Crónica em forma de entãos

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Então, votas Bolsonaro ou Haddad? Nem um nem outro. Então, os dois estão bem um para o outro, é? Não é esse o caso. Então? Então é que não sou eleitor brasileiro, ser brasileiro para mim é estado de alma, gostar da maneira como Luis Fernando Verissimo faz crónica inteiras em diálogo, é voltar à infância ao ouvir chorinho, um qualquer chorinho, é sentirem em casa numa varanda de Olinda, mas tudo isso não me dá direito a voto, essa nacionalidade não tenho. Então, estamos falados sobre Bolsonaro e Haddad? Não, não estamos.

Então? Então, há que falar de Bolsonaro e Haddad. Mas ainda há pouco disseste, "nem um nem outro", farinha do mesmo saco... Não, não disse. Então o que disseste? Disse que não votava nem um nem outro. Então? Não voto e quero que este assunto tão sério seja tratado de forma não equívoca. Como quê? Não quero tratá-lo como concurso longínquo de votos entre gente que não tem direito de votar. Mas isso estava implícito, o "votar" que te pedia era uma maneira de dizer. Exatamente, eu quero outro tipo de conversa, explícita, clara.

Então, quão explícita? De tal maneira que permita a todos saber do que estamos a falar quando estamos a falar. Mais explícito ainda do que dizer que Bolsonaro é fascista? Exatamente. Então tens dúvidas do que é ser fascista? Tenho, temos; por exemplo, há gente lúcida e culta a dizer que o regime salazarista não era fascista. Então, por haver opiniões contraditórias deixa de o ser? Como já te disse, esse, aqui (Brasil) e agora (triste e infeliz domingo), é o tipo de conversa que não quero ter.

Então, qual? Quero uma conversa inequívoca sobre Bolsonaro. Tipo quê? Tipo tutano: em momento solene, em discurso público, num lugar político nobre, o Congresso, frente a câmaras de televisão, ele ter aplaudido e dado vivas ao torturador Carlos Brilhante Ustra. Então, palavras, meras palavras, podem ser tão decisivas? Refiro-me a factos. Então quais? Ustra foi um torturador do regime militar brasileiro e colocava fios elétricos descarnados nas vaginas de mulheres e chegou a mostrar aos filhos das presas a mãe nua, urinada e vomitada.

Então isso é conversa para uma eleição? É, no caso é mesmo a conversa a ter. Define Bolsonaro, é? Na verdade, o que define melhor, e logo, é a mim. E isso é importante? É, se vieram aqui ler-me para saber o que penso das eleições brasileiras é bom saber se vale a pena. E vale? Pelo menos ficam a saber que eu não aperto a mão a Bolsonaro. Então porquê? Não aperto a mão de quem elogia pôr-se fios elétricos descarnados nas vaginas de mulheres. E apertas a mão a quem diz que votaria em Bolsonaro? Não há relação nisso: defender ou votar em Bolsonaro é um erro, uma estupidez, não impede um aperto de mão, só me faz descrer no que diz essa pessoa sobre as eleições brasileiras; defender a tortura, é outra coisa, é um crime ignóbil. Então? Aperto a mão, por exemplo, a Jaime Nogueira Pinto, mas nunca o farei a Jair Bolsonaro.

Então, Bolsonaro vai apoiar a tortura? Não sei, ele elogia quem tortura e apesar do quanto os candidatos a eleições costumam depois desdizer-se, é prudente ouvir o que eles dizem, às vezes cumprem. Mas vai torturar? Essa é uma das promessas que ele mais vai poder cumprir - as más palavras que apregoa vão fazer eco nas delegacias policiais, nos quartéis e, sobretudo, com as milícias populares na violência das ruas. E onde mais ele terá sucesso? Nos ataques aos costumes. E a chave desse sucesso? Aí ele tem aliados fortes, a começar pelas igrejas evangélicas, os seus líderes reacionários e as televisões deles. Cenário mau, não é? Péssimo, Bolsonaro terá também aliados no dinheiro selvagem. E então? A Amazónia, quer dizer, o mundo, que se cuidem e, aí, os erros serão irreversíveis.

Então, a ditadura vem aí? Nisso tenho mais dúvidas e mantenho a esperança forte, porque a ditadura não será implantada na votação de hoje, e só o será depois se o Brasil deixar. O Brasil? As instituições, os políticos, a democracia. Forte esperança em fraca gente... Exato, mas aí é onde Bolsonaro pode encontrar maior resistência, em 1964, o Brasil democrata pôde ser decapitado (Juscelino, Carlos Lacerda, Jânio, Goulart, Brizola...) porque os golpistas foram as Forças Armadas, não como hoje um líder populista, inculto e bruto, um capitão de segunda.

Então e o Haddad? E o Haddad, o quê? O que dizer dele? Milhões de brasileiros votam nele hoje mas não servirá de nada. É tudo? Tudo, retirando o facto de o presidente hoje eleito não merecer que gente de bem lhe aperte a mão. E então? Então, que o PT do Haddad e os outros partidos brasileiros, de esquerda e do centro e da direita, os da corrupção generalizada, dos comprados e dos compradores, tirem a lição necessária. Que é? Lá vou ter de repetir: o Brasil político desembocou em Jair Bolsonaro, uma indecência. E, então? Então, exige-se uma mudança radical no Brasil político.

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