Ferin. A livraria onde se pode entrar até para saber como vai estar o tempo
Foi fundada em 1840 por uma família belga que se instalou em Lisboa durante as guerras napoleónicas. Em 2017, a segunda livraria mais antiga da capital foi comprada por José Pinho, dono da Ler Devagar. A pandemia veio atrasar as renovações, mas há novidades a chegar.

José Pinho comprou a Ferin em 2017.
© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Continuamos a comprar bibliotecas. Muitas", explica José Pinho enquanto mostra a nova zona de alfarrabista que criou no piso de baixo da Livraria Ferin. Em 2017, o homem por detrás da Ler Devagar (no LX Factory) e do projeto Óbidos Vila Literária decidiu comprar a histórica livraria fundada em 1840 na Rua Nova do Almada e a segunda mais antiga de Lisboa para a salvar do encerramento e dar-lhe novo rumo. Esta zona de livros antigos e raros, abrigada debaixo das arcadas de um antigo convento, foi apenas a primeira de uma série de renovações e projetos que acabaram por ser adiados pela pandemia de covid-19. Mas o dono promete novidades "em breve".
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"No meio destes livros há uns muito baratos e outros muito caros", explica José Pinho, que admite que esses muitas vezes não estão expostos, ficando antes guardados no cofre. Mas dá dois exemplos de pérolas que lhe chegaram às mãos: "Temos um livro, cujo título exato não me lembro, mas que é sobre cidades ultramarinas, e temos um Mein Kampf do Hitler de 1936. Vieram com uma das bibliotecas que comprei." E se o Mein Kampf pode chegar aos 500, 600 euros, os quatro volumes das cidades ultramarinas custam 1500, vai explicando.

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"Os alfarrabistas são como a Remax. Estabelecem um valor porque pode ser que alguém dê aquilo por aquele livro. Mas os livros não valem nada a não ser que alguém os compre." E quando no meio de uma biblioteca surgem raridades como estes livros de que José Pinho falava, o livreiro explica que até se consegue recuperar o dinheiro que custa ir buscar os livros, transportá-los, abri-los, classificá-los e arrumá-los. Nos outros casos nem tanto.
Mas a zona de alfarrabista é apenas uma pequena parte da Ferin, ao lado fica a sala que funciona como auditório quando há lançamentos de livros, hoje com um recanto para livros infantis. As mesas vieram do antigo restaurante Palmeira e as cadeiras estavam no Pavilhão Rosa Mota. Em cima de cada mesa, agora mais escassas por causas das regras sanitárias, empilham-se livros que os clientes podem folhear ou afastar para arranjar espaço para trabalhar ou estudar. Na parede do fundo, figuras da segunda metade do século XIX, como a dupla Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, que há 150 anos prendiam os leitores às páginas do DN com O Mistério da Estrada de Sintra.

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O nome da livraria tem origem no apelido da família belga que a fundou. Como se pode ler no site da própria Ferin, o primeiro membro a fixar-se em Lisboa por ocasião das guerras napoleónicas foi Jean-Baptiste. Era por volta de 1800 e na capital portuguesa "ainda não havia eletricidade nas ruas, nem automóveis e muito menos autocarros. As pessoas deslocavam-se a pé ou de caleches, pequenas carruagens puxadas a cavalos", lê-se na zona dedicada à história da livraria. Jean-Baptiste teve 11 filhos, sete dos quais em profissões ligadas aos livros. Mas foram as filhas Maria Teresa e Gertrude a abrir um Gabinete de Leitura no Chiado, onde hoje fica a livraria, que funcionava como uma espécie de biblioteca, que emprestava livros a quem os queria ler.
Com facilidade na compra de livros estrangeiros, as Ferins começaram a ser conhecidas no meio cultural lisboeta e do país. E foi Maria Teresa quem transformou o Gabinete de Leitura numa livraria que logo dispôs também de uma oficina de encadernação. O rei D. Pedro V mandava ali encadernar todos os seus livros e chegou a nomeá-la Encadernadora Oficial da Casa Real Portuguesa.
Nos últimos três anos, José Pinho veio dar nova vida à Ferin. Além da zona de alfarrabista, chegou a ter uma esplanada na zona que dá para a Rua do Crucifixo. Mas as obras nos edifícios vizinhos e a partilha do espaço entre todos acabaram por adiar também este projeto. O que avançou mesmo foi restruturação no pessoal. "Quando alguns setores acabaram, não fazia sentido termos um estafeta, um arrumador, uma pessoa que só fazia encomendas de revistas, etc. Até porque isso não tem nada a ver com a filosofia da Ler Devagar, e que todas as pessoas que lá trabalham fazem tudo", explica José Pinho, sentado a uma das mesas que já foram do Palmeira.
Mas o que o levou a interessar-se pela Ferin? "Eu costumava dizer que por cada livraria que fechasse em Portugal nós abríamos duas. O problema foi que quando abrimos uma série delas, depois já não podíamos dizer isso", ri-se José Pinho. Mas a verdade é que quando soube que a Ferin ia fechar, decidiu mesmo ficar com ela. "Esta livraria foi comprada por um valor simbólico, mas que tinha atrás dele uma série de dívidas a fornecedores, de encargos com o pessoal, etc., que, se não fosse bem gerida, não teria viabilidade", esclarece. E hoje lamenta não ter tomado algumas medidas mais cedo, acreditando que as vendas iam aumentar e resolver as coisas sem uma restruturação radical. Mas não aconteceu, e quando decidiu avançar, chegou a pandemia.
Mas nada capaz de tirar o otimismo a José Pinho, que com uma gargalhada vai dizendo que os problemas ele gosta de os "vencer pelo cansaço". Até quando o proprietário do edifício lhe diz que mal acabem as Lojas com História a Ferin vai ter de sair dali ou terá de passar a pagar uma renda de 18 mil euros.
As famílias e o barómetro
Fundada e ligada até este ano aos elementos da família Ferin (com a saída do último descendente já em 2020), não espanta que sejam sobre famílias os livros que aqui mais se vendem. Numa prateleira ao fundo do piso de entrada podemos ler nas lombadas títulos como Famílias Macaenses, Os Judeus, Descendência Portuguesa de El Rei D. João II. "Tudo o que é de heráldica e genealogia, que tenha a ver com a família, nós vendíamos", vai explicando Celina Basílio, que em janeiro faz 35 anos de casa. Ali estão também os últimos dois exemplares do Anuário da Nobreza de Portugal, tomos I e II. "Era dos livros mais vendidos. Havia o III e o IV, mas estão esgotados e a editora já desapareceu. Pode voltar a haver mas pode demorar 20 anos, que foi o que este levou a ser feito." Quando ela ali começou, recorda, um livro daqueles custava "dois contos e quinhentos. Hoje custam 75 euros".

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Apesar de estarmos em época de Natal, neste momento os clientes escasseiam. Alguns entram, folheiam, um ou outro turista, cada vez mais raros na Baixa de Lisboa.
Nas prateleiras, escolha não falta. Além dos livros que cobrem também os móveis de madeira, alguns deles fixos ao chão, e que ali se encontram desde a fundação da Ferin. Celina lamenta que hoje já não tenham tantos livros franceses como há uns anos. "Temos clientes que procuram especificamente esses livros. E quando nos pedem, nós continuamos a encomendar", explica. Aponta para um volume enorme da Citadelle sobre Catedrais da Europa. "Antes vendiam-se muito estes livros grandes. Havia sobre pintores, sobre vários assuntos." Claro que não são livros que se vendam todos os dias, afinal podem custar 250 ou 300 euros.
"Este é o tipo de loja que pode vender estes livros", intervém Nuno Monteiro. "Podem estar aí durante meses e um dia alguém aparece e compra-os", explica o funcionário. Ou mesmo anos! Celina lembra-se de um Natal em que um cliente comprou um livro de Francisco de Holanda que estava na Ferin "para aí há uns 20 anos". "Tem de vir o cliente certo para cada livro", resume.

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Ora, foram os clientes regulares que ajudaram a livraria a erguer-se nos momentos difíceis. Como depois do incêndio no Chiado, ali mais acima, que em 1988 destruiu parte da Baixa. "Hoje estão velhinhos, mas foram eles que nos ajudaram quando ninguém descia a rua para chegar aqui", conta Celina. Um fidelidade que alguns passaram para os filhos, mas que com os anos acabou por se perder de alguma forma.
"Esta livraria tem uma particularidade, às vezes as pessoas vêm e descobrem coisas que nem eu sabia que tínhamos", ri-se Nuno, enquanto abre as gavetas para mostrar as lombadas das encadernações que ali se faziam ou os velhos almanaques dos finais do século XIX, início do século XX. Numa montra cá de cima (e noutra no piso de baixo) estão em exibição edições da própria Ferin, que chegou a ser editora e que hoje são verdadeiras raridades.

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Na parede, quase em frente para quem entra, ainda se exibe o barómetro. Não se sabe exatamente desde quando está ali, mas o mais provável é ser desde o primeiro dia. "É um vestígio de quando aqui tínhamos objetos científicos", explica Nuno, antes de acrescentar que "algumas pessoas vinham cá de propósito para saber como ia estar o tempo". Na terça-feira, no mostrador - que vai desde trés sec (muito seco, em francês claro) à tempête (tempestade) os ponteiros apontam ali entre o bom tempo e o variável, a deixar adivinhar a chuva que vinha aí. À volta, esculpidas na madeira, veem-se as figuras do que parece ser um lobo (será uma raposa?), um pato, uma outra ave e talvez uma lebre e um coelho, aludindo a uma cena de caça.
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