Lusitânia Comboio Hotel. A ligação noturna entre Lisboa e Madrid não resistiu à pandemia

Transportou, nos seus anos áureos, príncipes, espiões e vedetas. Criado nos anos 1940, o Lusitânia Comboio Hotel, que ligava diariamente Lisboa a Madrid, foi interrompido pela pandemia e, segundo a transportadora espanhola, não será retomado. Deixa saudades
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Não é tão mítico como o Expresso do Oriente, mas ainda goza da aura associada aos comboios hotel, criados pela Wagons Lits em meados do século XX. Falamos do Lusitânia Comboio Hotel, que todas as noites unia Lisboa e Madrid até que o encerramento das fronteiras, causado pela propagação do COVID 19, lhe interrompeu a circulação a 17 de março.

O problema é que a RENFE (Rede Nacional de Ferrocarriles Espanoles), que até aqui garantia a ligação em parceria com a sua homóloga portuguesa, CP, anunciou a sua intenção de não a retomar quando a circulação de pessoas entre os dois países voltar à normalidade. Uma atitude que, se contraria a tendência internacional para apostar em meios de transporte ambientalmente sustentáveis, não surpreende quem há muito assistia à decadência do Lusitânia, cada vez mais desconfortável e caro se comparado com a oferta de voos a bom preço, capazes de ligar em 50 minutos as duas capitais ibéricas.

De comboio, o passageiro demorava pouco menos do que nas primeiras ligações regulares na década de 1940, quando as locomotivas eram... a vapor: 10 horas e meia, com longas paragens em estações intermédias. Com o abandono do anunciado projeto de ligação de alta velocidade, o futuro parecia cada vez mais incerto.

Para os nostálgicos das longas viagens de caminho-de-ferro, com o seu glamour quase cinematográfico (quem esquece a sedução de Eve Marie Saint e Cary Grant, em Intriga Internacional, a bordo de um comboio noturno?), esta decisão marca o triste fim de uma era. Porque, mau grado todos os acidentes de percurso e todas as reviravoltas da História de Portugal, de Espanha e do mundo (e foram tantas), o Lusitânia Expresso nunca parara desde a sua inauguração em plena Segunda Guerra Mundial.

Esta história começa naturalmente na época dourada do transporte ferroviário, quando a Compagnie Internationale des Wagons Lits assegurava, com extremo conforto e requinte, rotas como o Expresso do Oriente. A bordo das suas carruagens, o champanhe corria livremente e a lista de passageiros incluía facilmente cabeças coroadas, estrelas de Hollywood, diplomatas, agentes dos serviços secretos e até escritores como uma tal de Agatha Christie.

Querendo estender a sua rede à Península Ibérica, a Wagons Lits reuniu-se com as empresas antecessoras da CP e RENFE e estabeleceu um protocolo para a criação de um comboio hotel capaz de ligar as duas cidades numa só noite, em condições dignas de um Ritz. Corria o ano de 1937 e a Espanha estava mergulhada na Guerra Civil. Só em 1943 seria possível aos dois países inaugurar o tal comboio de sonho, retomando a ligação ferroviária entre as duas capitas perdida desde 1895, quando o Sud Express Lisboa-Paris passou a utilizar a Linha da Beira Alta.

A 1 de Julho de 1943, a Gazeta dos Caminhos de Ferro anunciava finalmente para 23 desse mesmo mês a inauguração de um comboio de luxo entre Lisboa e Madrid com o nome de Lusitânia Expresso, que circularia via Valência de Alcântara, operando às 3ªs, 5ªs e sábados, utilizando como terminais as estações do Rossio, em Lisboa e Delícias, em Madrid. Partia de Lisboa às 19h20, chegando ao destino pelas 09h30 do dia seguinte. Em sentido oposto, partia de às 20h20, com chegada a Lisboa no dia seguinte às 10h20.

Em tempo de guerra, com a circulação de pessoas e bens profundamente alterada em todo o continente europeu, esta ligação tornou-se vital para os dois países. De tal maneira que, em março 1945, o Ministro das Obras Públicas português anunciava a necessidade de reduzir o tráfego ferroviário, devido à falta de combustível causada pela crise de abastecimento de carvão inglês. Havia, no entanto, que salvaguardar, como referiu na altura, o Lusitânia Expresso, que circularia com a periodicidade de sempre.

Nas décadas seguintes, o Lusitânia manteve a aura, atraindo os olhares de quem ia espreitar as celebridades que partiam e chegavam, como aconteceu, a 9 de novembro de 1948, quando o pequeno príncipe Juan Carlos, então residente no Estoril, embarcou para Madrid. Ou quando, a 31 de Março de 1969, Simone de Oliveira foi apoteoticamente acolhida na estação de Santa Apolónia, vinda do Eurofestival na capital espanhola, depois de uma derrota que muitos portugueses consideravam injusta.

Renomeado Lusitânia Comboio Hotel em 1995, foi-se tornando cada vez mais o transporte preferido dos jovens integrados em programas de Interail, de passageiros sem pressa ou simplesmente com medo de viajar de avião. As carruagens cada vez mais obsoletas e desprovidas de conforto diziam bem da falta de investimento das duas empresas, CP e RENFE, nesta rota (os habitantes da Extremadura espanhola queixam-se, aliás, do abandono a que estão votados, sobretudo após o encerramento do ramal de Cáceres em 2012).

Há apenas seis meses, a ativista Greta Thunberg viajou de Madrid para Lisboa a bordo deste comboio, justamente para sublinhar a importância de um meio de transporte sustentável. Mas a mensagem não parece ter chegado ao destino.

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