"Ó sino da minha aldeia, dolente na tarde calma" (Fernando Pessoa).Eu nunca tive uma terra. Filho de magistrado, vivi pelas comarcas onde meu pai era colocado, habituando-me a ter a vida por muitos lados repartida. Diplomata, vivi em terras alheias com a missão de trabalhar para o meu país, aprendendo a olhar de fora para os meus e de dentro para os estranhos. Eu nunca tive uma terra. "Patria chica", chamam os espanhóis a um particular pedaço da terra pátria onde alguns cuidam ter as suas raízes. Não tenho "patria chica" e a minha pátria vejo-a como uma comunidade livre de cidadãos em ligação com o mundo todo e não como um terrunho agarrado à invenção sem fim de uma identidade desenhada à medida de projetos e interesses limitados e humanos, demasiado humanos. Preocupo-me mais com as condições de vida e de felicidade dos meus concidadãos do que com a conceptualização metafísica de uma identidade imaginada para cingir e delimitar os portugueses, ajudando a excluir ou a diluir diferenças e heterogeneidades entre eles e a destacá-los magnificamente sós num mundo alheio. Acontece-me, sim, ter nostalgia de uma terra natal, de um lugar de infância e de memória onde pudesse sempre voltar para as comemorações familiares e para a partilha dos afetos. Mas esse lugar só existe ali onde a memória se torna imaginação e reaparece como sonho, porque esse lugar é verdadeiramente o não lugar da utopia. Todos nos tornámos deslocalizados. Deslocalizarmo-nos é certamente passar a um grau mais elevado de conhecimento das coisas e de potência dos atos. Mas a nostalgia de um lugar que nunca existiu virá sempre assombrar de melancolia o nosso percurso. Por isso, face a uma globalização desregulada, cega e destruidora do mais essencial da condição humana vimos surgir, como um movimento de defesa natural, a invocação dos particularismos, a defesa das identidades e das idiossincrasias, a negação do universal. A nostalgia da pequena terra da nossa infância veio então descambar na negação raivosa de tudo aquilo em que tínhamos avançado no respeito pelos outros, na consideração das diferenças e no sentimento de pertencermos a um conjunto mais vasto de seres a que chamamos Humanidade. O local deixou de ser o ponto de vista através de que participamos no global para se vir assumir como o último referente de gentes movidas pelo medo e fustigadas pela ganância, um referente de egoísmo eufórico, a que se tem vindo a chamar populismo. Um tal populismo é profundamente anticosmopolita e alérgico aos ideais iluministas de comunidade que fundaram todas as narrativas emancipatórias. Decretar o fim dessas narrativas foi contemporâneo da destruição do contrato social do pós-guerra, que veio com a vaga liberal dos anos 80 do século passado. Emancipados do iluminismo, pós-modernos e brilhantes, imaginávamo-nos livres e novos, votados a um eterno presente, o "fim da História". Afinal era o capitalismo mais bárbaro, sem regras nem limites, que víamos regressar ao seu modelo antigo. A terra da nossa infância pode representar a liberdade dos nossos sonhos, mas pode também significar o regresso dos medos e das opressões do nosso passado. Olhar para trás com terna nostalgia pode ser a expressão do protesto do nosso coração contra um mundo sem coração, mas pode ser também um sinal de capitulação com os atavismos que nos querem reter. Fernando Pessoa contou a João Gaspar Simões que "o sino da minha aldeia" do seu poema era o sino da igreja dos Mártires, no Chiado, porque a sua aldeia natal era afinal o Largo de S. Carlos, em Lisboa. Quem não tem uma aldeia para si cria-a na sua imaginação. E o "sino da minha aldeia" de Pessoa soará para sempre dentro das nossas almas como o sonho distante de uma terra que não temos. Escritor e diplomata