"A ditadura militar foi um período muito ordinário, e se não tivesse existido esse período ordinário, não estaríamos a sofrer ainda hoje todas estas mazelas no Brasil. Não podemos glorificar expedientes sombrios." A frase não é de nenhum crítico do governo, mas sim de Lobão, músico de rock conhecido por participar em dezenas de iniciativas de campanha de Jair Bolsonaro, em reação à determinação do presidente da República de comemorar os 55 anos do golpe militar de 31 de março de 1964.."Se o governo e os seus apoiantes não saírem de 64, o país estará fadado ao fracasso", disse, mais uma vez, não um político da oposição, mas Janaína Paschoal, do PSL, o mesmo partido de Bolsonaro e sua primeira escolha para a vice-presidência. "Faço questão de afirmar que a ditadura militar no Brasil, como toda a ditadura, foi abjeta e criminosa. Não adianta nada ficar revoltadinho com ditaduras comunistas e vir defender a ditadura militar", defendeu Danilo Gentili, apresentador de talk shows e eleitor apaixonado do presidente, ao partilhar um comentário nas redes sociais. No Twitter, a hashtag #ditaduranuncamais tornou-se o assunto mais comentado da semana..Apoiante declarado de Bolsonaro na segunda volta das eleições, o governador eleito do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), disse que festejar o golpe "não contribui em nada com a agenda política do governo"..Ao querer festejar a ditadura, Bolsonaro, que no dia 31 de março do ano passado, em pré-campanha eleitoral, soltou um foguete de agradecimento pelo golpe militar em frente ao Ministério da Defesa e em 2016 dedicou o voto pela queda de Dilma Rousseff ao torturador Brilhante Ustra, acabou golpeado por todos os lados..O deputado Alexandre Padilha, do PT, exigiu informações sobre o teor das comemorações ao Ministério da Defesa em requerimento. E citou ainda o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, do governo Dilma Rousseff, que recomendou proibir "a realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964". O objetivo era "prevenir graves violações de direitos humanos no Brasil"..Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, por exemplo, o general Lourival Carvalho Silva mandou convites formais para uma comemoração "alusiva à revolução democrática de 31 de março de 1964", com "traje do nono batalhão para os militares" e "passeio completo para os civis"..Candidato presidencial derrotado, Geraldo Alckmin, presidente do PSDB, lembrou que "a história não pode ser reescrita por governantes de plantão e tampouco se pode apagar a triste memória de tempos sombrios, que deixaram como saldo centenas de mortos ou desaparecidos"..José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da ONG Human Rights Watch, disse que o presidente "critica com razão os governos cubano e venezuelano", mas "celebra ao mesmo tempo uma ditadura que causou um sofrimento indescritível"..A discussão, entretanto, saiu da arena política e das redes sociais e chegou aos tribunais. A juíza Ivani Luz determinou que o presidente se pronunciasse em até cinco dias - próxima terça-feira - sobre as comemorações do golpe militar, dando sequência a uma ação popular intentada pelo advogado Carlos Klomphas..O Ministério Público Federal disse, por sua vez, que comemorações do golpe militar merecem "repúdio social e político" e são passíveis de configurar "improbidade administrativa" e, no limite, impeachment. "Festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos (...) soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo das repercussões jurídicas", diz a nota dos procuradores..Para a Ordem dos Advogados do Brasil, "comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é querer guiar olhando para o retrovisor, mirando uma estrada tenebrosa"..Na imprensa, Eliane Brum, colunista conotada com a esquerda, escreveu na edição brasileira do jornal El País que "Bolsonaro mandou festejar o crime". "Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça.".Tradicionalmente mais próximo do governo, o colunista do portal G1 Hélio Gurovitz defendeu que "Bolsonaro pode ter dezenas de qualidades, outros tantos defeitos, mas não é historiador". "Se tem razão ao apontar erros na leitura-padrão na esquerda sobre os eventos daquela época, é um erro maior minimizar o arbítrio. Não há dúvida alguma sobre os factos: foi golpe, houve censura, tortura, pelo menos 434 mortos e desaparecidos arbitrariamente, fecho do Congresso, supressão de direitos políticos.".Mesmo as cúpulas militares, em nota, foram mais contidas do que o presidente - e capitão reformado - dizendo que as forças armadas "agiram conforme os anseios da nação brasileira" à época. Sem nunca classificar de "ditadura" o período de 1964 a 1985, a nota celebra, no entanto, a Lei de Amnistia de 1979 que tornou possível "uma transição para a democracia". Há sete ministros com formação militar no governo de Bolsonaro - contados os segundo e terceiro escalões governamentais, o número passa os cem (ver números)..Um deles, claro, é o vice-presidente, general Hamilton Mourão, que, mais uma vez, pôs água na fervura levantada pelo presidente. "Não vivemos num Estado democrático de direito? Não faz parte cada um defender aquilo que é justo? Então tudo bem em usarem os instrumentos legais", disse a propósito das petições populares na justiça contra as comemorações.."Probleminhas".Dada a repercussão do tema, o chefe do Estado foi obrigado a dar uma entrevista ao programa de crime Brasil Urgente, da TV Bandeirantes. "O regime viveu probleminhas, como num casamento, nenhum casamento é uma maravilha e nenhum regime é uma maravilha, tem probleminhas, tá certo?", resumiu..Na Câmara dos Deputados, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Araújo, saiu em apoio do presidente e negou ter havido golpe. "Não considero um golpe, considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida disso", afirmou o ministro..O governador do Rio de Janeiro também seguiu a mesma linha. "No Brasil nunca houve golpe. O que houve no Brasil foram ações do povo contra determinadas situações que, naquele momento, não eram de interesse do povo. Se não tivesse havido regime militar, teria havido um regime comunista. O povo optou pelo não comunismo.".O golpe militar em causa derrubou João Goulart, que de vice-presidente passaria a presidente, em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros. No dia 13 de março de 1964, Goulart defendeu em discurso no Rio de Janeiro a nacionalização das refinarias e a reforma agrária, para irritação dos militares e dos muitos civis que no dia 19 participam na Marcha das Famílias, nas ruas de São Paulo. Como beneplácito dos Estados Unidos, como está documentado, na madrugada de dia 31, o general Olímpio Mourão deu início, em Juiz de Fora, Minas Gerais, à movimentação de tropas em direção ao Rio, que resultou na fuga de Goulart para o Uruguai..No dia 2 de abril, os líderes dos três ramos militares aprovaram o ato institucional número um, que previa a supressão dos direitos políticos dos parlamentares opositores por dez anos e a convocação de eleições no Congresso para eleger o presidente em dois dias. O general Castello Branco, que viria no seu consulado até 1967 a suprimir eleições e dar o direito ao presidente de fechar o Congresso, foi o escolhido..Em dezembro de 1968, o ato institucional número cinco (AI-5) fechou o Congresso, suprimiu os mandatos de 4841 políticos e instituiu a censura à imprensa, ao cinema, ao teatro, à música e à televisão. No total, 434 pessoas morreram ou desapareceram na ditadura e 20 mil foram torturadas. Em 1979, o AI-5 foi revogado, abrindo caminho para a redemocratização, em 1985..434 mortos pela ditadura.Segundo a Comissão da Verdade, instituída pelo governo Dilma em 2011, 434 pessoas foram mortas pelo regime ou desapareceram durante o período..4841 destituídos dos cargos.O número de eleitos destituídos dos cargos é de 4841, diz a Human Rights Watch. Cerca de 20 mil pessoas terão sido torturadas, de acordo com a ONG..7 ministros militares.O governo atual tem mais ministros militares do que o de 1964-67, o primeiro pós-golpe. Mais de cem militares ocupam cargos de secretários de Estado ou de diretores-gerais