
Jorge Jesus
Quando a imagem de Portugal no Brasil está nas mãos de Jesus
O treinador do Flamengo é unanimidade dentro do campo e, mais surpreendentemente, fora dele, graças a uma diplomacia que não se lhe conhecia. Portugueses e brasileiros opinam sobre "o embaixador informal" que há quem queira até levar para o Planalto.
O resultado do inquérito realizado pelo fundador do grupo humorístico Porta dos Fundos (e ex-dirigente do Flamengo) Antonio Tabet no início desta semana foi apenas um sintoma da popularidade de Jorge Jesus no Brasil: 69% dos fãs do comediante nas redes sociais responderam que, numa eleição para presidente da república, votariam no treinador português do Fla, deixando as outras duas alternativas, o eleito Jair Bolsonaro e o derrotado Fernando Haddad, lá bem para trás.
Humor à parte, Jesus é uma unanimidade: entre os adeptos do clube mais popular do país, com cerca de 40 milhões de fãs, entre os jornalistas e a generalidade dos observadores, entre os brasileiros e também na comunidade portuguesa.
O caso não é para menos: Jesus chegou em junho, durante a paragem do Brasileirão para a Copa América, estava o Mengão a oito pontos do Palmeiras, clube então treinado por Luiz Filipe Scolari e dono do plantel mais caro do país. Menos de dois meses depois, os cariocas superavam na classificação o rival paulista - e também o Santos, que chegou a liderar no meio do percurso - ajudando à demissão de Felipão.
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Sob a orientação do português, o Fla soma dez vitórias em 13 jogos no Brasileirão, marcou 34 golos e sofreu 11. Somou oito triunfos seguidos, um recorde da competição partilhado com o Cruzeiro de 2003, até ao empate deste sábado frente ao São Paulo.
Pelo meio, apesar da derrota na Copa do Brasil para o Athletico Paranaense, que viria a ganhar o troféu, num disputado desempate por penáltis, apurou pela primeira vez o clube para as meias-finais da ansiada Taça dos Libertadores da América em 35 anos - desde a Era Zico, portanto, a fase mais dourada da centenária história flamenguista. A primeira mão da meia-final, com o Grêmio, é já na terça-feira.
"O impacto dele foi claro e a transição deu-se rapidamente", defende André Rocha, jornalista especialista em tática, com coluna sobre o tema no portal UOL.
"Cometeu alguns equívocos iniciais, como escolher [o lateral] Rafinha para o meio-campo no jogo com o Emelec, em Guayaquil [derrota 2-0, revertida depois no Maracanã, para a Taça dos Libertadores] e promover precocemente a estreia do Filipe Luís na Bahia [derrota 0-3 para o Brasileirão]", continua o articulista em conversa com o DN.
"Jesus sabe que lida com questionamentos mesquinhos por ser estrangeiro e porque o ambiente do futebol brasileiro ainda vê o futebol português com desdém", diz o jornalista Márvio dos Anjos
"Depois, ao compreender melhor o plantel e o futebol brasileiro em geral, ajustou a equipa, com variações táticas consoante o adversário, e conseguiu a afirmação de um modelo de jogo com pressão pós-perda de bola e ataques diretos, uma proposta que, ainda por cima, se conecta perfeitamente com os anseios da torcida."
Fora de campo, Jorge Jesus, cujas intervenções em Portugal foram sempre alvo de críticas e de piadas ao longo da carreira, pela propensão a gafes e a erros gramaticais, tem-se revelado um exímio comunicador. Num país com "complexo de vira-lata", como cunhou o dramaturgo Nelson Rodrigues, tem sabido "encher a bola", isto é, elevar o moral dos jogadores e dos adeptos brasileiros.
"Encontrei aqui o grupo mais profissional, inteligente e trabalhador da minha carreira", disse, a propósito dos seus atletas, rebatendo a ideia, "falsa" segundo o próprio, de que os atletas canarinhos têm tendência à preguiça e aversão à tática. Ainda sobre jogadores, sublinhou que os do país que o acolheu são "muito mais criativos" do que os seus pares europeus.
Mais: para ele, o Fla seria campeão português com relativa facilidade. Na exclusiva Premier League, afirma, terminaria entre os seis primeiros.
Mas Jesus tem sido, principalmente, elogioso para com as "torcidas" e não apenas a colossal falange de apoio do Mengão. "Na Europa, também há muita gente nos estádios, há, mas parece que vão lá para ver a ópera, aqui são mais vibrantes, mais apaixonados, é completamente diferente."

Com Jesus no Flamengo, Gabigol, que já passou pelo Benfica, reencontrou-se com as grandes exibições e é já o artilheiro do campeonato brasileiro - além de ídolo máximo da torcida.
© Reuters
"Foi uma beleza este jogo nas bancadas [com o Ceará, em Fortaleza]. Na Europa acham que lá é o supra sumo. Aqui é apaixonante. Chegámos a Fortaleza com um ambiente muito bonito. As torcidas andam na rua com as camisas das equipas misturadas, isso não é possível em Portugal...", disse também.
Claro que, pelo meio, confundiu "hinchas", a palavra usada na Argentina para adeptos, com "ninjas", esqueceu-se do nome de Kaká a meio de uma conferência de imprensa, soltando um "oh my god, ajudem-me" para os jornalistas, o atacante Vitinho tornou-se Vitinha, o nome de guerra mais comum em Portugal para jogadores chamados Vítor, o jovem Reinier já teve meia dúzia de pronúncias diferentes e Gabigol vira, de vez em quando, Gabigolo. Mas nada que o torne alvo fácil de piadas, por enquanto.
"Às vezes fico na dúvida se ele falou errado ou se é alguma coisa de sotaque, mas olha com a equipa a jogar dessa maneira o espaço para notar erros diminui muito...", reconhece Fred Huber, jornalista do Globoesporte.com que acompanha o dia-a-dia de Jesus no Ninho do Urubu, a academia rubro-negra. "Como ele fala "arrastadão", ninguém nunca comentou essas tais de gafes e de erros gramaticais", complementa Luana Trindade, apresentadora de um programa de desporto na TV Bandeirantes do Rio.
O empresário português Artur Costa, um natural de Almada que mora rodeado de flamenguistas em Três Rios, cidade no estado do Rio de Janeiro, tem-se surpreendido com essa atitude de Jesus, mais diplomática e sóbria.
"No campo, acho que a direção do Flamengo, a estrutura do futebol e os próprios jogadores assimilaram aquilo que ele quer", afirma ao DN. "Mas fora de campo tem surpreendido também, estou a vê-lo mais moderado, sem aquele feitio meio autoritário dele, comentei isso até com amigos rubro-negros...".
O antigo jogador Tostão, um dos mais influentes colunistas do país, alertou, no entanto, no Folha de S. Paulo, para o facto de Jesus estar a falar para Portugal quando elogia o futebol brasileiro: "Ao exagerar nos elogios ao Brasileirão, ele quer valorizar o seu trabalho, quer dizer aos portugueses (...) que ele está a brilhar."
Elogios do embaixador
Mas essa diplomacia, excessiva ou não, faz de JJ um bom embaixador de Portugal no Brasil? Carlos Fino, jornalista com carreira ligada sobretudo à RTP e hoje a morar em Brasília, acha que sim. "Por vezes, nos meios cultos, desdenha-se dessas figuras, consideradas menores pela bitola intelectual: ainda recentemente um arquiteto luso me dizia aqui que o Jesus nem sequer sabia falar bem português, mas o curioso é que até agora não ouvi nenhum brasileiro queixar-se disso", diz ao DN.
"O que destacam é o seu desempenho técnico, a sua força de carácter e a sua capacidade de liderança, logo, é a prova de que estas figuras populares acabam por ter uma dimensão de grande relevo no relacionamento entre os dois países."
Opinião partilhada por nada menos do que o próprio embaixador de Portugal no Brasil. "Apesar da sua chegada recente ao Brasil, o trabalho de Jorge Jesus, enquanto treinador do Flamengo, é já aqui amplamente comentado e elogiado, tanto pela imprensa como pelos adeptos. Por estar a trabalhar para um dos grandes clubes do Brasil, o seu desafio é naturalmente maior. Mas a verdade é que ele vem conquistando, em pouco tempo, o reconhecimento de todos", disse Jorge Cabral ao DN.
"Essa é, sem dúvida, a maior prova das suas qualidades e capacidades enquanto profissional de futebol, que a todos nos orgulha enquanto portugueses. Nesse sentido, o sucesso de Jorge Jesus, como o de qualquer outro português, fora de Portugal, é sempre um grande motivo de orgulho e alegria, que apenas eleva o bom nome de Portugal."
Márvio dos Anjos, editor de desporto do maior jornal do Rio de Janeiro, O Globo, está encantado. "Não considero que um só profissional possa servir de embaixador de uma nacionalidade, acho demasiado generalizante, mas ele está a deixar marcas profundas graças a um profissionalismo exemplar e a uma interessantíssima inteligência emocional."
Para o jornalista, "Jesus sabe que lida com questionamentos mesquinhos por ser estrangeiro e porque o ambiente do futebol brasileiro ainda vê o futebol português com desdém". "Mas ele reage a isso com muita autoconfiança nos métodos e com um show à parte nas conferências de imprensa por ser muito direto e responder até com certo didatismo", conclui ao DN.
"Ao exagerar nos elogios ao Brasileirão, ele quer valorizar o seu trabalho, quer dizer aos portugueses (...) que ele está a brilhar", escreveu Tostão, histórico avançado brasileiro
Carlos Fino tem estado atento às reações dos brasileiros em relação ao treinador. "Tenho seguido com muita atenção, tenho amigos e conhecidos brasileiros que todos os fins de semana vestem a camisola do Flamengo para celebrar mais uma vitória e, sabendo que sou português, fazem-me perguntas e comentam comigo a prestação do treinador."
E conclui, falando da área em que é especialista: "Na falta de uma presença mediática portuguesa no Brasil mais consistente - em 2004 a RTP foi retirada pela Globo do principal canal de distribuição por cabo, a SIC, que a substituiu, não tem programação que dialogue verdadeiramente com o público brasileiro e a agência Lusa arreou bandeira desde 2010, desistindo praticamente de penetrar no mercado local -, acabam por ser as estrelas ou os ídolos da cultura popular de massas que assumem essa dimensão de representação nacional mediática de grande impacto no Brasil."
"Foi assim com o recém-falecido Roberto Leal e está agora a ser com o Jorge Jesus, tal como já havia ocorrido em sentido inverso com o Luiz Felipe Scolari."
No país onde durante oito dias o procurador-geral da República foi um português - Alcides Martins, que assumiu o cargo interinamente de dia 18 até à última quinta-feira -, é a Jesus que a política se rende. Wilson Witzel, controverso governador do Rio pelos excessos na luta contra o crime, tratou de dizer que ia convencê-lo a não ir embora, dias depois de correr um boato de que o treinador estaria incomodado com a insegurança na cidade. E na Assembleia Legislativa carioca conseguiu o impossível: três deputados, entre eles um bolsonarista e um do PT, uniram-se para lhe oferecer a prestigiada medalha Tiradentes.
Só falta, como sugeriu o inquérito do fundador da Porta dos Fundos, entregar-lhe o Planalto.
Frases marcantes de Jorge Jesus no Flamengo
São várias e têm feito sucesso no Brasil, principalmente junto dos adeptos do Flamengo. Eis alguns exemplos:
"Em Portugal, O Flamengo seguramente (seria protagonista). Disputava o título a brincar, à frente de todos, disparado. Nos outros países, como Inglaterra, não seria da mesma maneira. Mas disputaria entre os seis primeiros lugares. Com os 11 que o Flamengo joga, é muito forte."
"É mais difícil trabalhar na Europa... Este elenco do Flamengo surpreendeu-me muito no profissionalismo, no ser apaixonado. Eles têm prazer em trabalhar. Na Europa é mais complicado, eles querem ter direitos, querem se sobrepor à liderança do treinador. Aqui no Brasil eles têm mais respeito, e isso torna mais fácil."
"O [Reinier] tem coisas muito parecidas com um jogador brasileiro que saiu muito jovem para o estrangeiro... agora passou-me o nome dele... oh my God... que foi jogar para o Milan. Não, não é o Paquetá. Kaká, exatamente."
"Há vários termos que são diferentes. Não dizemos torcida, dizemos adeptos. Nós dizemos equipa, vocês,time. Nós falamos malta, e vocês dizem galera. Mas é fácil de identificar. Os jogadores pedem para eu falar 'malta'. Aí digo: 'Malta, vamos lá.' Eles gostam. Estão sempre na brincadeira comigo sobre algumas coisas que eu digo, mas que não posso dizer agora [risos]."
"Quando jogamos no Rio, antes de começar o jogo já está 1-0. A torcida do Flamengo é vibrante, apaixonada. Há também clubes na Europa que também colocam 65 mil pessoas no estádio. Mas não são vibrantes. Parece que estão numa ópera. Aqui é completamente diferente."
"Em Portugal gosto muito de almoçar e jantar com os meus amigos. É do que eu sinto falta, disso e do peixe, que eu só como peixe. Portugal é pequenininho, aqui são 220 milhões, lá somos dez milhões. Lá minha casa é em cima do mar, aqui também, a língua é a mesma, estou num país que adora futebol... Até agora está tudo a dar certo."
"Eu não sabia que o Flamengo teve um recorde de vitórias consecutivas comigo, mas se olharem para o meu currículo veem que estou habituado a ter 12, 13 vitórias consecutivas. Aqui, no entanto, é mais difícil."