Joana Marques entre o papa e os anjos
“O humorismo não ofende, não humilha, não prega as pessoas aos seus defeitos”. A frase é de Francisco, há cerca de um ano, quando recebeu no Vaticano vários humoristas, entre os quais a portuguesa Joana Marques.
Recebi com sarcasmo a frase do papa, por dois motivos: porque é absolutamente falso que o humor não ofenda, não humilhe e não “pregue pessoas aos seus defeitos” — enquanto prática profissional, ou mesmo amadora, fá-lo amiúde — e porque ele mesmo, o pontífice, tinha, após o massacre na redação da publicação humorística francesa Charlie Hebdo em novembro de 2015 (motivado, de acordo com a reivindicação da organização terrorista Daesh, pelo “gozo” da revista com o profeta Maomé), asseverado que se alguém lhe insultasse a mãe (ou a “Virgem Maria”), lhe daria um murro. Ou seja, Francisco achava, e disse-o com todas as letras, que há coisas com as quais não se deve brincar, e que caso alguém brinque, habilita-se. Nada surpreendente, de resto, vindo do chefe de uma religião: todos sabemos o que significa o termo “blasfémia”, conceito que em várias paragens pode ter consequências bem pouco saudáveis e que mesmo em Portugal continua, incrivelmente, a ser crime (vide artigos 251º e 252º do Código Penal, “Ultraje por motivo de crença religiosa” e “Impedimento, perturbação ou ultraje a ato de culto”).
Na altura da referida audiência papal, comentei no Twitter que, para achar que o humor não humilha, o papa nunca teria ouvido o Extremamente Desagradável, a rubrica humorística de Joana Marques na Rádio Renascença. Para meu espanto, a Joana reagiu, postando o meu tuíte no seu Instagram, já não me lembro com que comentário desagradado. É justo: meti-me com a Joana e ela reagiu. A minha surpresa deveu-se ao facto de, 1, achar que ela é suficientemente inteligente para saber que sim, que o que faz resulta frequentemente, mesmo não sendo esse o objetivo, em humilhação (bastaria ouvir os episódios sobre, por exemplo, a pobre Yolanda Tati); 2, ter dela a ideia de uma pessoa com poder de encaixe, nisso contrastando com a maioria dos humoristas nacionais, que não aguentam um gozo sem perderem a cabeça. Enganei-me, o que também não é incomum (como escreveu Roth, viver é enganarmo-nos sobre pessoas).
Serve este prolegómeno para quê, pergunta quem me lê. Bom, acho que para deixar claro que “poder de encaixe” é coisa mui rara, inclusive entre quem vive de desafiá-lo, e que não é surpreendente que o humor ofenda, magoe, chateie, irrite — incluindo, hélas, humoristas, quando as piadas são sobre eles — e que essa ofensa, dor ou enxoframento resultem em reações mais ou menos racionais. O que me leva ao tão badalado processo que opõe uma dupla de cantores (creio que é assim que se apresentam) a Joana Marques, e sobre o qual tanta tinta, sobretudo digital, tem corrido.
Estando de férias, segui a polémica a alguma distância, mas julgo estar razoavelmente informada: a Joana terá, há uns anos, partilhado no seu Insta um vídeo com algumas das partes mais infelizes de uma atuação do duo interpretando o hino nacional, intercalando tais excertos com os rostos perplexos de um júri, do qual ela fazia parte, de um concurso de talentos. Ou seja, ridicularizou a atuação, ao que se constata (ouvi) sem necessidade de esforço — de resto, havia, antes da partilha da Joana, vários vídeos do mesmo no Youtube, até com mais sucesso que o dela.
Os autores da ação, que corre no tribunal cível — ou seja, está em causa um pedido de indemnização por danos e não uma queixa criminal — acusam-na de ter publicado um vídeo manipulado e de lhes ter, pelo efeito dessa publicação, causado inúmeros males, desde ataques de acne e provas de triatlo induzidos por stress a perdas financeiras por cancelamento de contratos. Como os argumentos do duo me parecem, salvo melhor informação, extremamente ridículos, e extremamente ridículo me soa o pedido de indemnização de um milhão e 118 mil euros, tendo dificuldade em acreditar que os moços tenham assim tanta falta de cabeça, concluí que o que estamos a ver não é, não pode ser, o que parece.
Isto porque, partindo do princípio de que a respetiva representação legal é minimamente competente, terá de os ter informado sobre a jurisprudência, nacional e europeia, atinente à liberdade de expressão e, portanto, do facto de que um processo contra uma humorista que não os insultou, não falou da respetiva vida privada, não lhes imputou atos criminosos, não apelou à violência contra eles nem os tomou como alvo por constituírem uma categoria protegida, limitando-se a fazer pouco da sua cantoria de forma até bastante soft, tem, diria eu, zero hipóteses de obter vencimento. Acresce que essa representação legal só os pode ter advertido de que as custas judiciais (aquilo que os tribunais cobram a quem a eles recorre) são calculadas na proporção dos pedidos de indemnização e que, pedindo mais de um milhão, apenas na taxa de justiça pela primeira ação poderiam ter de largar quase quatro mil euros — isto fora despesas com os advogados, cujos honorários num processo deste tipo passam facilmente 10 mil euros.
Sendo ainda que, em perdendo a ação, estes dois terão em princípio de pagar as custas judiciais da ré e mais uma parte dos gastos dela em representação legal. Ora caso haja recurso da decisão de primeira instância para os tribunais superiores a fatura total, só em custas judiciais das duas partes, pode rasar os 14 mil euros. Quem perder terá ainda de pagar à outra cerca de metade disso para compensar respetivas despesas com representação legal — elevando assim a conta para quase 21 mil euros. Fora, como já sublinhei, o custo com advogados.
Digamos que é uma maquia interessante, aquela que esta boy band se apresta a perder pelo gosto de processar uma humorista — e de ver o seu nome e o dela todos os dias nas notícias durante uns tempos. O que me leva a perguntar quanto custaria uma campanha publicitária que obtivesse este mesmo tipo de exposição. Talvez bem mais, não é?
Certo. No meio disto, como comentou uma das advogadas que me ajudaram a fazer estas contas (obrigada, Rita e Teresa), quem se lixa é mesmo Joana Marques, que, de acordo com as citadas regras das custas processuais, é, para se defender de uma ação sem pés nem cabeça, obrigada a pagar o mesmíssimo em taxas de justiça que os autores, mais, claro, o que lhe cobrarem os seus advogados. Poderá, como explicado, vir a ser ressarcida de uma parte disso, mas até lá — e um processo destes pode demorar, entre decisões e recursos, três ou quatro anos — empata ali uns bons milhares.
Conclusão? É bem possível que estejamos todos — Joana Marques incluída — a ser, enquanto andamos, muito exaltados e circunspectos, a discutir “os limites do humor e da liberdade de expressão”, comidos por anjinhos.