Coquetelaria da bossa nova

O que Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Baden Powell, Ronaldo Bôscoli, João Gilberto e outros gostavam de beber - ou não.
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Em dezembro e janeiro últimos, no glorioso verão carioca pré-pandemia de 2020, os hotéis, restaurantes e bares de luxo do Rio promoveram uma inesperada atração: algo chamado Coquetelaria Bossa Nova. Consistia de uma temporada de drinques e coquetéis com combinações inéditas, criadas por bartenders cheios de truques, alguns realmente com combinações intrigantes.

Havia uma caipirinha com infusão de louro em cachaça de bálsamo. Um gim com outra infusão, esta de abacaxi grelhado e chá verde, com arroz torrado. Um single smoke com uísque defumado e também infusionado com amoras. E várias outras beberagens insólitas, nascidas da imaginação daqueles alquimistas à beira-mar.

Ao ler sobre o evento nos jornais, perguntei-me o que a turma original da bossa nova - os músicos, compositores e cantores que revolucionaram a música popular entre 1958 e 1968 - acharia daquelas infusões e amoras. A literatura da bossa nova é rica em referências ao álcool, já que seus praticantes se dedicaram durante décadas à dupla militância: fazer música e beber. Muitos a praticaram de tal forma que quase se tornaram anfíbios - imersos em doses proibitivas de álcool e, mesmo assim, capazes de compor coisas como Desafinado, Samba de Verão, Garota de Ipanema, O Barquinho. E, que eu saiba, nenhum deles era adepto de bebidas com receitas complicadas.

Tom Jobim, por exemplo, levou a vida dedicando-se ao culto do chope e da cerveja, e só aos 30 anos, em 1957, por influência de seu parceiro Vinicius de Moraes, passou a traí-los com o uísque. Quando os dois começaram a trabalhar juntos, um ano antes, Tom se deixou converter por Vinicius à seita do malte escocês. Mas nunca dispensou o chope e a cerveja. Apenas acrescentou o uísque à sua dieta.

Tom não era um bebedor comum. Estive em algumas de suas mesas, no Rio, em São Paulo e em Nova Iorque, e posso atestar sua invejável capacidade cúbica. Capacidade essa que, em certa época, começou a preocupar seus médicos, a ponto de eles lhe ordenarem suspender a bebida, ou seja, moderá-la. Tom, então, obedecendo à ordem, suspendia o copo acima da cabeça antes de ingerir. Mas algo intimamente o preocupava e ele sabia que bebia exageradamente. Certa vez, no Leblon, ao lado dele em seu carro - um daqueles enormes, americanos, que mandara trazer dos Estados Unidos -, Tom se queixou: "Esse carro bebe ainda mais [gasolina] do que eu!"

Apesar disso, não creio que a bebida tenha interferido decisivamente em sua produção. Mesmo nos últimos anos, Tom trabalhava todos os dias ao piano, preparando uma composição nova (suas canções levavam semanas ou meses para ficar prontas) ou criando um arranjo diferente para um de seus antigos clássicos, a ser interpretado pela Banda Nova, o grupo que o acompanhou de 1984 até o fim, em 1994 - os dez anos em que Tom mais se apresentou em palcos, muito mais do que nas décadas de 1960, quando a bossa nova estava explodindo e a grife Antonio Carlos Jobim-Vinicius de Moraes era sinónimo de grande música.

Já Vinicius era, decididamente, um homem do uísque. Começou a tomá-lo quando, como diplomata, serviu de 1946 a 1951 no Consulado do Brasil em Los Angeles, e afeiçoou-se tanto a ele que passou a considerá-lo de, em vez do cão, o melhor amigo do homem. "O uísque é o cão engarrafado", dizia. Até sua morte, em 1980, a uma média de uma garrafa por dia, Vinicius deve ter drenado, sozinho, em 34 anos de consumo firme, entre 12 mil e 13 mil garrafas. A estimativa pode ser conservadora porque Vinicius era não apenas um dos poucos profissionais a poder beber no trabalho, como se exigia que fizesse isso. Em seus shows com o violonista Toquinho, seu instrumento, além da voz rouca e charmosa de não-cantor, era a garrafa sobre a mesa - e não para fins decorativos.

É sabido que, quando Vinicius foi apresentado ao violonista Baden Powell, em fins de 1962, a química entre os dois foi tão imediata que eles literalmente se trancaram por três meses num apartamento em Laranjeiras e, embalados por caixas e caixas de uísque e alguma alimentação sólida, produziram cerca de trinta sambas que ficariam na história da música brasileira: coisas como Berimbau, Canto de Ossanha, Apelo, Consolação, Labareda.

Ali nasceram os "afro-sambas", uma variação máscula e incisiva da bossa nova, que, por algum tempo, influenciou toda uma geração de instrumentistas no Brasil. Baden, por sua vez, partiria para uma fabulosa carreira como violonista na França e na Alemanha - e que poderia ter-se eternizado não fosse o navio de uísque que consumiu pela vida afora e que lhe trouxe graves consequências físicas até morrer, em 2000.

O álcool (no caso, quase sempre o conhaque Georges Aubert) foi um parceiro inseparável de Newton Mendonça, coautor, com Tom Jobim, de Desafinado e Samba de Uma Nota Só. Ronaldo Bôscoli, o maior letrista da bossa nova depois de Vinicius, criador de O Barquinho, conservou até o fim, em 1994, sua fidelidade a um drinque típico dos anos 50: cuba libre - rum com Coca-Cola.

Deve ter sido o último homem na Terra a tomar cuba libre. E, em um momento ou outro, uísques e conhaques tiveram forte presença, nem sempre eufórica, na vida de vários outros nomes, como Maysa, Dolores Duran, Johnny Alf, Sylvia Telles, Aloysio de Oliveira, Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas, Milton Banana, João Donato, Miúcha, Chico Buarque.

Em compensação, o álcool nunca disse nada a Carlos Lyra, Tito Madi, Durval Ferreira, Nara Leão, Alayde Costa, Claudette Soares, Marcos Valle, Eumir Deodato, e menos ainda a Roberto Menescal, este um devoto convicto do milk shake e demais derivados do leite. E João Gilberto, como se sabe, só beberia alguma coisa se ela viesse enrolada em papel de seda.

Como se vê, a bossa nova, em matéria de coquetelaria, era básica. Produziu apenas grande música. Um brinde a ela.

Jornalista e escritor brasileiro

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