Snu no Marvão, em 1979.

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A snumania contada por quem conheceu a paixão nórdica de Sá Carneiro

Em criança chamavam-lhe Snu: esperta. E ela adotou esse nome. Snu, o filme, retrata a mulher inteligente e reservada que desafiou as convenções de um país conservador. Artigo originalmente publicado a 2 de março.

Conheceram-se a 6 de janeiro de 1976, num almoço no restaurante Chanceler, em Alfama. "Quando ele voltou do almoço, eu percebi que havia alguma coisa diferente", lembra Conceição Monteiro, que era na altura secretária de Sá Carneiro. "E depois disso falava muito dela." Ela era Snu Abecassis, 36 anos, dinamarquesa, a viver em Portugal desde 1962, fundadora das Publicações Dom Quixote.

O fundador do PPD já antes tinha falado ao telefone com Snu, uma vez que a Dom Quixote tinha editado um livro seu. Mas achava que ela "era uma velhinha". Um dia, perguntou a Natália Correia como era a sua editora nórdica. E Natália, no seu tom dramático, disse-lhe: "Ela é uma princesa que jaz adormecida num esquife de gelo à espera do príncipe que a desperte com um beijo de fogo. O príncipe é você. Telefone-lhe e convide-a." A seguir, relata Fernando Dacosta no livro O Botequim da Liberdade, a poeta ligou para Snu: "Menina, o príncipe encantado por que esperavas vai aparecer-te."

Menos de dois meses depois desse almoço, Sá Carneiro levou Conceição à Dom Quixote. Estava apaixonado e queria ter a opinião da sua amiga. "A coisa que mais me impressionou nela foi a suavidade", conta ela. "Parecia uma menina. Tinha muita calma e ponderação. Não era uma pessoa de beijinhos e abraços, nem com a família. Nisso era muito diferente de nós, latinas. Mas era uma pessoa muito delicada."

As eleições de abril estavam próximas, eram as primeiras em que Sá Carneiro estava à frente da campanha e Conceição Monteiro pediu-lhe que não tornasse pública a paixão, pelo menos até às eleições. "Seria prematuro e poderia ser prejudicado, porque ambos eram ainda casados." Mas o segredo não seria mantido por muito tempo. Ao longo desse ano, ela divorcia-se do seu marido, Vasco Abecassis, e ele separa-se de Isabel. Nada temem, nem a sociedade conservadora nem os adversários políticos. E Snu e Francisco não mais se separaram. Morreram juntos, quando o avião no qual seguiam se despenhou em Camarate, a 3 de dezembro de 1980.

Cultíssima, irónica, frontal

O seu nome era Ebba Merete Seidenfaden mas em casa começaram logo a chamar-lhe Snu, que quer dizer esperta. Era uma mulher do mundo. Vinha do norte da Europa e tinha estudado em Inglaterra e nos Estados Unidos. Social-democrata, acreditava no poder da educação para mudar o mundo e não estava disposta a ficar em casa só a tomar conta dos três filhos. Casou-se com um português e veio para Portugal mas continuava dinamarquesa e, ao contrário das portuguesas, não precisava da autorização do marido para viajar. "A sociedade reage a ela, classificando-a como um bicho estranho, uma nórdica, uma pessoa que vem lá de cima, com ideias próprias e ainda por cima, ela, muito frontal, diz o que pensa, o que aqui não é muito costume", contou o marido, Vasco Abecassis, a Cândida Pinto no livro Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro.

"Inteligente, humana, bondosa, reservada, linda, cultíssima, trabalhadora, com espírito de iniciativa, generosa." Quando lhe perguntamos como era a amiga, Maria João Sande Lemos não poupa nos adjetivos. Lembra-se do momento em que conheceu Snu, em 1976, num cocktail na Embaixada de Israel a que foi com o marido, António Sande Lemos. Logo nessa noite fizeram planos para no sábado seguinte irem juntos almoçar ao Lisbon Sports Club, na Carregueira. Rebecca, a filha mais nova de Snu, e Ricardo, filho de Maria João, tinham idades próximas e os casais começaram ali uma amizade que se estenderia para além da política.

Maria João recorda-a a como "uma pessoa reservada". Ou seja: "Não era expansiva, não estava permanentemente a falar, mas era engraçada, irónica, tinha sentido de humor." Só não gostava de conversas fúteis. "Tinha um sotaque, mas falava bem português, não lhe faltavam palavras", garante. E sabia bem o que queria: "Abriu uma editora que era contracorrente. Eram os dois personalidades extraordinárias." Conceição Monteiro concorda: "Era muito inteligente e cultíssima. Era fácil perceber porque é que ele se tinha apaixonado." Nesse verão, os dois casais passaram algum tempo juntos. "Entendemo-nos muito bem, foi muito fácil. Falávamos muitas vezes ao telefone, ao fim de semana combinávamos almoços e jantares e depois havia aquela atividade política, todos os dias havia coisas", lembra a fundadora do movimento Nós Somos Igreja.

"Havia um enamoramento absoluto"

Snu começou a acompanhar Sá Carneiro nas atividades políticas sempre que possível. "Ia ao comícios e depois dizia de sua justiça. Fazia as críticas que achava que tinha de fazer. Tinha aquele espírito nórdico, achava que nós éramos muito desorganizados", diz Maria João Sande Lemos. Ela estava lá, mas não se impunha. Ficava na sombra. "Nós gostávamos de ir lá para trás, para ouvirmos os comentários das pessoas sobre o que ele estava a dizer", conta Conceição Monteiro, que recorda especialmente a campanha de 1979 em que percorreram o país de lés a lés.

Helena Roseta, militante do PSD que era muito próxima de Sá Carneiro nessa altura, não conheceu Snu na intimidade mas diz que ela era uma mulher que "transmitia serenidade e uma grande doçura, quase uma inocência": "Não tenho nada essa ideia de que fosse uma pessoa distante e fria, como algumas pessoas dizem." A relação com Snu foi importante para o político, diz a atual presidente da Assembleia Municipal de Lisboa: "Sentia-se que havia ali uma atração profunda. Quando ele discursava na Assembleia, ela assistia da tribuna. E nós víamos que ele procurava os olhos dela. Havia um enamoramento absoluto."

"Sentia-se que estavam muito apaixonados", diz Maria João Sande Lemos. "Era como se fosse um casamento, havia uma aceitação mútua, um respeito enorme um pelo outro, um amor grande. O facto de não poderem legalizar a relação era única e exclusivamente porque a mulher de Francisco não lhe dava o divórcio, tinha de esperar seis anos." Conceição Monteiro diz que Sá Carneiro aceitou a situação "mas teria gostado muito de casar com ela".

Quem os conheceu não tem dúvidas de que Snu foi uma boa influência em Sá Carneiro. "Estabilizou-o muito", diz Roseta. "Ele era um político irascível, nervoso. E fica uma pessoa mais estável, mais tranquila e até mais interessante. Ele e a Snu partilhavam imensos interesses intelectuais, os livros, a música, as artes, tudo isso, ela ajudou-o a não estar tão fechado na política." Conceição Monteiro confirma: "A maneira como ela enfrentava a vida, as pessoas, o trabalho, tudo isso o influenciou."

Sá Carneiro mudou-se para a casa de Snu, na Rua D. João V, com a filha dela, Rebecca, e o filho dele, Francisco. Recebem ali os amigos para jantares e tertúlias. "Antes, o Francisco não tinha casa em Lisboa, de modo que tinha uma vida mais instável", explica Maria João Sande Lemos. "Quando foi viver com a Snu passou a ter uma vida familiar. Em vez de almoçar fora, almoçava em casa, jantava em casa, podia receber os amigos. Tudo isso ajudou-o a estar menos tenso."

Snu não gostava de usar malas, preferia casacos com bolsos fundos onde guardava tudo, sobretudo as mãos. Era muito metódica. Saía de casa cedo, comprava flores e cumpria à risca o seu horário na editora. Às cinco da tarde, impreterivelmente, estava a casa para tomar o seu chá. Cumpriu este ritual no último dia de vida. Depois da conferência de imprensa no Altis, o casal passou por casa antes de ir apanhar a avioneta para o Porto, onde o líder do PSD iria participar num comício de apoio ao candidato presidencial Soares Carneiro. "Tinham bilhetes para a TAP, mas o Francisco preferiu ir na avioneta", recorda Conceição Monteiro. No acidente, que ainda hoje não foi explicado, morreram também o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, o chefe de gabinete, António Patrício Gouveia, o piloto e o copiloto. Snu tinha 40 anos, Francisco 46.

(Artigo originalmente publicado a 2 de março)

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