Muitos futebolistas chegam aos 38 anos já com as botas penduradas. Mas para o melhor marcador de sempre e desta edição da II Liga, Jorge Pires, 38 "é só um número", o das velas que soprou na segunda-feira. São 107 golos no total da competição, 12 em 2018/19 ao serviço do Penafiel, clube ao qual está emprestado pelo Portimonense..Máximo goleador da prova em 2013-14 pelo Moreirense (22 golos) e em 2016-17 pelos algarvios (23), Pires está na pole position para mostrar que não há duas sem três. Curiosamente, recebeu os dois troféus de melhor marcador já como trintão, facto que lhe prejudicou a carreira dada a resistência dos clubes em apostar em jogadores mais velhos. "Só têm de olhar para o rendimento, isso é que é importante. As pessoas ainda têm aquela mentalidade de pensar "ah, já está velho", mas têm de olhar é para o rendimento e não para a idade", confessou ao DN.."Faltou chegar mais cedo às ligas profissionais. Cheguei à I Liga com 29 anos. Se tivesse sido mais cedo, se calhar as pessoas apostavam mais em mim. Na altura já se olhava para a proximidade dos 30 anos. Infelizmente em Portugal ainda se pensa um bocado assim", lamentou, mesmo assim contente com a carreira que fez e grato ao Portimonense pela confiança que foi depositando nele ao renovar-lhe o contrato, num país em que se pensa que "a partir dos 30 anos um jogador é veterano e já não dá"..Pires dá mesmo o exemplo de outras ligas europeias. "Noutros campeonatos, vê-se futebolistas com 30 e tal anos a marcar golos e a serem os melhores jogadores dessas ligas", acrescentou, talvez em alusão a nomes como Fabio Quagliarella, da Sampdoria, que não só é o melhor marcador da liga italiana como recentemente se tornou o mais velho autor de um golo pela seleção transalpina, aos 36 anos e 54 dias..Sem grandes segredos para manter o nível, foca-se no empenho dentro e fora de campo. "Tento trabalhar nos limites, ter um bocado de sorte com as lesões e levar uma vida regrada e saudável. Sou uma pessoa pacata, que gosta de estar em casa", contou, sem notar grandes alterações na capacidade física ao longo dos anos. "Sinceramente não sinto grandes diferenças. Trabalho sempre no limite, o que me ajuda muito. Com a experiência, se calhar vamos optando por fazer outras coisas dentro do próprio jogo, vamos aprendendo que não é necessário correr tanto, por exemplo", assumiu o avançado formado no Sporting de Braga..No balneário, aí sim, a longevidade faz-se sentir sobretudo em brincadeiras. "Há colegas que me tratam por você. Digo-lhes logo: "Escusas de me tratar por você." Tenho esta idade, podia ser pai deles, mas tento ajudá-los ao máximo. Vejo que têm respeito por mim e tento ajudar os mais novos. Alcunha não tenho, mas às vezes chamam-me veterano, faz parte", assegurou o goleador, que já tem o primeiro nível do curso de treinador e vai "tentar tirar" o segundo, para "continuar ligado ao futebol"..Pires é apenas o quarto jogador mais velho das ligas profissionais nesta época. O trono pertence a Nelsinho, médio ofensivo do Varzim, que completa 40 anos em julho. "Não sabia que era, mas houve um árbitro antes de um jogo que comentou isso comigo na brincadeira. No balneário às vezes chamam-me velhote ou velhinho", contou o varzinista ao DN, ainda com vontade de prosseguir a carreira. "O meu pensamento é continuar, posso é chegar ao final e acontecer-me alguma coisa ou nenhuma equipa me querer. Mas se estiver como estou agora, ainda tenho condições. Não depende só de mim", frisou, focado na permanência do Varzim na II Liga.."Recorde de Miura? Vamos ver...".Por sentir-se bem, o final de carreira ainda não está no horizonte de Pires. "Quando sentir que já não sou capaz de ajudar, aí acaba o futebol para mim. Mas enquanto me sentir bem a ajudar a equipa que representar, vou dar o máximo", frisou, sem pensar numa meta de longevidade..Há dois anos, o japonês Kazuyoshi Miura estabeleceu o recorde de jogador mais velho a atuar e a marcar nas ligas profissionais, com 50 anos, ao serviço do Yokohama FC, na II Divisão nipónica. Hoje, com 52 anos, ainda joga a um nível profissional. Será que Pires se vê a jogar com essa idade? O avançado não diz que não: "É uma longevidade mesmo muito grande! É diferente. Se calhar a mentalidade japonesa também é diferente. Vamos ver ano após ano.".Pires nasceu em Amares, no distrito de Braga, mas começou a jogar futebol na Suíça, para onde os pais foram viver durante um ano, quando ele tinha 12. Curiosamente, 12 foi também o número de clubes que o minhoto representou enquanto sénior. O primeiro foi o Sp. Braga, onde percorreu as camadas jovens ao lado do amigo Tiago, antigo médio de Benfica, Chelsea, Juventus e Atlético Madrid..Da cidade de Braga saltou para Porto Santo, onde viveu algumas das maiores peripécias da carreira em 2004-05. "Trocámos de treinador umas três ou quatro vezes. Houve um treino em que um treinador, já o segundo ou o terceiro, começou a chamar por uma série de nomes de jogadores e disse: "Estes que eu disse metem coletes." E vira-se um jogador: "Mas ó mister, não há coletes", ao que ele respondeu, "então tirem as camisolas". E treinámos sem camisola", contou, recordando também as viagens de e para o continente. "Por vezes para ir para Porto Santo tínhamos de apanhar três aviões. Do Porto para Lisboa, de Lisboa para o Funchal e do Funchal para Porto Santo. Em certas ocasiões só chegávamos no dia seguinte. Também apanhei alguns sustos. Uma vez estávamos a chegar de avião a Lisboa e as hospedeiras começaram a arrumar tudo. Passado um minuto o piloto disse que o trem de aterragem não tinha descido e andou às voltas na pista até que lá conseguiu fazer as rodas descer", revelou..Pires foi trocando de clube quase todos os anos, mas foi em Portimão que mais se notabilizou. Em 2010, estreou-se na I Liga em Braga e marcou o primeiro golo no escalão principal do futebol português frente ao Sporting. Sete anos depois, alcançou a segunda subida pelos algarvios e juntou-lhe o título de melhor marcador..No regresso à elite, no Portimonense, viveu na sombra de Fabrício, mas foi aproveitando as oportunidades, apontando sete golos na competições, três dos quais na tarde mágica de 31 de março do ano passado, na véspera de completar 37 anos. Sob o olhar atento dos pais, emigrantes em França mas que naquele dia estavam em Portimão de visita, Pires apontou um hat trick ao Moreirense, ajudando o Portimonense a virar um resultado de 0-3 para um de 4-3: "Foi uma tarde em cheio, em que lhes pude dedicar os golos. Se calhar, o jogo da minha carreira que vai ficar mais na memória é esse com o Moreirense.".A dupla improvável depois de Luanda.Tal como naquele dia em frente à baliza, Pires também não hesita quando lhe perguntam qual o colega com quem se entendeu melhor dentro de campo. "Isso é fácil! O Nakajima [jogador japonês que representou o Portimonense]! É fora de série. Ele não falava muito inglês, mas no futebol não é preciso. Entendíamo-nos muito bem, só com o olhar, e a jogada saía. É um jogador muito inteligente, de último passe. Ele via-me a desmarcar, sabia qual era a minha desmarcação e a bola aparecia. Acho que com estes jogadores até te valorizas mais", atirou, deixando rasgados elogios ao extremo japonês..Se foi um estrangeiro com quem se entendeu melhor, foi fora de Portugal que viveu uma das experiências mais enriquecedoras da carreira. Foi em 2014, no Benfica de Luanda, em Angola, onde passou cinco meses que valeram por muitos mais. "Tenho muitas histórias de Angola, desde equipar-me em contentores ou tomar banho de água fria. Às vezes faltava água e tinha de tomar banho com garrafas de litro e meio. Quando vinha a água, aproveitava para encher as garrafas vazias. A primeira coisa que me disseram quando cheguei foi que quando faltava água tinha de tomar banho de garrafão ou de garrafa de litro e meio. Foi um choque, tivemos de nos habituar. Acabámos por ganhar a Taça de Angola. Aprendi muitas coisas e acho que os jogadores deviam passar por essas experiências, porque enriquecem", garantiu.