusa estabelecer uma relação direta “do que é que está a falhar. Se é a ficha que está a falhar, se é a resposta e destaca que, com a mudança na realidade do crime no país, é preciso reconhecer que o instrumento respondeu às necessidades da altura em que foi criado.“Costumo dizer que temos de manter uma perspetiva positiva. Hoje em dia, todas as instituições e profissionais acabam por ser dotados de conhecimentos que não tínhamos há 20 anos, todas as instituições estão voltadas para dar uma resposta. A ficha na altura foi construída para a realidade do momento. Não posso dizer que a ficha não funciona”, afirma.FormaçõesUma outra novidade da ficha atualizada é que foi construída para ser utilizada a nível nacional não só pelas forças de segurança, mas também pelos técnicos da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD) e todos os profissionais que trabalham nestas área, para “que falem todas a mesma linguagem, utilizem a mesma ferramenta”, frisa a coordenadora.A Faculdade Egas Moniz está a realizar formações para a aplicação do instrumento, inicialmente com elementos das forças de segurança, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais, técnicos da rede de apoio, que devem continuar até ao final deste mês.De acordo com o Ministério da Juventude e Modernização, a nova ficha deverá estar implementada já em fevereiro, com a possibilidade de, segundo Íris Almeida, ser aplicada a vítimas anteriormente atendidas, “já que a avaliação de risco é refeita sempre que necessário”.APAV concorda com atualizaçãoA nova ficha de avaliação de risco de violência doméstica será distribuída com um guião para auxiliar as forças de segurança e as entidades da rede de apoio no preenchimento da mesma, explicou a ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, na sessão de início da formação com as forças de segurança. “As ações têm uma cobertura nacional para que possa chegar a toda a gente”, frisou.Para a gestora da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Joana Menezes, a ficha constitui uma ferramenta importante. “Ajuda a definir as estratégias de intervenção que podemos ter para garantir a segurança daquela pessoa e garantir que não venha a ser vítima de uma situação mais grave. Isto pode ir desde a construção de um plano de segurança com a vítima, como pode dar indicação ao Sistema de Justiça, por exemplo, sobre o que é que pode ser necessário fazer, nomeadamente as medidas a aplicar ao agressor”, explica ao DN..As falhas do Estado na violência doméstica.Para a responsável, as características das vítimas, dos agressores e outros contornos que envolvem crimes de violência doméstica são, por vezes, muito va- riadas, por isso dar uma resposta específica a cada caso é um desafio. Joana Menezes explica que instrumentos como a ficha de avaliação de risco são elementos que podem ajudar neste sentido, e concorda com a revisão do modelo atual.“O objetivo será que a avaliação de risco caminhe sempre no sentido de permitir uma avaliação mais ou menos credível, tendo em conta toda esta variedade das pessoas, e claro que isto é um objetivo ambicioso, mas é por isso que a teoria académica diz que as avaliações de risco devem ser sempre instrumentos em mudança, que se vão adaptando às mudanças daquela sociedade”, explica, completando que “ainda bem que se prevê esta alteração, é um instrumento que deve estar em constante alteração e em constante adaptação”. A gestora faz parte do grupo a receber formação na Faculdade Egas Moniz.O mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) mostra que os casos de violência doméstica cometidos contra menores estão em crescimento desde 2021 em Portugal. Naquele ano, foram 639 ocorrências. Em 2022, houve 819 registos. Em 2023, foram 964 casos. Entre as vítimas, 28,3% tinham menos de 16 anos e 9,2% tinham entre 16 e 24 anos.A violência contra os menores pode não ser diretamente a física. Na abertura do ano judicial, a ministra da Justiça, Rita Júdice, iniciou a intervenção na sessão com uma interrogação. “Há quatro dias, pouco depois da meia-noite, uma mulher de 46 anos foi morta pelo marido, em sua casa, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos. Foi degolada e ferida na barriga a golpes de faca e de tesoura. Chamava-se Alcinda Cruz. Enquanto isso, alguns dos presentes preparavam a mais importante cerimónia do ano judicial. Aqui estamos. O que temos a dizer aos filhos de Alcinda Cruz?”, disse, em referência ao crime registado no passado dia 9.No cenário geral da violência doméstica em Portugal, tipo de crime que já é o segundo mais denunciado no país, o RASI regista 27 203 ocorrências. O Governo tem destacado que o combate a este crime “é uma prioridade”, conforme a ministra Margarida Balseiro Lopes reforçou, durante sua visita ao Espaço Júlia, em Lisboa, pela celebração dos 10 anos desta entidade que atende vítimas de violência doméstica e é considerada um exemplo de assistência.caroline.ribeiro@dn.pt