"É conveniente libertar as vítimas de acidentes e as pessoas que delas dependem de preocupações financeiras de curto prazo no período imediatamente a seguir a um acidente”.Esta frase está no preâmbulo do Regulamento 2021/782 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2021, “relativo aos direitos e obrigações dos passageiros dos serviços ferroviários”. Dela resulta o artigo 15º do documento: “Em caso de ferimentos ou de morte de um passageiro, a empresa ferroviária (…) deve pagar, sem demora – e em todo o caso no prazo máximo de 15 dias a contar da identificação da pessoa singular com direito a indemnização –, os adiantamentos que permitam fazer face a necessidades económicas imediatas, numa base proporcional ao dano sofrido”; “Em caso de morte, os adiantamentos não podem ser inferiores a 21 mil euros por passageiro”.Aplicando-se esta norma do regulamento (que entrou em vigor em 2023 e é diretamente aplicável nos estados membros da União Europeia), e tendo já decorrido uma semana sobre o acidente do elevador da Glória, os feridos que dele resultaram, assim como os familiares dos 16 mortos, estariam, nos próximos dias, a receber da Carris (ou da respetiva seguradora) os ditos adiantamentos. Porém a norma não se aplica: Portugal, desde 2007, quando foi aprovada a primeira versão deste regulamento europeu, requereu que fossem dela excepcionados os serviços ferroviários urbanos e suburbanos, os regionais e também os domésticos de longa distância (nestes últimos o regulamento estabelece 2029 como limite temporal para a isenção).O que significa que qualquer vítima de acidente em serviços ferroviários nacionais, e respetiva família em caso de morte, está excluída deste apoio de primeira hora que vários outros países europeus — caso da Alemanha, que tem três dos seus nacionais (um casal e o seu filho de três anos), entre as vítimas não mortais da tragédia de 3 de setembro — acolheram no seu ordenamento jurídico. Ao invés de poderem, nas palavras do regulamento, ser libertadas de “preocupações financeiras de curto prazo no período imediatamente a seguir ao acidente”, as vítimas e familiares de vítimas, portugueses e estrangeiros, do despenhar do funicular lisboeta dependerão, nestes primeiros tempos, dos recursos próprios e do apoio consular (no caso dos não-nacionais). E talvez, mais para a frente, não se sabe quando, de um anunciado — esta segunda-feira, primeiro proposto pelo PS municipal e depois secundado pela coligação que detém a presidência da Câmara de Lisboa — “fundo municipal de apoio”. Um fundo que, nas palavras do vice-presidente da edilidade, Filipe Anacoreta Correia, não é “uma indemnização”, mas visa “assegurar pagamento de despesas às famílias das vítimas mortais e dos feridos graves e ligeiros na sequência desta ocorrência”. Nem mais nem menos que o previsto no referido artigo do regulamento europeu, o qual adverte: “O pagamento de um adiantamento não significa reconhecimento da responsabilidade e pode ser deduzido dos montantes pagos posteriormente a título do presente regulamento, mas não é reembolsável, exceto nos casos em que o dano tenha sido causado por negligência ou por culpa do passageiro, ou caso a pessoa que tenha recebido o adiantamento não seja a pessoa com direito à indemnização.”Provedoria adiantou dois milhões a vítimas de incêndios Refira-se que a atribuição de adiantamentos antes da indemnização propriamente dita não será, caso avance mesmo o tal fundo municipal, uma estreia no país: na sequência dos incêndios rurais de 2017, e no âmbito da arbitragem, entregue à Provedoria de Justiça pelo então governo, dos montantes indemnizatórios a atribuir pelas mortes e aos feridos, este órgão independente, na altura dirigido por Maria Lúcia Amaral (atual ministra da Administração Interna), avançou com “pagamentos intercalares” aos feridos graves. Tratou-se, foi noticiado na altura, de um valor global de dois milhões de euros, a serem distribuídos pelas 61 vítimas que até então, de entre os 195 pedidos de indemnização por ferimentos graves entrados na Provedoria, tinham merecido ao Instituto Nacional de Medicina Legal a classificação de “feridos graves”. A média por cada ferido ficou assim um pouco abaixo de 33 mil euros.De acordo com a comunicação da Provedoria, o montante adiantado a cada ferido grave correspondia “ao resultado da avaliação clínica nos três parâmetros que, à luz dos critérios fixados, têm uma quantificação mínima já conhecida: dano biológico, dor e dano estético”.A Provedoria de Justiça tem aliás sido recorrentemente requerida pelos executivos em matéria de indemnizações no caso de catástrofes e acidentes: sucedeu aquando da queda da ponte de Entre-os-Rios, em 2001 (59 mortos), aquando dos incêndios rurais de 2017 (115 mortos) e também no desmoronamento de uma pedreira em Borba em 2018 (cinco mortos). Por vezes, como em 2001, o requerimento governamental e a decisão da Provedoria ocorreram num muito curto prazo de tempo: a ponte caiu a 4 de março e a comunicação do então Provedor, Henrique Nascimento Rodrigues, sobre os montantes indemnizatórios data de 19 de março, ou seja, 15 dias depois.Nela se lê: “A dimensão da tragédia ocorrida na noite de 4 de março último e as circunstâncias que envolveram a mesma, antes e depois da sua ocorrência, bem justificam a adoção de um procedimento célere e equitativo de indemnização, que dispense os lesados do recurso, naturalmente custoso e mais moroso, aos tribunais”.Nessa altura, há 24 anos, a indemnização atribuída “pela perda da vida e pelo sofrimento sentido pela própria vítima” foi de 10 mil contos (atuais 50 mil euros), acrescida de compensações a familiares pela sua dor e pelas perdas financeiras. 17 anos depois, na definição das reparações às vítimas dos incêndios de 2017, a Provedoria atribuiu 80 mil euros pelo dano morte, acrescidos de 70 mil euros pelo sofrimento de cada vítima mortal, considerando que este foi “extremo”. A estes valores acresceram os danos não patrimoniais e patrimoniais dos familiares, resultando em indemnizações médias de 271 mil euros, num total de 31 milhões. O valor médio das indemnizações pelos incêndios de 2017 seria ultrapassado nas atribuídas pelo desastre de Borba, no qual o valor total pago pelo Estado alcançou 1,6 milhões, resultando em mais de 320 mil euros por cada uma das vítimas mortais (dois operários de uma empresa de extração de mármore e três ocupantes de viaturas que iam a passar na estrada quando esta abateu).Portugal pediu exceção de quase todo o regulamentoMas regressemos ao regulamento europeu: no que respeita a transportes ferroviários urbanos e suburbanos, e de acordo com a tabela constante no site dedicado a transportes e mobilidade da Comissão Europeia, Portugal pediu exceção em praticamente todos os artigos. Sobraram oito — aqueles em que o país estava expressamente impedido de pedi-la. O mesmo, refira-se, fizeram a Hungria, a Roménia e a Eslováquia e, apenas no que respeita aos serviços urbanos, a Áustria. Isentos da aplicação do artigo 15º (o dos adiantamentos) nos casos das ferrovias urbanas e suburbanas estão ainda a França, a Bulgária, o Luxemburgo e a Polónia. Sem quaisquer pedidos de isenção ao regulamento (a crer na tabela referida) no que respeita a transportes ferroviários urbanos e suburbanos estão a Bélgica, Chipre, República Checa, Croácia, Dinamarca, Estónia, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia, Lituânia, Malta, Países Baixos, Eslovénia e Espanha.Entre as normas a que Portugal não pôde furtar todos os transportes ferroviários nacionais estão “Responsabilidade em relação aos passageiros e à bagagem” (artigo 13º) e “Seguro e cobertura de responsabilidade” (artigo 14º). A primeira inclui definição das despesas incluídas na indemnização por morte, as quais devem compreender as relativas ao transporte do corpo e ao funeral, assim como indemnizações por ferimentos se a morte não tiver ocorrido de imediato. Sendo o montante total da indemnização por morte determinado “de acordo com o direito nacional”, o regulamento fixa “um limite máximo de 175 mil unidades de conta [correspondente a cerca de 215 mil euros] em capital, por cada passageiro, no caso de o direito nacional prever um limite máximo de montante inferior”. A aplicação de um limite máximo para as indemnizações, como explica ao DN Daniel Bettencourt Rodrigues Morais, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, prende-se com a necessidade de manter razoabilidade no custo dos seguros obrigatórios — sob pena de, no caso das empresas de transporte coletivo, o funcionamento se tornar impossível, de tão oneroso. Este limite, que na decorrência do decreto-lei 270/2003 (Condições de prestação de transporte ferroviário) corresponde a 10 milhões de euros, implica que o total das indemnizações atribuídas não possa, independentemente do número de vítimas, ultrapassar esse montante (a não ser que se prove culpa).Ou seja, imaginando um cenário em que haja 150 vítimas de um acidente ferroviário, as indemnizações não poderiam ultrapassar 67 mil euros por cada uma; já estando em causa apenas 10 vítimas, em tese as reparações poderiam ascender a 1,5 milhões de euros para cada.A Carris, como foi já noticiado, tem justamente um seguro de responsabilidade civil, contratado na Fidelidade, de 10 milhões de euros.1,6 milhões por violação do dever de cuidadoNão são conhecidas publicamente indemnizações atribuídas por morte ou ferimentos graves relacionadas com elétricos da Carris e decididas no âmbito do seguro obrigatório contratado pela empresa. O mesmo se passa em relação à CP-Caminhos de Ferro portugueses — mas no que respeita a esta empresa têm corrido nos tribunais várias ações decorrentes de acidentes. Nas quais, anote-se, a CP atribui, invariavelmente, toda a responsabilidade às vítimas.Numa dessas ações, porém, foi atribuída aquela que será uma das indemnizações mais altas, senão a mais alta, já arbitradas no país por acidente/negligência: 1,6 milhões de euros. O caso remonta a 2008, quando uma jovem de 22 anos, Joana Reais, ao tentar entrar no Sud Express, que partira de portas abertas, desequilibrou-se, caiu à linha e foi atropelada, perdendo uma das pernas e ficando com o outro pé esfacelado.Numa decisão de 31 de agosto de 2022, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa atribuiu toda a responsabilidade do acidente à CP, por “funcionamento anormal do serviço”. A maior fatia da indemnização diz respeito a “danos futuros” (relacionados com a incapacidade permanente e despesas com tratamentos e outras): 1,4 milhões. O principal fundamento da condenação da empresa é, de acordo com a decisão, a “violação do dever objetivo de cuidado e o dever de segurança que a ré estava obrigada a garantir aos seus passageiros”. Porque, prossegue, “a ré tinha o dever de detetar e suprir eventuais riscos e perigos óbvios para os seus utentes/passageiros (…)” — sendo o risco, no caso, o facto de ser possível que as composições arrancassem de portas abertas. Tendo havido recurso desta decisão, não há, três anos depois, resultado do mesmo. Joana Reais não recebeu até agora — 17 anos após o acidente — um cêntimo da CP, nem foi jamais alvo de qualquer contacto por parte da seguradora desta empresa ferroviária. O acidente do qual foi vítima não foi, tão-pouco, investigado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes Ferroviários. O DN contactou o Tribunal Administrativo para inquirir sobre o atraso na apreciação do recurso interposto pela CP, mas até ao momento da publicação deste artigo não houve resposta..A cronologia do descarrilamento do elevador da Glória, segundo o GPIAAF.Reunião na CML: Câmara de Lisboa aprova apoios e portal da transparência.CP condenada a pagar 1,6 milhões a jovem colhida por comboio.Provedora de Justiça decide pagar dois milhões a "feridos graves" dos incêndios de 2017