Milhares de pessoas nas ruas, um congresso dos conservadores, um Boris Johnson insuflável e o centro da cidade fechado em resultado de uma operação de segurança. Houve uma época em que a cena cultural de Manchester, no final dos anos 80, princípios dos 90, foi apelidada de Madchester. Essa loucura poderá regressar a partir de amanhã e até quarta-feira àquela cidade do norte de Inglaterra. Mas nem o mais informado dos observadores pode garantir se a loucura vai manifestar-se de forma saudável e criativa nas manifestações contra o Brexit e nos discursos políticos dos tories ou com contornos violentos e tóxicos, à imagem do últimos dias no Parlamento..No domingo, os conservadores são recebidos com uma manifestação com o mote 'Rejeita o Brexit, defende a democracia', organização conjunta das associações March for Change e Manchester for Europe, e outra contra as políticas de austeridade. Mas é de esperar quatro dias de intensa atividade nas ruas contra as políticas dos tories. "Esta é uma oportunidade para Manchester rejeitar o Brexit", disse o presidente da associação Britain for Europe, Tom Bruffato, ao Manchester Evening News . Em 2016, 60,4% dos eleitores da região metropolitana votaram pela permanência do Reino Unido na UE..O centro da cidade estará em parte fechado ao trânsito e ainda vai acolher nestes dias dois jogos de futebol. "Tal como acontece com muitos eventos desta natureza, as emoções podem extravasar e, embora todos tenham o direito de protestar pacificamente, qualquer pessoa que se comporte de forma a intimidar os outros ou cometa crimes será tratada de forma adequada", asseverou o superintendente responsável pela operação, Wasim Chaudhry..É a sexta vez que Manchester recebe o congresso anual do Partido Conservador. Mas este decorre num ambiente pouco dado ao debate de ideias em serenidade, e marcado pela saída de 24 destacados membros nas últimas semanas. Inevitável, o Brexit é o tema que mantém refém toda a agenda política nas Ilhas Britânicas. Até quarta-feira há intervenções sobre serviços públicos, justiça social ou a reforma do sistema processual penal, mas que impacto podem ter estes temas quando o outro a todos estrangula?.O líder do partido, que recebeu a chefia do governo por inerência, mantém a linha dura. "Vamos obedecer à lei, mas estamos confiantes de que podemos sair no dia 31 de outubro e a melhor maneira de fazê-lo é conseguir um acordo", disse Boris Johnson na sexta-feira. "É por isso que a lei da rendição é tão danosa", continuando a insistir no uso de expressões criticadas da esquerda à direita como "rendição" e "capitulação". "Teve o efeito de fazer que os nossos amigos europeus pensassem "talvez o Parlamento possa bloquear esta coisa, talvez eles sejam forçados a adiar". Quando se está numa negociação isso dificulta obviamente as coisas", concluiu..Conselho Europeu sem negociações.Em Bruxelas, nada de novo. Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia até 31 de outubro, reiterou que tudo se está a fazer para que haja um acordo e que a responsabilidade está do outro lado do canal da Mancha. "O nosso negociador-chefe Michel Barnier e eu estamos a fazer tudo o que é possível para conseguir um acordo", disse ao jornal Augsburger Allgemeine . "Mas, se no final não formos bem-sucedidos, a responsabilidade recairá exclusivamente sobre o lado britânico." Na quinta-feira, os embaixadores dos restantes 27 países foram informados de que nada mudou nas conversações e que no próximo Conselho Europeu não haverá negociações. Ou seja, os líderes dos Estados membros serão confrontados com um acordo já alcançado, com um novo pedido de adiamento do Brexit ou com o cenário de saída desordenada..Na Câmara dos Comuns, Boris Johnson e o seu governo continuam a fazer o pleno. Depois de o Supremo Tribunal ter deitado por terra a argumentação de Downing Street para suspender o Parlamento por um período recorde, a reabertura dos trabalhos ficou marcada por uma linguagem exaltada entre conservadores e oposição. Boris Johnson menosprezou as ameaças de morte que algumas deputadas receberam, classificando-as de "tretas", e indignou até a sua irmã, Rachel, ao dizer que a melhor forma de honrar a morte da deputada Jo Cox -- assassinada a dias do referendo do Brexit por um indivíduo da extrema-direita -- era tirar o Reino Unido da UE.."O meu irmão usa palavras como "rendição" e "capitulação", como se as pessoas que se opõem à vontade abençoada do povo, expressa pelos 17,4 milhões de votos em 2016, devessem ser enforcadas, esquartejadas, cobertas de alcatrão e de penas. Isso é totalmente questionável", disse Rachel Johnson na Sky News..Entre Manchester e Westminster.Na quinta-feira, os deputados rejeitaram a moção para a suspensão dos trabalhos de segunda a quarta-feira devido ao congresso dos conservadores. A sétima derrota parlamentar seguida causa constrangimentos quer à organização da convenção quer aos assuntos parlamentares. Os mais de 300 quilómetros de distância entre a capital e Manchester vão obrigar os deputados a um intenso vaivém e desconhece-se se o chefe do executivo vai discursar no encerramento do congresso ou se irá à sessão semanal de perguntas dos deputados..Apesar de Boris Johnson continuar a dizer que vai cumprir a lei, a oposição, tal como o ex-primeiro-ministro John Major, acredita que Downing Street estará a urdir uma forma de não apresentar a Bruxelas o pedido de adiamento do Brexit com uma manigância. O governo pode enfrentar durante os dias do congresso uma conjugação de esforços da oposição para derrubá-lo..Um monstro com 30 anos.Para os conservadores britânicos, a Europa tritura os seus líderes como Cérbero, o cão de três cabeças da mitologia grega que triturava quem se aventurasse a entrar no inferno. A primeira vítima foi Margaret Thatcher, há quase 30 anos. Apesar de ter feito campanha pelo sim no referendo para a entrada do Reino Unido na Comunidade Económica Europeia em 1975, em 1990 desconfiou do caminho que o projeto europeu de Jacques Delors levava e, perante as ideias de uma moeda única e da transferência de poderes, disse "não, não, não" no Parlamento. Foi a última gota para uma líder desgastada..O senhor que se seguiu, John Major, conseguiu manter o país fora da moeda única, mas a ferida estava feita e não voltaria a sarar. A assinatura do Tratado de Maastricht, em 1992, equivaleu a uma traição. A corrente eurocética foi ganhando cada vez mais adeptos, alimentada pelas histórias produzidas pelo correspondente em Bruxelas do Daily Telegraph, Boris Johnson, e que ficaram conhecidos como euromitos. Major resistiu até 1997 a uma oposição interna cada vez maior, ano em que o trabalhista e pró-europeu Tony Blair vence as eleições..O poder regressa aos conservadores em 2010 pela mão de David Cameron. Sem maioria no Parlamento, alia-se aos pró-europeus liberais-democratas. Com o UKIP de Nigel Farage a ganhar cada vez mais terreno e com uma bancada conservadora cada vez mais ameaçadora, Cameron tirou da cartola a promessa de um referendo sobre a continuidade da adesão na UE após as eleições de 2015. O resultado do referendo ditou o seu destino..A sucessora de Cameron, Theresa May, apesar de ter feito campanha pela permanência, sentiu-se no dever de cumprir o resultado de um referendo não vinculativo. "Brexit significa Brexit", repetia. Para ganhar legitimidade foi a eleições, perdeu a maioria na Câmara dos Comuns e o seu acordo de retirada assinado com as instituições europeias foi rejeitado por três vezes pelos deputados - uns porque não aceitam a saída da UE, outros porque não concordam com as cedências a Bruxelas, como o mecanismo de salvaguarda (backstop), que, na prática, impõe uma união alfandegária até ao futuro acordo de comércio livre entre Reino Unido e UE para evitar uma fronteira na Irlanda.