O café A Brasileira do Chiado funcionou quase como um museu de arte contemporânea informal numa altura em que os artistas mais vanguardistas de Portugal não tinham lugar nessas instituições. Em 1971 subiram às paredes daquele emblemático espaço de tertúlia de Lisboa uma nova leva de artistas, com 11 obras que substituíram as da primeira instalação, em 1925. E junto à entrada para a cozinha ficou um quadro que destoa dos outros: a obra é identificada nos catálogos como Café, de João Vieira. Quem passar pela Brasileira agora não o conseguirá ver, porque as pinturas de 1971 foram removidas em janeiro deste ano para restauro e substituídas temporariamente pelas de dez novos artistas, escolhidos no âmbito do Prémio de Pintura A Brasileira do Chiado. Todas as obras estão a ser restauradas por uma empresa, mas a do João Vieira seguiu para o departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (Nova FCT), por indicação do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC).“A obra está quase colada ao teto, lá em cima, num cantinho. E vemo-la a uns quatro metros de distância. Até pensávamos que era uma pintura com placas de PMMA por cima. Quando percebemos que toda a obra é construída em placas de PMMA, foi uma surpresa enorme”, diz ao DN Susana França de Sá, professora Auxiliar do departamento de Conservação e Restauro da Nova FCT. PMMA é a sigla para polimetacrilato de metilo e foi este material que fez com que fosse parar àquela instituição de ensino e investigação. “O PMMA é um plástico rígido, muito translúcido. É aquilo que as pessoas normalmente chamam de chapa acrílica ou vidro acrílico. Muito por causa das propriedades óticas que ele tem, porque ele quase que parece que tem luz própria. É muito transparente, tudo atravessa”, explica Sara Babo, também professora Auxiliar naquele departamento. .João Vieira (1934-2009) foi um artista muito experimentalista, conhecido pela utilização de novos materiais e de letras tipográficas nas suas obras. Foi cofundador, em Paris, do grupo KWY, de que fizeram parte também artistas como Lourdes Castro (que usou muito o acrílico) e José Escada, entre outros. Nas obras de arte que utilizam o plástico (que pode ser de vários tipos), “não há tanto conhecimento sobre como intervir de forma segura e eficaz. Então, o quadro veio para cá, para a faculdade, para podermos fazer o estudo, toda a investigação, testar métodos, avaliar várias tecnologias, e depois então procedermos ao restauro”, diz Susana França de Sá, especializada na conservação e restauro de plásticos..A investigação está a ser realizada no âmbito de uma tese de mestrado de uma aluna do departamento, sob orientação de Susana França de Sá e Sara Babo, e uma das primeiras coisas que descobriram sobre a obra de João Vieira é que ela está assinada por trás e o artista intitulou-a Café Kafka, embora seja conhecida apenas por Café.“As palavras Café Kafka estão, de forma abstrata, representadas nesta pintura. Temos o C, o A, o F, e o E, ao contrário, e depois o K. Ele inverte as letras e faz vários jogos, incluindo com a sonoridade das palavras”, nota Susana França de Sá.“Aproveitámos o interesse da Francisca Lima em seguir com este estudo, porque ela queria muito aprofundar o conhecimento em chapa acrílica, e depois toda a construção da peça e o nível de sujidade que ela tinha - que era bastante grande por estar num café -, levanta mesmo muitos desafios”, explicam. “A obra estava com um tom bastante amarelado, espesso, laranja em vez de rosa, e tínhamos de tudo, desde excrementos de inseto, gordura, óleos, fibras, tabaco, fumos de cozinha, tudo depositado. Tinha uma camada de sujidade muito grande. E, aliás, vê-se bem o contraste de luminosidade, perdeu completamente a transparência ”, aponta Susana França de Sá. .Todas as placas acrílicas da obra estavam sujas na frente e verso e tiveram de ser desmontadas, uma a uma (estavam presas com parafusos, que também foram removidos e limpos). Esta “sujidade muito espessa e muito coesa, muito agarrada ao suporte” não se conseguia remover utilizando os meios tradicionais dizem as investigadoras. Aliás, fruto de um restauro anterior, em que a superfície terá sido limpa com um pano seco, a obra ficou com abrasão, ou seja, com riscos. “A limpeza destes materiais, dos plásticos, é uma área relativamente recente. Começou a ser mais trabalhada nos anos 90, mas mais agora, na última década. E têm vindo a ser usados cada vez mais géis, porque têm uma ação de limpeza sem a típica ação mecânica que é muito comum na nossa área, que é o uso do cotonete ou de um pincel, de uma trincha, ou até de um pano”, explica Susana França de Sá. “Aqui o mais grave era mesmo a abrasão. E então a Francisca fez um levantamento extensíssimo de todas as técnicas que já têm vindo a ser publicadas para a limpeza com géis. E percebemos que há poucos autores ainda a explorar a limpeza do PMMA com os géis”, acrescenta a docente e investigadora. O caminho foi pensar fora da caixa e testar várias possibilidades. A solução mais eficaz que encontraram para fazer com que as placas ficassem como novas, sem causar abrasão, envolveu a combinação de dois géis. . “Curiosamente, os géis que nós optámos por usar, o Agar Agar – que se trabalha de forma muito rotineira na forma de placa rígida –, e o gel de PVAl-Borax, que é um gel moldável, tipo plasticina, na literatura até vêm descritos, por um ou dois estudos, como não sendo eficazes”. Explica Francisca Lima que “o Agar Agar já foi bastante estudado e é bastante seguro, mas a sua eficácia tem sido muito fraca. Após rever todos estes artigos, chegámos à conclusão que poderia ser uma falha no contacto entre a superfície do gel e do PMMA. Portanto, foi uma coisa que quisemos testar nesta tese”. . Após vários experiências, desenvolveram um novo processo. “Concluímos que aquecer a placa de gel ligeiramente melhora o contacto e aumenta a eficácia. Massajar o gel com uma espátula quente por cinco minutos e depois aplicar pesos e deixá-los dez minutos ou até o gel ficar frio, melhora bastante”, descobriu a aluna de mestrado. . Uma técnica possível também pelo facto de o PMMA ser um termoplástico, ou seja, é um material resistente ao calor. Todavia, noutro teste, quando se aqueceu o Agar Agar na forma líquida e se aplicou sobre amostras maiores, elas começaram a deformar-se. “Depois estabiliza e passados uns cinco minutos volta ao normal, mas tendo em conta o estado de conservação da obra, achámos um risco estar a sujeitá-la ao calor”, diz Francisca, revelando o trabalho de tentativa e erro subjacente a esta investigação. .Em relação ao outro gel, o PVAl-Borax, foi-lhe adicionado um agente quelante, o citrato de triamónio, que “potenciou muito a ação da limpeza”. “Nós até tínhamos pensado inicialmente fazer a limpeza toda com este gel, porque ele é muito flexível, molda-se bem, só que medimos o PH desta sujidade e é uma sujidade ácida. E superfícies ácidas em contacto com o gel rompem a reticulação física que faz deste gel um gel, ele volta a ficar líquido, e não o conseguimos usar. Então, o Agar Agar funciona como uma passagem intermédia para remover a acidez. Tira uma primeira camada de sujidade, que é a que está mais ácida, também a mais reativa e depois isto permite conciliar uma ação mecânica mínima e remover a restante sujidade que ainda fica. Por isso, foi a combinação dos dois géis”, remata Susana França de Sá. .A eliminação da sujidade sem causar mais danos não foi o único desafio deste trabalho de restauro. As placas de PMMA assentam numa folha de alumínio sobre cartão, colada a uma estrutura de madeira, “o suporte da obra, que também vai ter que ser intervencionado. Estamos a trabalhar com uma especialista de metais, que é a Isabel Tissot, que está a ajudar-nos na metodologia de limpeza”, adianta Sara Babo. “Nós estávamos muito preocupadas com as manchas esbranquiçadas que ela tem, porque são resultado de patologias inerentes ao alumínio, a oxidação, mas reparamos que no momento original de montagem da obra estas manchas já cá estavam. E, por isso, agora a nossa maior preocupação é acompanhar a evolução delas, se terão aumentado em termos de tamanho, ou de força de cor, porque causam alguns danos na placa PMMA”, acrescenta Susana França de Sá. .As manchas que aparecem nas placas de acrílico, explicam as investigadoras, resultam da abrasão já referida, e também "de produtos de corrosão do alumínio”. Estes danos não podem ser revertidos, mas há técnicas que permitem ocultá-los. “É uma coisa física, portanto não dá para tirar. Eventualmente estamos a testar alguns métodos para tentar disfarçar. Tudo o que vemos, a abrasão, tem a ver com a luz não refletir da mesma maneira que reflete numa chapa intacta. Cada vez que há um risquinho, a luz reflete de uma maneira diferente e fica visível. Se conseguirmos preencher essa abrasão com material com um índice de refração semelhante, isso fica disfarçado”, diz Sara Babo. A obra de João Vieira apresenta também algumas fissuras resultantes da tensão criada pela forma como as várias placas que compõem a obra estão presas. "Havia aqui fraturas associadas à perfuração que já foram preenchidas", diz Francisca Lima. "É muito importante estabilizar as fissuras, porque elas podem ir aumentando com o tempo", acrescenta Susana França de Sá. E como é que se "preenchem fissuras"? "Com um pincel o mais fino possível, uma lupa e muita paciência...", responde. Em algumas obras de PMMA recorre-se ao polimento para tirar os riscos. "Só que estamos a remover material original. É muito discutível. O polimento implica tirar a camada superficial. E um dos princípios da conservação e restauro é a intervenção mínima. Não fazer procedimentos que não se justificam. E que podem não ser reversíveis no futuro. Neste caso achamos que ainda não se justifica. É um balanço", sublinha Sara Babo.A grande missão dos conservadores-restauradores, acrescenta ainda Susana França de Sá, "é manter a identidade da obra. Há danos que ainda não estão a afetar o coração da obra, os valores que nós identificamos como os mais importantes a preservar".Mas o dono do quadro, neste caso o grupo detentor d'Brasileira, O Valor do Tempo, também tem uma palavra a dizer quanto ao caminho a seguir na operação de restauro. "A responsabilidade da tomada de decisões é sempre partilhada. E nós estamos a trabalhar com a equipa d'Brasileira, mas também com a equipa do Museu Nacional de Arte Contemporânea, o MNAC, no Chiado." .Para fazerem o seu trabalho, as investigadores recorrem a várias metodologias e equipamentos disponíveis nos laboratórios da faculdade. "Em todos os nossos tratamentos de limpeza, nos nossos testes, guiamo-nos sempre por dois critérios: a segurança, se o método causa dano no PMMA; e a eficácia, se remove aquilo que nós queremos que remova. E usamos várias metodologias. Na microscopia ótica recorremos a diferentes sistemas e modos de iluminação: luz transmitida e luz refletida, tanto em campo escuro como polarizada-cruzada, que nos permite ver a superfície com diferentes olhares, ver diferentes características. Fazemos também a medição da cor, por colorimetria, usamos a espectroscopia de infravermelho para avaliar a estabilidade molecular das placas e a natureza química da sujidade, e o polariscópio para observar se as placas têm stress interno", elenca Susana França de Sá. A obra que têm em mãos também revela algum desvanecimento da cor, na parte de baixo, que acreditam ter a ver com a forma como está exposta na Brasileira, nomeadamente com a iluminação que incide sobre ela. . Esta descoloração também pode ser disfarçada? "Nos métodos mais tradicionais, seria um retoque pictórico. Mas, mais uma vez, aqui não é ainda um material de que tenhamos um bom conhecimento para sustentar esse tipo de intervenção. E como a obra é vista de longe e tem uma espécie de rodapé a tapar toda essa parte, o público não vai experienciar. Por isso, não queremos fazer aqui algo que depois possa causar mais perceção, no futuro, da diferença de cor", explica."Agora temos que informar o café que isto acontece, que se calhar tem que mudar o tipo de iluminação, ou passar para lâmpadas LED, se calhar não podem estar naquele sítio, têm que estar mais distantes. Pode ser só uma troca de lâmpadas, ou as lâmpadas estarem um bocadinho mais desviadas, ter uma iluminação mais difusa", adianta Sara Babo. "Também faz parte do nosso papel agora dar recomendações para a apresentação da obra. Isso vai estar na tese da Francisca e depois num relatório mais detalhado que será entregue à instituição", acrescenta Susana França de Sá. O processo desenvolvido para restaurar a obra de João Vieira, “esta sequência de passos, nunca foi feita. O trabalho consistiu em melhorar o procedimento, com o uso do calor, com o tempo, com o peso. Portanto, nesse sentido, o processo é inovador”, sublinha Sara Babo. A tese de Francisca Lima será escrita em inglês para permitir maior acessibilidade internacional, e contribuirá para aumentar o conhecimento na área da conservação e restauro de plásticos. O restauro deverá estar concluído em setembro, e ainda antes de voltar ao seu lugar de origem no café A Brasileira, o quadro será mostrado numa exposição temporária no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado. .A espada de D. Dinis e outros desafios do laboratório de conservação e restauro do Estado.Rui Câmara Borges: “As universidades formam conservadores-restauradores excessivamente generalistas”. ----"Testes em várias placas, porque o comportamento numa placa não quer diozer que seja o mesmo noutra placa. Portanto, tem a ver coma segurança. Tem a ver com a cor dela, porque são aditivos que são adicionados à formulação, podem ter comportamentos diferentes ao envelhecimento. E também como elas estão expostas e presas. Algumas já estavam com muita tensão, outras menos, e depois a sujidade acumulada também era diferente. A sujidade não só tem um impacto estético, como danifica muito a estabilidade dos materiais. São sempre pontos onde a degradação é catalizada. Por isso, nãosó teve este impacto estético grande, mas está sempre a alimentar a degradação da chapa. Tudo isso justificou a vinda desta obra para cá, porque somos especialistas nesta área específica dos plásticos.".