Após quatro estéreis e lúgubres meses sem competir, a selecção de todos nós regressou aos relvados. O último jogo tinha sido um empate com a Polónia. O jogo antes desse tinha sido um empate com a Itália. Agora chegara a altura de iniciar a caminhada para revalidar o título europeu de 2016, conquistado após uma épica sucessão de triunfantes empates. Estaríamos à altura dos nossos pergaminhos, papiros e restantes materiais? Quaisquer receios de que o compromisso lusitano com os valores da igualdade tivesse sido diluído pela falta de prática foram rapidamente dissipados: ao empate com a Ucrânia seguiu-se, na segunda-feira, um não menos auspicioso empate com a Sérvia. É prematuro começar já a festejar, mas os sinais optimistas são visíveis para o olho patriótico..Depois do apito final, os adeptos veteranos preparam-se para as exéquias habituais nestas ocasiões - uma confortável maratona pelos canais noticiosos, onde as incidências do jogo seriam escalpelizadas por profissionais: as virtudes do 4-4-2 sobre o 4-3-3, as injustiças perpetradas por árbitros convenientemente estrangeiros, como incluir a palavra "Ronaldo" em pelo menos dois terços das frases proferidas, etc. O Pé em Riste, na CMTV, começou com o moderador a ir directo ao assunto: "Vítor Catão, boa noite, e obrigado pela sua presença. Diga-me uma coisa: foi você quem deu a estalada ao César Boaventura?".Não é de descontar a hipótese de alguns telespectadores terem sido apanhados desprevenidos, até porque o rescaldo de um jogo internacional contra a Sérvia não incluía a palavra "estalada" há pelo menos 12 anos, desde que Scolari pregou um bofetão a Dragutinovic. E quem era este misterioso Catão? O Catão mais notório até agora, bisavô do segundo Catão mais notório, era um ávido defensor dos valores romanos, que se destacou numa variedade de cargos que rimam (questor, pretor, censor, e possivelmente telespectador), e que tinha o patusco hábito de terminar todos os discursos ao Senado com apelos à destruição de Cartago. O terceiro Catão, ex-director desportivo do Canelas e actual presidente do São Pedro da Cova, destacou-se por invadir o automóvel de um empresário desportivo, coagi-lo a tocar uma música de tourada, e gravar todo o incidente num smartphone..Não era um episódio tão fácil de escalpelizar como um mero empate, mas o novíssimo Catão seguiu o preceito retórico do antepassado: rem tene, verba sequentur - domina o assunto, que as palavras surgirão. "A Polícia Judiciária pode ir a minha casa todos os dias, a qualquer hora, comer uma sopinha", explicou. "Eu sou uma pessoa séria." O moderador insistiu: "Mas responda-me só a esta pergunta: foi você quem deu a estalada?" "Eu nunca matei ninguém... eu falei aquela coisa, eu mato-te, que é aquela situação em que a gente estamos irritados e essa boca saiu-me porque eu nunca matei ninguém nem quero matar. Deus, quando me levar, eu quero ser uma pessoa que nunca hei-de conhecer situações, histórias, isso tudo. Sou uma pessoa muito pura.".À mesma hora, no Prolongamento da TVI 24, o alvo da enigmática estalada, César Boaventura, relatava a sua versão do incidente. Aproveitou também para explicar porque é que tinha feito um pósse divulgando o nome de um árbitro 24 horas antes de o mesmo ser nomeado. "Não é a primeira vez", esclareceu, "que eu faço esse tipo de pósses. Julgo que em Dezembro de 2018 fiz um pósse também, duma cópia de um uátessápe, a dizer qual seria o árbitro do jogo seguinte.".Boaventura garantiu ainda que há um clima de coacção no futebol português. "Tem provas?", perguntou o entrevistador. "Não, mas sei que há." "Tem noção da gravidade?", insistiu o entrevistador. "Tenho noção da gravidade.".De regresso à CMTV, a oratória de Catão foi brevemente interrompida para um périplo pelos comentadores residentes, que declararam gravemente que a situação era "grave", se não mesmo "muito grave". Catão aproveitou a oportunidade para dizer que tinha algo ainda mais grave a denunciar, mas os compromissos publicitários obrigam a nova interrupção. Após 15 minutos de créditos bancários e lentes progressivas, o moderador recupera o fio à meada: "Estava a dizer-me que tinha uma declaração gravíssima, ainda mais grave do que aquilo que já disse, e aquilo que disse já é extremamente grave.".Prefaciando a gravíssima denúncia com a revelação de que tem três filhos e vários netos (marcando assim uma clara diferença para o Catão romano que, segundo Plutarco, só abraçava a mulher em noites de tempestade), o Catão de São Pedro da Cova explica então que quem manda em Portugal não é o primeiro-ministro, mas três advogados de Lisboa. "E a mando desses advogados, estão cá em Portugal três, ou quatro, ou cinco russos para matar o Rui Pinto."."Tem noção do que me está a dizer?"."Eu não sou maluco. E sabe porquê? Porque ele entrou no site desses três advogados e descobriu coisas que, se isso vem à baila, Portugal morre. Portugal MORRE."."Só para ver se eu estou a perceber o seu raciocínio, porque é extremamente grave o que me está a dizer." "Sim, é muito grave, muito grave.".A gravidade foi reforçada pelos comentadores em estúdio, que ainda assim fizeram um esforço para recentrar a questão, tratando, com louvável pragmatismo, de comentar os aspectos práticos e logísticos de assassinar uma pessoa.."Se estiverem russos em Portugal para matar Rui Pinto, porque é que não o mataram na Hungria? Até o tinham muito mais à mão..."."E a viagem era mais curta!"."E não estava dentro de um estabelecimento prisional."."Era muito mais fácil matar Rui Pinto em Budapeste."."Aliás, estava em prisão domiciliária!".O golo contra a Sérvia, segundo um tímido e efémero rodapé, foi marcado por Danilo, num remate de meia distância. Um remate de meia distância que, quando Deus o levar, será um remate de meia distância que nunca conheceu situações, histórias, isso tudo. Um remate de meia distância muito puro..Escreve de acordo com a antiga ortografia
Após quatro estéreis e lúgubres meses sem competir, a selecção de todos nós regressou aos relvados. O último jogo tinha sido um empate com a Polónia. O jogo antes desse tinha sido um empate com a Itália. Agora chegara a altura de iniciar a caminhada para revalidar o título europeu de 2016, conquistado após uma épica sucessão de triunfantes empates. Estaríamos à altura dos nossos pergaminhos, papiros e restantes materiais? Quaisquer receios de que o compromisso lusitano com os valores da igualdade tivesse sido diluído pela falta de prática foram rapidamente dissipados: ao empate com a Ucrânia seguiu-se, na segunda-feira, um não menos auspicioso empate com a Sérvia. É prematuro começar já a festejar, mas os sinais optimistas são visíveis para o olho patriótico..Depois do apito final, os adeptos veteranos preparam-se para as exéquias habituais nestas ocasiões - uma confortável maratona pelos canais noticiosos, onde as incidências do jogo seriam escalpelizadas por profissionais: as virtudes do 4-4-2 sobre o 4-3-3, as injustiças perpetradas por árbitros convenientemente estrangeiros, como incluir a palavra "Ronaldo" em pelo menos dois terços das frases proferidas, etc. O Pé em Riste, na CMTV, começou com o moderador a ir directo ao assunto: "Vítor Catão, boa noite, e obrigado pela sua presença. Diga-me uma coisa: foi você quem deu a estalada ao César Boaventura?".Não é de descontar a hipótese de alguns telespectadores terem sido apanhados desprevenidos, até porque o rescaldo de um jogo internacional contra a Sérvia não incluía a palavra "estalada" há pelo menos 12 anos, desde que Scolari pregou um bofetão a Dragutinovic. E quem era este misterioso Catão? O Catão mais notório até agora, bisavô do segundo Catão mais notório, era um ávido defensor dos valores romanos, que se destacou numa variedade de cargos que rimam (questor, pretor, censor, e possivelmente telespectador), e que tinha o patusco hábito de terminar todos os discursos ao Senado com apelos à destruição de Cartago. O terceiro Catão, ex-director desportivo do Canelas e actual presidente do São Pedro da Cova, destacou-se por invadir o automóvel de um empresário desportivo, coagi-lo a tocar uma música de tourada, e gravar todo o incidente num smartphone..Não era um episódio tão fácil de escalpelizar como um mero empate, mas o novíssimo Catão seguiu o preceito retórico do antepassado: rem tene, verba sequentur - domina o assunto, que as palavras surgirão. "A Polícia Judiciária pode ir a minha casa todos os dias, a qualquer hora, comer uma sopinha", explicou. "Eu sou uma pessoa séria." O moderador insistiu: "Mas responda-me só a esta pergunta: foi você quem deu a estalada?" "Eu nunca matei ninguém... eu falei aquela coisa, eu mato-te, que é aquela situação em que a gente estamos irritados e essa boca saiu-me porque eu nunca matei ninguém nem quero matar. Deus, quando me levar, eu quero ser uma pessoa que nunca hei-de conhecer situações, histórias, isso tudo. Sou uma pessoa muito pura.".À mesma hora, no Prolongamento da TVI 24, o alvo da enigmática estalada, César Boaventura, relatava a sua versão do incidente. Aproveitou também para explicar porque é que tinha feito um pósse divulgando o nome de um árbitro 24 horas antes de o mesmo ser nomeado. "Não é a primeira vez", esclareceu, "que eu faço esse tipo de pósses. Julgo que em Dezembro de 2018 fiz um pósse também, duma cópia de um uátessápe, a dizer qual seria o árbitro do jogo seguinte.".Boaventura garantiu ainda que há um clima de coacção no futebol português. "Tem provas?", perguntou o entrevistador. "Não, mas sei que há." "Tem noção da gravidade?", insistiu o entrevistador. "Tenho noção da gravidade.".De regresso à CMTV, a oratória de Catão foi brevemente interrompida para um périplo pelos comentadores residentes, que declararam gravemente que a situação era "grave", se não mesmo "muito grave". Catão aproveitou a oportunidade para dizer que tinha algo ainda mais grave a denunciar, mas os compromissos publicitários obrigam a nova interrupção. Após 15 minutos de créditos bancários e lentes progressivas, o moderador recupera o fio à meada: "Estava a dizer-me que tinha uma declaração gravíssima, ainda mais grave do que aquilo que já disse, e aquilo que disse já é extremamente grave.".Prefaciando a gravíssima denúncia com a revelação de que tem três filhos e vários netos (marcando assim uma clara diferença para o Catão romano que, segundo Plutarco, só abraçava a mulher em noites de tempestade), o Catão de São Pedro da Cova explica então que quem manda em Portugal não é o primeiro-ministro, mas três advogados de Lisboa. "E a mando desses advogados, estão cá em Portugal três, ou quatro, ou cinco russos para matar o Rui Pinto."."Tem noção do que me está a dizer?"."Eu não sou maluco. E sabe porquê? Porque ele entrou no site desses três advogados e descobriu coisas que, se isso vem à baila, Portugal morre. Portugal MORRE."."Só para ver se eu estou a perceber o seu raciocínio, porque é extremamente grave o que me está a dizer." "Sim, é muito grave, muito grave.".A gravidade foi reforçada pelos comentadores em estúdio, que ainda assim fizeram um esforço para recentrar a questão, tratando, com louvável pragmatismo, de comentar os aspectos práticos e logísticos de assassinar uma pessoa.."Se estiverem russos em Portugal para matar Rui Pinto, porque é que não o mataram na Hungria? Até o tinham muito mais à mão..."."E a viagem era mais curta!"."E não estava dentro de um estabelecimento prisional."."Era muito mais fácil matar Rui Pinto em Budapeste."."Aliás, estava em prisão domiciliária!".O golo contra a Sérvia, segundo um tímido e efémero rodapé, foi marcado por Danilo, num remate de meia distância. Um remate de meia distância que, quando Deus o levar, será um remate de meia distância que nunca conheceu situações, histórias, isso tudo. Um remate de meia distância muito puro..Escreve de acordo com a antiga ortografia