Ronaldo, Khamenei e o ferro de engomar

Num dia exigem a proibição da burqa, noutro clamam contra os malefícios do feminismo e pela beleza dos papéis tradicionais de género. Ou de como a extrema-direita e o fundamentalismo islâmico, como todos os belos espíritos, se encontram.
Publicado a

“Os homens e as mulheres têm papéis diferentes na família. Por exemplo, o homem é responsável por prover às despesas da família, enquanto a mulher é responsável por cuidar dos filhos. Isto não implica superioridade. São méritos diferentes.”

Lembrei-me destas palavras do líder supremo do Irão (o clérigo-mor daquela teocracia), Ali Khamenei, quando, este sábado à tarde, assisti na SIC-N a um debate sobre “o papel da mulher na sociedade em 2025”. 

Desconhecia, confesso, a existência de um debate nestes termos na sociedade portuguesa — pelo menos de há uns (largos) anos a esta parte. Mas, fiquei a saber, há umas moças que fazem stories nas redes sociais a falar dos malefícios do feminismo, esse temível movimento de defesa da igualdade entre mulheres e homens sobre o qual, fiquei também a saber, uma jovem deputada do partido de extrema-direita teria certificado algures que fez menos pelas mulheres (para além, claro, de garantir que ela pudesse ter uma voz pública e ser eleita para a Assembleia da República) que o ferro de engomar. 

Juntando a isso as declarações de Cristiano Ronaldo, numa entrevista recente, na qual, além de elogiar muito Donald Trump, disse sobre a mulher com quem vive (Georgina Rodriguez) que ela “cuida de mim, o que é muito importante, da família, da casa, o que implica muito trabalho” e que “se fosse o oposto, eu não conseguiria; os homens não são capazes, honestamente”, alguém na direção de informação do canal achou que era “giro” convidar quatro mulheres para “discutir” esse “tema”.

E o que era o tema, mesmo? De acordo com a pivô e duas das convidadas, das tais moças que fazem stories sobre o tão péssimo que é o feminismo, tratar-se-ia de “um novo movimento”, o das “mulheres tradicionais”, que defendem o direito das mulheres a decidir “ficar em casa”.

Por ficar em casa entende-se, se bem percebi, não participar no mercado de trabalho e não prover ao seu próprio sustento e ao de eventuais dependentes. Mais uma vez, tenho de confessar a minha ignorância: desconhecia que havia algum tipo de impedimento, legal ou outro, a que quem quer e pode “ficar em casa”, seja mulher ou homem, “fique em casa”. Talvez, avento, as pessoas em geral trabalhem, mesmo que por vezes não lhes apeteça, porque o dinheiro não cai das árvores e precisam dele para viver — mas, segundo defendem as tais moças das stories, o que complica mesmo a escolha é “o feminismo” e “as feministas”. Como exatamente o feminismo e as feministas fazem isso é que não conseguiram explicar — sendo que, alegou uma delas, são precisas “políticas públicas que efetivamente protejam as mulheres que escolhem ficar em casa”.

Naturalmente que, num país cuja Constituição consagra direitos iguais para todos os cidadãos, tais políticas públicas, a existir, teriam de contemplar qualquer pessoa que quisesse “ficar em casa”— independentemente do género. E o que seria entendido “ficar em casa”? Seria necessário, por exemplo, ter filhos para cuidar? E nesse caso, bastaria um ou haveria número mínimo? E a pessoa que ficasse em casa a cuidar dos filhos poderia ter o tal apoio público se contratasse empregados, ou tinha de ser ela a fazer tudo? Por exemplo, podia pôr as crianças na creche e ir, como exemplificou uma das convidadas da SIC-N, ao Pilates (ou ao café) a seguir? 

Mas divago. Voltemos atrás, à ideia de que o movimento das “mulheres tradicionais” é novo. Ora, tenho novidades: sempre houve mulheres a defender que o lugar das mulheres é “em casa”. Nada de novo nisso, muito pelo contrário. Sempre houve mulheres a defender a submissão aos homens; sempre houve mulheres a exaltar a ideia de que lhes cabe a eles mandar e “prover” e “proteger” e a elas obedecer e ser protegidas. 

Aliás, como se observa por exemplo no país de Khamenei, há até mulheres que andam pela rua a certificar que outras mulheres não violam as leis da desigualdade de género que vigoram no país. As leis que obrigam as mulheres a andar tapadas na rua (no Irão, com roupa larga e com lenço a ocultar o cabelo; no inferno que é o Afeganistão, de burqa e sem poderem sequer deslocar-se sem escolta de um homem da família) porque, precisamente, o lugar delas é em casa — sendo o espaço público dos homens e, por esse motivo, correndo elas enormes riscos se nele se aventurarem sem a proteção daquilo a que os imãs apelidam de “roupa modesta”.

O que há de novo, de relativamente novo, como aliás Khamenei assinalou numa série de tuites em dezembro de 2024, nos quais lamenta a perdição que o feminismo operou no mundo ocidental, é a liberdade das mulheres. 

É as mulheres terem — pelo menos na lei — os mesmos direitos que os homens; é poderem ter acesso a todas as profissões (recordar que havia em Portugal, até 1974, várias profissões interditas às mulheres, a começar pela magistratura); é não serem criadas para ser criadas.

Aliás, é cotejar o que Khamenei escreve em 2024 com o que Salazar dizia quase 100 anos antes: “Nos países ou nos lugares onde a mulher casada concorre com o trabalho do homem — nas fábricas, nas oficinas, nos escritórios, nas profissões liberais — a instituição da família, pela qual nos batemos como pedra fundamental duma sociedade bem organizada, ameaça ruína… Deixemos, portanto, o homem a lutar com a vida no exterior, na rua… E a mulher a defendê-la, a trazê-la nos seus braços, no interior da casa…

Repito: o que há de novo, de relativamente novo — em Portugal tem escassas décadas — é registar-se como inaceitável que, malgrado a igualdade legal, as mulheres continuam, na nossa sociedade como em todas as sociedades ocidentais, a receber menos, pelo mesmo trabalho, que os homens, e a suportar, de modo generalizado, uma muito maior porção do fardo relativo ao cuidado dos filhos e da casa comum. 

O que há de novo é notar-se que as mulheres continuam a ser, desproporcionalmente, vítimas de violência sexual e de violência doméstica, e que essa vitimação está intimamente relacionada com noções social e culturalmente enraizadas sobre o que é um homem e o que é uma mulher e o que cada um pode e não pode fazer, deve ou não fazer — ou seja, sobre aquilo a que se dá o nome de estereótipos de género.

E é disso, de estereótipos de género, dessas ideias que continuam a matar mulheres, aqui e em todo o mundo, que se trata quando um canal de televisão organiza um debate sobre “o papel da mulher na sociedade em 2025” à volta da ideia de que “as mulheres devem poder ficar em casa”. Porque, obviamente, o que está pressuposto na questão é que se alguém pode, ou deve, “ficar em casa”, esse alguém terá de ser a mulher, porque, como disse uma das tais moças, ela “tem mais predisposição para cuidar” e, como assegura Ronaldo, “os homens não são capazes, honestamente”. 

Isto no mesmo país onde ainda há duas ou três semanas a extrema-direita do ferro de engomar estava a propor a proibição de burqas e niqabs alegando a defesa da igualdade de género. Honestamente, podiam ir ali mais o Khamenei. 

image-fallback
A grande revolução esquecida do 25 de Abril
image-fallback
O vírus palito
Ronaldo, Khamenei e o ferro de engomar
Machismo tóxico: “A escola é extremamente ignorante sobre isto”
image-fallback
Só mulheres mortas
Diário de Notícias
www.dn.pt