Há 60 anos que um alemão não presidia a Comissão Europeia. Na altura, pouco depois da assinatura do Tratado de Roma, da crise do Suez, da marcha soviética sobre Budapeste, a Alemanha Ocidental fechava o ciclo de reinserção europeia, pouco mais de uma década após a Segunda Guerra Mundial. A nomeação de Walter Hallstein para liderar a então Comissão na Comunidade Económica Europeia, ele que foi braço direito do chanceler Adenauer nas negociações de Roma, sinalizava ainda dois outros pontos, além da reinserção alemã: por um lado, uma visão de compromisso com Paris por passos no aprofundamento da integração europeia e, por outro, o triunfo da doutrina de isolamento da Alemanha de Leste, defendida por Hallstein. O alemão manteve-se no cargo entre 1958 e 1967, até o choque com o general De Gaulle e a ostpolitik do chanceler Brandt levarem a melhor. Desde então, nunca mais nenhum alemão presidiu a Comissão. Até Ursula Von der Leyen entrar amanhã em funções..Isto não significa que Berlim não tenha sido preponderante nas escolhas e na sustentabilidade de vários presidentes, dinâmicas ajustadas com Paris que também ajudaram a definir os termos da ação europeia do eixo franco-alemão. Para não ser exaustivo, nem recuar muito no tempo, basta lembrar a importância dos alinhamentos entre o chanceler Kohl e o presidente Mitterrand para o trabalho da Comissão liderada por Jacques Delors, num período de alargamentos comunitários (Portugal, Espanha, Grécia, Áustria, Suécia, Finlândia) e alterações sistémicas profundas (reunificação alemã, fim do Pacto de Varsóvia e implosão da União Soviética). Ou ainda entre Merkel e Sarkozy para a sustentabilidade da Comissão Barroso perante o grande alargamento (12 novos Estados membros em apenas três anos) e as várias derivações da crise financeira, com impactos no euro e sobretudo na coesão entre várias geografias europeias. O sucesso de Von der Leyen dependerá, como sempre, da saúde do eixo franco-alemão e da força política que este imprimir numa visão minimamente comum, mas acima de tudo de sucesso, para a União Europeia. A verdade é, porém, muito diferente: a relação entre Paris e Berlim é disfuncional no tempo político, desfasada no método e desconectada na ambição..A grande disfuncionalidade resulta do timing político das lideranças. Enquanto Macron chegou há pouco tempo ao poder, ainda por cima na ternura dos quarenta, Merkel está há 14 anos na chancelaria e em ocaso evidente. Além disso, o presidente francês, além da legitimidade política recente, tem uma maioria parlamentar confortável para lidar com os choques da legislatura. Em Berlim, a terceira versão da grande coligação está hoje mesmo a ser literalmente disputada no congresso do SPD, com uma das candidaturas a propor o fim dos acordos. Economicamente, a estagnação francesa parece caminhar em paralelo com uma possível recessão alemã, cenário ainda mais complicado se a situação política se deteriorar em Berlim nos próximos meses. Foi precisamente para mascarar as disfuncionalidades existentes e as mais que ficarem expostas que Macron e Merkel lançaram há dias a enésima grande conferência sobre o futuro da Europa, ciclos intermináveis de debates e auscultações nacionais que ligarão a presidência alemã da UE (2.º semestre de 2020) com a francesa (1.º semestre de 2022). Vale a pena lembrar que no meio delas é Portugal que assume o primeiro semestre de 2021, o que exige articulação extra e um alinhamento estratégico com o eixo..O desfasamento no método encaixa aqui. Só quem não está alinhado nas reformas imperativas da UE a curto prazo, sobretudo num quadro pós-Brexit, é que propõe um ciclo de discussões macropolíticas a três anos. O mesmo se passa na NATO, com o ministro dos negócios estrangeiros alemão, Heiko Maas, a lançar a ideia de um "grupo de sábios" para discutir o futuro da Aliança. Como escreveu Jan Techau, quando os alemães não sabem o que fazer, costumam lançar para cima da mesa a ideia de um grupo de trabalho para estudar o assunto (parece que, afinal, portugueses e alemães têm mais em comum do que parece). Não é, entendamo-nos, a ideia de um debate alargado que preocupa, mas a demonstração de falta de vontade e capacidade política para levar a cabo um roteiro já alvo de discussões intensas, diagnósticos espremidos, prescrições debatidas e anúncios engalanados. Se Macron é o espalha-brasas dos vários debates europeus (moeda única, alargamento, Rússia, defesa europeia, NATO, islão), Merkel é a encriptada gestora de crises, oficialmente resignada ao statu quo comunitário..A desconexão na ambição está aqui e é, atualmente, profunda e cristalizada. Declarações entre ministros das Finanças ou de chefes de Estado em cimeiras bilaterais recorrentes não fazem delas roteiros de reforma política na Europa. A gestão das expectativas é também um problema político a resolver. O primeiro teste vai ocorrer já a 3 e 4, na cimeira da NATO em Londres, naquilo que se prevê um turbilhão de tentações, com uns quantos aliados a quererem celebrar os 70 anos da Aliança sem querelas e, outros, a começar por Trump, passando por Erdogan e acabando em Macron, mortinhos por lançar lenha nas fraturas (e nas faturas, também) cada vez mais profundas. O segundo, no dia 9, em Paris, quando o modelo Normandia regressar após três anos, para tentar um caminho sério com a Rússia (espera-se que não condescendente) sobre a situação na Ucrânia. Sem a presença oficial da UE, Paris e Berlim têm responsabilidade partilhada no reforço dos roteiros de Minsk e na assertividade com Moscovo. O terceiro, quando o Conselho Europeu se reunir a 12 e 13, em cima das legislativas britânicas, para dirimir, entre outros assuntos, a reta final do próximo orçamento, a coordenação com a nova Comissão e a última fase da saída no Reino Unido, antes do período de transição começar..Se pensavam que o ano já estava a dar as últimas, enganaram-se. A má notícia é que França e Alemanha estão longe de partilhar uma visão comum indispensável aos grandes desafios europeus que se aproximam. E este é, provavelmente, o debate mais importante para o futuro próximo de Portugal.Investigador universitário