"Para combater a corrupção é preciso um sistema de investigação e punição rápido"

Presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses pede aos partidos que vão a eleições que "clarifiquem" o que pretendem fazer com a reforma da justiça e aponta o dedo aos políticos que querem controlar tribunais. E alerta para o perigo dos "democratas descartáveis".
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A 30 de janeiro os portugueses vão votar. Para a justiça qual seria o programa de governo ideal?
Há um discurso público sobre a reforma, mas não há muito conhecimento, nem de quem faz esse discurso nem dos destinatários desse discurso, sobre qual é a reforma que faz falta. Ouvimos que é preciso que se conjuguem os dois maiores partidos para fazerem reformas estruturais, mas ninguém percebeu se a reforma da justiça de que se fala é uma reforma das estruturas organizativas, se é uma reforma dos mecanismos que garantem a independência, se é uma reforma dos mecanismos que garantem a integridade, se é uma reforma que está mais preocupada com eficiência ou com qualidade, ou se é isso tudo ou se não é nada disto. Espero que daqui até dia 30 - espero com pouca esperança -, os partidos consigam clarificar aquilo que são as suas propostas.

Porquê pouca esperança?
Porque, por exemplo, o PSD tem um líder que tem feito questão de dizer e passar a mensagem de que a justiça é o principal ou um dos principais pilares do seu programa. Acho estranho que as pessoas não achem estranho que ao fim de três anos não se tenha ainda sabido uma única medida proposta pelo PSD para a justiça, tirando a alteração da composição do Conselho Superior do Ministério Público, e essa era uma medida importante e sensível. Mas, tirando isso, será concebível acharmos que há um líder partidário que tem como prioridade a reforma da justiça e ainda não ter dito qual é? Tenho dito várias vezes que isto só tem duas explicações e as duas são más. Ou o PSD não sabe que reforma quer fazer na justiça e, portanto, limita-se a utilizar este argumento de uma forma populista, ou então sabe e não diz, mas se for esta a hipótese ainda é pior. Olhamos para aquilo que é o programa eleitoral do PSD, que é o único que conheço que já está divulgado para a justiça, e o que vemos é reforma da formação, das classificações, dos conselhos, reforma disto, reforma daquilo, mas era importante saber que medidas exatas os partidos propõem. Dito isto, não tenho nenhuma dúvida de que há matérias na justiça que precisam de ser mudadas. E tenho dito sempre que as estruturas principais da justiça, as estruturas organizativas e legislativas, são do final dos anos 1980. Ora, vamos entrar em 2022 e, olhando para trás, 1980 já é muito longe. Temos de perceber se todo o edifício organizativo da justiça está adaptado para a realidade dos próximos anos.

Presumo, pelas suas palavras, que não esteja.
Admito que não e há matérias que achamos que devem mudar. Por exemplo, na questão da governação dos juízes, os conselhos superiores de magistratura, tocando nesta questão que é importante: a proposta em cima da mesa é para mudar a composição dos conselhos. E pergunto-me: para quê? Se já temos nos conselhos superiores da magistratura - estou agora a falar da magistratura - uma maioria de membros que não são juízes, qual é o sentido de mudar a composição para reforçar o controlo externo? Diria que é muito mais importante, então, que os membros que não são juízes e que estão nos conselhos cumpram a sua função.

E não estão a cumprir?
Vou dar um exemplo: o doutor Rui Rio e outros elementos do PSD dizem que o sistema de classificação de juízes não tem sentido nenhum, que é permissivo, que é corporativista porque todos os juízes são bem classificados e que isso não está certo. E pergunto: muito bem, então o que é que os representantes do PSD no Conselho Superior da Magistratura fizeram para mudar isso? Apresentaram alguma vez uma proposta para se mudar os critérios dos regulamentos de inspeções? Não o fizeram. E, portanto, pergunto qual é o sentido de mudar a composição do conselho se as pessoas que lá estão, verdadeiramente, não se empenham no funcionamento do órgão. Por exemplo, o Conselho Superior da Magistratura tem, por lei, obrigação de fazer um relatório anual que apresenta ao parlamento. Algum dos jornalistas ou deputados conhece esse relatório? Não conhece. Aqui está um elemento que era importante e que reforçava a transparência. Era o conselho passar a discutir esse relatório numa sessão pública, na primeira comissão do parlamento, e discutir isso com os deputados e sujeitar-se à crítica e às questões.

E que análise faz dos seis anos de governação socialista?
Aquilo que foi a governação socialista na área da justiça foi uma governação com um sinal de estabilidade e de não agitar as estruturas fundamentais. E houve aspetos que considero positivos, e há outros em que ficámos claramente aquém daquilo que me parecia importante. Por exemplo, como é que podem ter passado mais três anos, ou mais seis anos, sem se ter resolvido o problema dos tribunais administrativos e fiscais? Como é que podemos aceitar entrar em 2022 com pessoas e empresas que vão ter de esperar 10 ou 15 anos por uma decisão de primeira instância e mais cinco ou seis por uma decisão de segunda instância? Este problema está diagnosticado há 20 anos. Desde a última reforma do contencioso administrativo que se percebeu que era preciso intervir de uma forma séria, a solução é simples, é barata e é rápida. E, portanto, cá está um aspeto absolutamente negativo. Não consigo perceber como um governo, na área da justiça, consegue terminar funções sem ter resolvido isto.

Não houve vontade política para o fazer? Não se abanou a estrutura?
Claramente não houve vontade política. Repare, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, só para lhe dar este exemplo, que é o órgão que tem a responsabilidade de gerir 300 juízes de uma jurisdição muito sensível, não tem edifício, não tem funcionários nem orçamento. Funciona num edifício emprestado pelo Supremo Tribunal de Justiça, com meia dúzia de funcionários emprestados pelo Supremo Tribunal de Justiça. E pergunto: é possível gerir uma jurisdição com um órgão de governo autónomo que não tem uma lei orgânica? E a resposta é que não é possível. Mas vemos que ao longo dos últimos anos esta discussão sobre lei orgânica deste conselho não avançou. Terá batido com certeza nas Finanças ou onde quer que fosse, e pergunto: não me digam que o problema era por mais dois ou três milhões de euros que se ia gastar em apetrechar o Conselho Superior da Magistratura com equipa de funcionários e assessores para aquilo funcionar bem e ser mais eficiente? Cá está, um exemplo de como é uma reforma que, em muitos aspetos, não envolve custos financeiros excessivos.

Num artigo recente, diz que o acesso à justiça é caro e favorece os ricos e os poderosos. Porquê?
Há um exemplo que me parece evidente: um recurso para um Tribunal Constitucional, o corriqueiro que vemos nos processos-crime, sobretudo nos processos de alta criminalidade financeira e económica, custa, em média, à volta de 9 mil euros, fora os honorários do advogado. Basta olhar para isto para se perceber que nem toda a gente que está em tribunal pode recorrer ao Tribunal Constitucional.

Então como se assegura os direitos fundamentais dos cidadãos?
Repare, o sistema está formatado para, com as taxas de justiça que existem que são elevadíssimas, e com os critérios apertadíssimos e, a meu ver, injustos que existem para o apoio judiciário, só tem acesso à isenção de custas dos processos ou a um advogado pago pelo Estado quem é muito rico ou quem quase não tem dinheiro para comer. Quem tiver o ordenado mínimo, ou um pouco mais, e tenha dois filhos a estudar, já não passa essa malha. E, portanto, a resposta à sua pergunta é: não se assegura. Temos de olhar para isto de frente e dizer a verdade: o sistema que temos não assegura o direito fundamental do acesso à justiça de todos os cidadãos. Essas pessoas, naturalmente, não acreditam na justiça, porque quando precisaram da justiça ela não estava lá.

Já disse que a justiça está, cada vez mais, sob o controlo dos políticos. É uma tendência que veio para ficar?
Essa tendência não é portuguesa, é europeia. Começou na Hungria, passou pela Polónia, e já há um conjunto de políticos que são democratas descartáveis que estão na fila à espera de perceber o que vai acontecer. As instituições da União Europeia reagiram. Não as instituições políticas, mas as instituições judiciais, porque os mecanismos de intervenção da União Europeia [UE] para corrigir as distorções do Estado de direito nos países são deficientes, e o que aconteceu foi que o Tribunal de Justiça da UE acabou por intervir. Talvez nem todos os leitores saibam, mas a Polónia está condenada a pagar um milhão de euros por dia até corrigir a legislação que aprovou contra a independência dos tribunais. E está para sair a decisão do tribunal que vai dizer sim ou não, se a Polónia vai ficar com os fundos da bazuca congelada. O que é que isto nos diz? Que os países já não estão sozinhos, que não podem querer fazer as reformas na justiça que entendam, que há um limite imposto pela ordem jurídica da UE que diz que um conjunto de princípios do Estado de direito, nomeadamente a independência dos tribunais, mas também, por exemplo, a independência, a autonomia e a liberdade de imprensa, se houver amanhã alguém que queira pôr em causa a liberdade de imprensa com uma reforma legislativa - ainda que adaptada à nossa Constituição -, pode acontecer que não passe nas instituições da UE. Portanto, há essa tentação, e essa tentação é sempre mais visível quando a justiça é mais atuante. Quando a justiça começa a interferir com políticos ou ex-políticos, magistrados, dirigentes desportivos, grandes empresários, financeiros, bancários, naturalmente, surgem os conflitos e um anseio de maior controlo.

Teme que em Portugal se chegue a uma situação como a da Polónia?
Não vejo essa possibilidade no horizonte mais próximo, mas não me admiraria muito. Mas se a situação da Polónia não tiver um desfecho que mostre aos Estados membros que para se estar na UE é preciso cumprir um conjunto de critérios comuns, não me admiro muito que em Portugal ou noutro país... Não sabemos o que vai acontecer a partir de 30 de janeiro. Sabemos é que vai haver eleições e que o resultado será de geometria variável. Tanto podemos ter um governo de coligação à esquerda, como um governo de coligação à direita, como um governo de bloco central, como governo nenhum.

O que seria pior para a justiça?
Para a justiça o que é pior é ter políticos que não percebam o que é o Estado de direito, e que não percebam que democracia sem independência judicial não existe.

Disse que há democratas descartáveis. Quem são os democratas descartáveis em Portugal?
São aquelas pessoas que acreditam na democracia, desde que a democracia não altere aquilo que são os seus quadros de funcionamento.

Quer dar exemplos?
Não, não quero dar exemplos, nem quero estar a interferir num processo eleitoral em que as pessoas vão ter de tomar decisões sobre em quem é que votam. Mas penso que é muito claro, do discurso dos intervenientes políticos, perceber quais são os candidatos que se apresentam a uma eleição que respeitam mais, ou menos, estas regras. Porque ser democrata e dizer que acredito na independência desde que a possa controlar é defender uma democracia descartável, não é independência.

O que também prejudica a imagem da justiça são as portas giratórias. Com as escrutinar?
Primeira coisa, não acho que um juiz que vá para a política fique imediatamente contaminado pelo vírus da dependência, ou seja, que perca a independência. Mas o problema não é só saber se as pessoas são independentes e imparciais quando regressam à função, é a perceção. Porque se uma pessoa exerce funções de ministro, de secretário de Estado, com a confiança política do primeiro-ministro, obedecendo a um programa político-partidário, mesmo sendo independente e sendo juiz, essa vinculação ou relação de confiança afeta a imagem de independência e de imparcialidade. Essa pessoa regressando à função, pode exercê-la com independência, mas as pessoas não acreditam nisso se surgir um conflito qualquer em que as questões políticas entram em jogo. O que se devia fazer já, com os critérios da lei que temos, porque a lei permite, era o conselho ser muito mais exigente e não aceitar conceder comissões de serviço só porque vêm pedidas do governo. Era possível o Conselho Superior da Magistratura e o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais dizerem não a um conjunto de pedidos de comissão de serviço.

A nível de ministros e secretários de Estado ou a outros níveis?
A esses níveis, diria. Acho normal que o Ministério da Justiça tenha assessores juízes, dois ou três, para informar o responsável político sobre as realidades que os juízes conhecem melhor dentro dos tribunais. Mas já não me parece bem que os responsáveis políticos, vinculados a um programa político-partidário, nomeadamente ministros e secretários de Estado, possam ser juízes no ativo e possam regressar à função pela tal porta giratória que tem dois sentidos. Propusemos isso na revisão do estatuto e continuamos a falar nisto, que o estatuto fosse revisto no sentido de ser muito mais rigoroso e, portanto, impedir essas portas giratórias e as pessoas tinham de fazer uma opção de vida.

Estará a idoneidade ética a ser avaliada devidamente ou a solução seria aquilo que acabou de dizer: não há juízes a tomarem posse como ministros e secretários de Estado?
A solução, se o estatuto não permitisse, seria essa. Com o estatuto que temos seria possível criar mecanismos de avaliar melhor a idoneidade das pessoas que entram na função, mas também das pessoas que regressam à função vindas de uma comissão de serviço ou, como aconteceu há pouco tempo e toda a gente se lembra, de alguém que tendo estado em licença de vencimento regressa. Não há mecanismos de filtragem suficientes à entrada e, portanto, também temos dito que era importante apertar essa malha, não apenas à saída da formação e à entrada no início da carreira, mas também no regresso de funções de comissões de serviço não judiciais, é essa a nossa proposta, e das licenças sem vencimento.

E como é que se faria? Com um inquérito, com uma averiguação?
Tinha de se fazer dessa forma. A lei já permite que um candidato a juiz não seja nomeado, não obstante ter tido aproveitamento no Centro de Estudos Judiciários, se existirem razões para acreditar que há problemas de idoneidade ética daquele candidato. A lei permite que não seja nomeado, não diz depois como é que se faz essa decisão. Portanto, podia o conselho perfeitamente regulamentar a forma como faz essa avaliação. Vindo um candidato sinalizado como problemático pelos mecanismos normais que fizeram o acompanhamento durante o estágio, o conselho fazer uma inspeção, com certeza, e se entendesse que a pessoa não tinha condições não permitia a nomeação. Cá está um exemplo de um mecanismo que já existe na lei e que não é suficientemente ativado. Às vezes andamos à procura de descobrir a pólvora, quando já temos os fósforos que nos permitem fazer lume. Não precisamos de inventar a roda outra vez. Às vezes temos na lei mecanismos, mas o problema é que as instituições, as inércias, as rotinas de trabalho e as formas habituais de fazer ou não fazer tornam muito difícil introduzir mudanças. Para um regresso de funções era criar um mecanismo de avaliação que fosse verificar. Na maior parte dos casos, com certeza não haveria problemas, mas ponho o exemplo daquele juiz que já não é juiz, que chegou de rompante a partir tudo, esta pessoa se tivesse sido avaliada, com certeza, não tinha entrado porque os sinais de inadaptação eram tantos que tinha de ser visto.

O que é que falhou aí? Esse senhor não devia ter sido juiz ou devia ter sido impedido o seu regresso?
Sobre esse ex-juiz, a informação que tenho é que era um juiz normal durante o período que exerceu as funções. Depois, saiu para licença sem vencimento, não faço ideia do que é que fez nesse período de quase dez anos, e regressou da forma que vimos. Onde é que houve a falha? Foi não existir um mecanismo na lei que obrigasse o conselho, ou permitisse ao conselho, verificar se o candidato ao reingresso tem condições para regressar. Se esse mecanismo existisse, e fosse ativado, estou convencido de que ele não teria regressado à função.

Enquanto juiz sentiu-se embaraçado ou envergonhado?
Absolutamente. Eu e os juízes todos. Mas não fui só eu, qualquer cidadão ao ver aquelas figuras se sentiu incomodado e envergonhado.

Portugal pontua mal nos índices internacionais de corrupção e a justiça que não sai ilesa. O que é que é preciso fazer para credibilizar a imagem da justiça aos olhos dos portugueses, nessa área?
Conseguimos saber que há uma perceção elevada sobre a corrupção, mas não sabemos, na realidade, se temos um fenómeno de corrupção grave, médio ou pouco grave. Pondo essa questão de lado que é importante, acho que a forma mais eficaz de prevenir a corrupção é termos um sistema repressivo que funcione. Um sistema de investigação e punição rápido, com respeito pelos direitos, que consiga num prazo razoável e aceitável para o cidadão, e que ainda produza algum efeito útil, punir as pessoas responsáveis e absolver rapidamente as pessoas que não são responsáveis. Se tivermos um modelo destes, a prevenção é mais eficaz, porque as pessoas pensam duas vezes antes de se envolverem em atos de natureza corruptiva. Portanto, há aqui um problema de eficiência do sistema, temos um sistema processual penal preparado e que responde muito bem, em termos médios muito melhor do que a média dos países do Conselho da Europa, para os processos normais, mas para os chamados megaprocessos para a grande criminalidade económico-financeira responde mal. E responde mal porque um processo que demora dez anos a apurar uma culpa é um processo que responde mal. E não é possível apurar um fator único: há o problema dos megaprocessos, das conexões - às vezes excessivas -, há o problema das dificuldades de investigar, e certos meios de prova, que não estão facilmente acessíveis aos investigadores, há o problema da instrução - se faz algum sentido replicar um julgamento numa fase intermédia em que não se está a decidir se a pessoa cometeu um crime, mas apenas se deve ir a julgamento -, depois há o problema das garantias. Nunca podemos dizer que há garantias excessivas, mas podemos dizer que elas são mal utilizadas.

E não há muitas vezes duplas garantias?
Duplas, triplas. Olho para a lei e não consigo ver que uma garantia é excessiva, mas consigo olhar para os processos e ver "aqui houve abuso". Por exemplo, o recurso para o Tribunal Constitucional - e esta sim parece-me excessiva -, de manter o efeito suspensivo de uma decisão condenatória. Uma pessoa é condenada a dez anos de prisão por corrupção, em primeira instância por três juízes, recorre para a Relação e a Relação confirma a decisão porque considera que os factos foram bem julgados e que a pena é adequada. Recorre para o Supremo e o Supremo confirma, e recorre para o Constitucional. E nestes anos todos a pena não é executada.

O senhor chama "pedregulho" a esse efeito suspensivo. É um "pedregulho" no caminho e ao qual só têm acesso os ricos?
Exato, é um pedregulho que é só para o caminho dos ricos ou das pessoas que conseguem aceder a esses meios, não para as pessoas que não têm acesso ao Tribunal Constitucional pelas razões que falámos há pouco, não têm de se preocupar com esse pedregulho porque nem chegam lá. Mas aqui está uma garantia que é excessiva e porque é que é excessiva? Porque não conseguimos identificar nenhum caso de alguém que tivesse sido condenado em pena de prisão, cuja pena fosse revertida ou anulada, por força do recurso de um Tribunal Constitucional. Não conheço caso nenhum, e devo dizer que procurei informar-me.

Mas aí há sempre a presunção de que o tribunal último pode reverter a medida.
Pois pode, mas se em cada mil casos ainda não aconteceu vez nenhuma, o que podemos perguntar é se faz sentido manter esta garantia, quando aquilo que ela está a conseguir não é proteger os direitos legítimos de uma pessoa injustamente condenada, mas apenas protelar a execução da decisão das outras 999 pessoas em que se verificou que esse recurso não teve outro efeito que não fosse atrasar a decisão.

Então, como citou num dos seus artigos, terá razão a sua colega juíza quando disse que "Sócrates está a fazer tudo para evitar o julgamento", precisamente, recorrendo ao Tribunal Constitucional, para ter o tal efeito suspensivo?
Isso era uma citação de um jornal que dizia que a juíza tinha escrito isso num despacho. Não faço ideia se é o caso, mas não me admiro - nesse processo ou noutro - que os arguidos utilizem os mecanismos que a lei concede, que são muitos, e que abusem deles. Por exemplo, se a lei permite que um arguido, através do seu advogado, invoque uma nulidade, que peça a recusa do juiz, peça que a decisão seja aclarada porque não percebeu bem a decisão, a lei permite tudo isto, mas isto foi pensado para um uso legítimo. Se uma pessoa utilizar estes mecanismos todos apenas para atrasar uma decisão, então com certeza que é ilegítimo. Se um dia formos ver todos estes processos grandes, estes processos para que estamos agora a olhar, era importante ir olhar para eles no fim, fazer a análise retrospetiva, e tentar perceber onde é que houve o abuso. E tenho a certeza de que íamos descobrir muitos abusos de mecanismos processuais que não eram necessários para cuja finalidade estão previstos.

Nesta semana ficámos a saber das mudanças no chamado Ticão.
Havia dois juízes, passaram a ser nove com os dois que já lá estavam e, agora, quer Carlos Alexandre quer Ivo Rosa manifestaram, ou aparentemente manifestarão, intenções de sair, um por uma razão, outro por outra. Que leitura é que faz dessas alterações?

Começando pela última parte, por boas ou más razões, é indiferente. Qualquer juiz pode sair do tribunal onde está. Isso não é drama nenhum. A justiça não para se eu deixar de ser juiz do tribunal onde estou ou se o doutor Ivo Rosa ou Carlos Alexandre amanhã saírem. Não vale a pena dramatizarmos e acharmos que vai parar o mundo da justiça porque sai o juiz A ou B. Segundo aspeto: aquilo que o conselho decidiu - e não tenho elementos para dizer se decidiu mal, pelo contrário, acho que decidiu bem - foi que um juiz estava impedido porque lhe foi concedida exclusividade, o juiz Ivo Rosa. Atribuiu, temporariamente, os processos ao juiz Carlos Alexandre, porque naquele tribunal de dois era o substituto legal. Mas a partir de janeiro entra em vigor uma nova organização em que passam a ser nove juízes e o conselho decidiu que esses processos que estavam atribuídos temporariamente a um juiz passam a ser redistribuídos pelos outros todos, porque considera que essa é uma melhor medida de gestão. Não vejo nenhuma ilegalidade, não vejo nenhuma razão para as pessoas acharem que essa decisão foi para tirar o processo A ao juiz B ou vice-versa.

Mas ao perder o caso EDP, Carlos Alexandre não está a ser desautorizado? Ou está a corrigir-se um erro que durava há algum tempo?
Não. Quantos processos é que já me atribuíram que eram de outros juízes? Quantos processos já foram meus e foram redistribuídos a outros juízes? Isso acontece às dezenas todos os dias.

Isso não vai fazer apenas perder tempo? O juiz vai demorar a apanhar o fio à meada para levar o processo até ao fim, veja-se o caso da EDP. Não torna ainda mais morosa a justiça?
Acho que não. Nesse processo da EDP, o processo era de um juiz, passou a estar temporariamente atribuído a outro juiz, que tomou certas decisões que foram objeto de atenção e crítica pública com toda a legitimidade, não vou comentar. Portanto, essa atribuição era uma atribuição temporária. Se a exclusividade do juiz Ivo Rosa, caso se mantenha no tribunal, se mantiver durante um ano, ou dois, ou três, esses processos têm de ter um juiz que os acompanhe com tempo. E se passamos a ter um quadro de nove juízes, é suposto que todos tenham uma carga de serviço mais ou menos equivalente, para que os processos de todos corram à mesma velocidade, portanto, não vejo aí nenhum drama. E também é preciso dizer que a ideia que se instalou de que um juiz chega e faz o que quer do processo e que revoga as decisões do anterior, e se estava preso solta e se estava solto prende, isso também não é bem assim. Porque as decisões, uma vez transitadas em julgado dentro do processo, não podem ser alteradas a menos que se mudem as circunstâncias, nomeadamente as decisões sobre as medidas de coação. Portanto, sinceramente, há boas razões para criticar a justiça, mas essa não é uma delas.

Há pouco aflorou o tema dos megaprocessos e o senhor já denunciou a morosidade da aquisição de prova nos megainquéritos. O que fazer, partir o elefante às postas e ir decidindo às postas?
​​​​​​​É preciso olhar para cada caso concreto, mas diria que às vezes mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Se fosse procurador e tivesse um dia de tomar uma decisão estratégica numa determinada investigação, e olhava para o conjunto de factos que tinha à minha frente e dizia para mim: isolando estes factos consigo fazer este julgamento mais depressa porque já tenho prova para estes. É certo que há aqui conexões para outros, mas estes outros vão demorar três ou quatro anos a investigar. No plano estratégico faz mais sentido para mim, procurador, levar este caso já a julgamento e os outros, quando os tiver prontos, logo levo. Uma decisão deste género é muito diferente de dizer que enquanto não tiver descoberto o novelo todo não levo a julgamento. E há aqui um momento em que a decisão é do Ministério Público. Não estou em condições de dizer se o caso A ou B foi mal decidido ou não, mas diria que é possível, se houver uma decisão estratégica mais pensada, que alguns casos talvez consigam ir a julgamento mais rapidamente.

Por princípio é contra megaprocessos, é isso?
Não, não sou. Sou contra é processos monstruosos, ingeríveis e injulgáveis.

Os chamados megaprocessos.
Haverá sempre casos para megaprocessos, porque em certa criminalidade o puzzle é de tal maneira imbricado que se começarmos a isolar peças não percebemos a imagem toda. Portanto, não fecho a porta para a possibilidade de terem de existir sempre megaprocessos, mas, nesse caso, temos então de ter mecanismos processuais, nomeadamente, auxiliar mais na investigação, mais meios para a investigação, mais meios para auxílio ao juiz no julgamento e, sobretudo, meios para combater o abuso dos direitos processuais quando estes estão a ser de forma desviada, para conseguirmos chegar mais depressa ao desfecho final.

Na Operação Marquês, José Sócrates argumenta que o processo é uma fraude porque não se cumpriu a regra que dita sorteio do juiz. Concorda?
As teorias da cabala não têm sentido nenhum. Nem nesse processo nem em processo nenhum. Porque pressupõem uma coisa impossível - que investigadores, polícias, procuradores, que não se conhecem de lado nenhum e que intervieram às dezenas nos processos, tivessem um dia combinado qualquer coisa, mas isso obrigava a que se tivessem reunido num sítio escuro para combinar uma tramoia. Entra pelos olhos dentro que não pode ser. Não tem pés nem cabeça.

A fuga do banqueiro João Rendeiro foi uma má imagem da justiça e dos juízes que não viram o que estava diante dos seus olhos?
Foi. Objetivamente foi um prejuízo sério para a imagem da justiça. As pessoas não percebem que uma pessoa possa fugir naquelas circunstâncias. Devo dizer, no entanto, que aquilo que é conhecido não permite, na minha leitura, apontar as culpas. Depois de a pessoa fugir toda a gente é capaz de dizer que ele devia ter sido preso, mas quero recordar que uns tempos depois foi presa outra pessoa e que o argumento foi exatamente o contrário.

Está a falar de Manuel Pinho?
Sim. Quando o senhor João Rendeiro fugiu estava com termo de identidade e residência talvez há dez anos e tinha sempre cumprido as regras. E, portanto, se ele tivesse sido preso na véspera, antes de fugir, muito provavelmente toda a gente iria dizer que era excessivo porque nunca tinha fugido. Passados uns tempos, outro arguido é preso e aí as mesmas pessoas que antes disseram que a justiça deixou fugir depois disseram que a justiça prendeu a mais. É possível que tenham acontecido ambas as coisas, não estou aqui a dizer não, porque não estou a avaliar se a justiça agiu bem ou mal, estou só a dizer que temos de ser rigorosos no discurso e tentar perceber se, naquelas circunstâncias concretas, com os factos que se conheciam, poderia ter sido tomada outra decisão.

Estando Rendeiro com termo de identidade e residência, deu a morada oficial de uma embaixada. Isso não fez soar o alarme?
​​​​​​​Vamos admitir que sim. Mas a verdade é que a primeira vez que utiliza esse mecanismo, diria atípico, e utilizando o seu critério com certeza suspeito, ele regressou. E, portanto, depois de regressar podiam os magistrados, mesmo olhando para aquilo, dizer que isto foi atípico, mas ele regressou. A segunda vez que utilizou isso levantou um sinal de alarme, mas já tinha fugido. Não quero estar a fazer um julgamento sobre as culpas ou as inocências de quem estava no processo, quero apenas dizer que isto é mais complexo e tem mais nuances do que uma primeira leitura mais apressada possa indicar.

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