'Mulherzinhas': o tratado feminino e feminista de Greta Gerwig

Com seis nomeações para os Óscares,<em> Mulherzinhas</em> é uma adaptação refrescante e calorosa, por Greta Gerwig, do clássico da literatura de Louisa May Alcott. Uma mensagem do século XIX diretamente para os nossos dias.
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Porquê uma nova adaptação ao cinema de um clássico já tão revisitado? A pergunta antecipa-se a qualquer olhar sobre este Mulherzinhas, de Greta Gerwig. Existe uma belíssima versão de 1933, assinada por George Cukor, com uma jovem Katharine Hepburn, ou a de 1994, de Gillian Armstrong, com Winona Ryder - porventura a mais estimada e popular -, e a reimpressão contínua desse romance de 1868 parece garantir que a escritora Louisa May Alcott ainda tem muito a dizer às jovens deste tempo.

Reformulando a questão: como contar mais uma vez a história, já tão lida e narrada, das irmãs March? O resultado chegado às salas revela que Gerwig estava bem ciente desta necessidade de converter material "antigo" e acarinhado em qualquer coisa que comunicasse com as gerações do presente, sem para isso sucumbir a modernices estridentes ou sacrificar o espírito clássico - esse em que assenta o seu próprio amor pelo livro e pela autora. Assim, Mulherzinhas, de Greta Gerwig, que assina também o argumento (nomeado para o Óscar, tal como o filme), é, ao contrário da conhecida narrativa linear, um puzzle de memórias e emoções, que se vão encaixando à medida que a alma de uma escritora se apazigua no vendaval de alegrias e desventuras do seu passado familiar. Ou seja, está lá tudo, mas anda-se para trás e para a frente no tempo, ao sabor de um refrescante bailado de recordações que nos apresentam ao universo caloroso das personagens que conquistaram gerações.

Regressamos então à imagem dessa casa em Concord, Massachusetts, que se tornou território imaginário do aconchego, para reencontrar as quatro irmãs March na sua buliçosa vivência dos dias, com uma doce mãe ao comando do lar, ajudada pela ama, enquanto o pai está longe, a servir na Guerra Civil Americana. Mulherzinhas é um conto sobre o crescimento de todas elas - a indomável Jo (Saoirse Ronan), a determinada Amy (Florence Pugh), a bondosa Beth (Eliza Scanlen) e a responsável Meg (Emma Watson) -, seguindo as suas escolhas e destinos, sempre com um subtexto feminista, apenas amenizado por questões editoriais da época... Ora outra das opções inteligentes do argumento de Gerwig foi precisamente mostrar os bastidores da criação/publicação do livro, as negociações que Alcott teve de fazer por este seu romance autobiográfico, para poder ajudar financeiramente a família.

Nenhuma outra adaptação cinematográfica cruza o universo real de Alcott, nas suas lides editoriais, com a protagonista Jo (o seu alter ego), como aqui acontece. E ao mostrar os dois lados da moeda, Gerwig sublinha o maior propósito do seu filme: fazer um tratado sobre a valorização artística das mulheres. Não só de Jo, que ousou ir além das peças de teatro que escrevia para se divertir com as irmãs em casa, mas também de Amy, cuja forte ambição de se tornar pintora pesa mais nesta adaptação do que nas outras. Temos ainda a arte de Beth ao piano e o gosto de Meg pela representação. Todas as irmãs sentem apelo por uma forma de expressão artística - tal como a própria Greta Gerwig.

Eterna solteirona

Uma das histórias conhecidas à volta da publicação de Mulherzinhas é a de que Alcott - na realidade, uma eterna solteirona - foi levada a dar um apropriado casamento à sua protagonista. Algo que acontece no segundo volume do romance (Boas Esposas), não só por força do editor mas, sobretudo, pela pressão das suas leitoras... A confissão está nas cartas que escreveu e Gerwig juntou-as à sua principal fonte de inspiração, preparando um belo e engenhoso final para o filme, dentro desta matéria.

Perspicaz também é a escolha de Laura Dern para o papel da mãe Marmee, atriz que ultimamente estamos habituados a ver em registo de mulher executiva (parece que lhe está no ADN) e que aqui surge numa imperturbável e rara afabilidade. Gerwig sabe que não é bem assim que o espectador a conhece e, jogando com isso, num dos diálogos mais francos que ela tem com a filha Jo, ouvimo-la dizer: "Eu não sou paciente por natureza mas, com quase quarenta anos de esforço, aprendi a não deixar que isso me vencesse." É apenas um detalhe, mas importa para perceber como a precisão narrativa de Gerwig não descura sequer a correspondência com a pele das suas atrizes.

Nesse aspeto, a magnífica Saoirse Ronan (nomeada para o Óscar), que já no anterior Lady Bird era o alter ego da realizadora, retoma as rédeas dessa subtil afinidade, encarnando o espírito bravo de Jo, a mais indisciplinável das March, jovem sonhadora e ansiosa por "conhecer a Europa", que nem a velha tia endinheirada (Meryl Streep) nem o amigo/pretendente Laurie (Timothée Chalamet) conseguem dominar.

E renova-se a questão: como contar mais uma vez a história das irmãs March? Com coração quente e sensibilidade moderna. O convite é entrar num turbilhão nostálgico de tecidos e afeto, com a beleza da vida a desenhar-se a cada momento. Afinal, não há casa como a das March...

**** Muito bom

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