Contranatura
Tenho um amigo que é ateu a maior parte do tempo; mas, quando o espectáculo da natureza lhe tira o fôlego, pergunta-se se não existirá realmente uma sumidade capaz dessa magia sem truques, pois o homem, por mais coisas que tenha inventado, não conseguiu ainda mover a montanha, nem pendurar a Lua no céu, nem mandar chover sobre a terra e o fogo quando é preciso, nem produzir flocos de neve que não passem de farrapinhos de algodão. Pondo de lado a questão teológica, a natureza é, de facto, uma espécie de milagre e, como se isso não bastasse, ainda faz milagres que são tudo menos naturais.
O meu cabeleireiro tem quatro cães, todos rafeiros e recolhidos no canil. A mais nova é uma cadela que não foi esterilizada porque o veterinário explicou que, se o dono a deixasse ter uns quantos cios, estaria a prevenir o mais que provável aparecimento de cancro mamário. Esse mesmo dono encontrou, abandonado na rua, um gatinho com pouco mais de uma semana; e, com pena do bichano, levou-o para casa, embora sem grande esperança de que ele sobrevivesse com leite em pó em biberão de bonecas e, ainda por cima, à mercê de quatro cães. Mas eis que a jovem cadela, solidária com o enjeitado, ficou de repente com as maminhas cheias de leite (como se tivesse ela própria engravidado e parido) e está, desde então, a amamentar o gato, que cresce todos os dias a olhos vistos. Não contente com isso, rosna aos outros cães quando estes se aproximam e resiste a ir à rua, com medo do que possa acontecer ao "filhote" se o deixar sozinho. A cereja no topo do bolo? Quando ela se afasta, o gato não mia, emite uns ladridos. (Se sabe disto, o meu amigo ateu ainda passa a ser crente a maior parte do tempo.)
A natureza a ser antinatural? Óptimo. Quando eu era pequena, havia um anúncio que dizia que um preto de cabeleira loira e um branco de carapinha não era natural e que o natural era cada um usar o cabelo com que nasceu; isso, porém, já passou à história, e os cabeleireiros (o meu também) tiveram um papel fundamental no acto de contrariar a natureza em prol da nossa felicidade. Na história da cadela e do gato, a correcção está a ter, aliás, resultados maravilhosos. Mas atenção: há maneiras menos aceitáveis de impor o "racional" ao natural: em Espanha, um grupo de feministas entendeu separar os galos das galinhas nas capoeiras para que as fêmeas não fossem... violadas. Ainda estou para saber como vão as pobres manifestar-se para ter sexo por mútuo consentimento. Adeus, futuro.
Editora e escritora. Escreve de acordo com a antiga ortografia.