Seria fácil dizer que a vida de Maradona, que resolveu deixar-nos na última quarta-feira, 25 de novembro, é digna de uma tragédia grega, dadas as tramas em que ele esteve ou deixou envolver-se ao longo dos seus 60 anos de idade. Mas prefiro sublinhar que, na verdade, a sua história é um verdadeiro canto negro, digno de um tango que Gardel nunca escreveu, mas certamente teria escrito, caso o tivesse conhecido, ou de uma milonga sofrida de Ataualpa Yupanqui..Borges que me desculpe, mas, sabe-se hoje, os traços negro-africanos estão presentes nesses dois géneros populares que, associados à herança ibérico-árabe, definem o espírito argentino mais do que a construída tradição greco-romana e judaico-cristã instrumentalizada pelas suas classes dominantes..De origem social humilde, Maradona exprimia em si mesmo o pathos dos desvalidos do seu país: os indígenas marginalizados no seu próprio território, os negros dizimados e praticamente extintos, os imigrantes europeus empobrecidos..Graças ao seu talento natural para o desporto mais democrático do mundo, driblou o destino que lhe estava reservado, mas carregou na alma, até ao último dia, todas as contradições inerentes a qualquer percurso que, devido à ação de uma força cósmica qualquer ou motivado por um momento de insensatez absoluta, ouse desviar-se do seu rumo expectável e medíocre, como o de toda a plebe. Por essa mesma razão, sofreu todas as incompreensões, todos os ataques e todas as tentativas de apagamento. Mas morreu como um deus e, como tal, está condenado, felizmente, a jamais ser olvidado..Não era um atleta perfeito e cuja morfologia faria dele campeão em qualquer desporto que resolvesse praticar: atarracado, parecia um pequeno e musculado paralelepípedo, talvez a lembrar eventuais misturas indígenas, e jogava apenas com o pé esquerdo..Um dia, num célebre jogo contra a Inglaterra, transformou esse fantástico pé em mão esquerda, mas, como era a "mão de Deus", o árbitro foi obrigado a validar o golo obtido por tal instrumento divino..Nesse mesmo jogo, para tirar todas as teimas, arrancou com a bola do meio do seu próprio campo e, apenas com o seu pé esquerdo, foi tirando todos os adversários do caminho, um a um, incluindo o guarda-redes contrário. Quando empurrou a bola para a baliza vazia, séculos, se não milhares de anos de história passaram, estou certo, pela sua cabeça, mesmo que o seu único impulso, naquele instante, fosse correr para receber o abraço dos seus companheiros e o espanto siderado da multidão..Outro argentino só joga, ainda hoje, com o pé esquerdo. Fá-lo também magistralmente, mas, contudo, com um cada vez mais notório ar agastado e blasé, o que explica por que razão a admiração das massas pelo mesmo parece, por vezes, presunçosa, enquanto a relação com Maradona sempre foi - e será - autenticamente visceral..Diego também não era um produto de nenhum ginásio, de uma equipa completa de personal trainers, massagistas e médicos nutricionistas. Ele não sofria de devaneios apolíneos. Nascido uma autêntica força da natureza, manteve-se em estado bruto até morrer. Jamais foi uma estratégia de marketing..Foi um herói improvável. Sucumbiu ao uso das drogas e saiu delas. Fundou uma igreja, mas logo a esqueceu. Tomou partido pelos explorados de todo o mundo, demonstrando que não se esqueceu das suas origens. Manteve a sua amizade com líderes que, qualquer que seja a opinião de cada um em relação aos seus equívocos posteriores, contribuíram indesmentivelmente para a dignificação histórica da América Latina..Curiosamente, diremos nós, Maradona deixou-nos no mesmo dia em que faleceu um desses líderes, com quem ele construiu uma amizade provocatória: Fidel Castro, que morreu a 25 de novembro de 2016. O batuque argentino e a santería cubana devem estar em festa. Os deuses africanos que há séculos viajaram para as Américas sabem o que fazem..Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.
Seria fácil dizer que a vida de Maradona, que resolveu deixar-nos na última quarta-feira, 25 de novembro, é digna de uma tragédia grega, dadas as tramas em que ele esteve ou deixou envolver-se ao longo dos seus 60 anos de idade. Mas prefiro sublinhar que, na verdade, a sua história é um verdadeiro canto negro, digno de um tango que Gardel nunca escreveu, mas certamente teria escrito, caso o tivesse conhecido, ou de uma milonga sofrida de Ataualpa Yupanqui..Borges que me desculpe, mas, sabe-se hoje, os traços negro-africanos estão presentes nesses dois géneros populares que, associados à herança ibérico-árabe, definem o espírito argentino mais do que a construída tradição greco-romana e judaico-cristã instrumentalizada pelas suas classes dominantes..De origem social humilde, Maradona exprimia em si mesmo o pathos dos desvalidos do seu país: os indígenas marginalizados no seu próprio território, os negros dizimados e praticamente extintos, os imigrantes europeus empobrecidos..Graças ao seu talento natural para o desporto mais democrático do mundo, driblou o destino que lhe estava reservado, mas carregou na alma, até ao último dia, todas as contradições inerentes a qualquer percurso que, devido à ação de uma força cósmica qualquer ou motivado por um momento de insensatez absoluta, ouse desviar-se do seu rumo expectável e medíocre, como o de toda a plebe. Por essa mesma razão, sofreu todas as incompreensões, todos os ataques e todas as tentativas de apagamento. Mas morreu como um deus e, como tal, está condenado, felizmente, a jamais ser olvidado..Não era um atleta perfeito e cuja morfologia faria dele campeão em qualquer desporto que resolvesse praticar: atarracado, parecia um pequeno e musculado paralelepípedo, talvez a lembrar eventuais misturas indígenas, e jogava apenas com o pé esquerdo..Um dia, num célebre jogo contra a Inglaterra, transformou esse fantástico pé em mão esquerda, mas, como era a "mão de Deus", o árbitro foi obrigado a validar o golo obtido por tal instrumento divino..Nesse mesmo jogo, para tirar todas as teimas, arrancou com a bola do meio do seu próprio campo e, apenas com o seu pé esquerdo, foi tirando todos os adversários do caminho, um a um, incluindo o guarda-redes contrário. Quando empurrou a bola para a baliza vazia, séculos, se não milhares de anos de história passaram, estou certo, pela sua cabeça, mesmo que o seu único impulso, naquele instante, fosse correr para receber o abraço dos seus companheiros e o espanto siderado da multidão..Outro argentino só joga, ainda hoje, com o pé esquerdo. Fá-lo também magistralmente, mas, contudo, com um cada vez mais notório ar agastado e blasé, o que explica por que razão a admiração das massas pelo mesmo parece, por vezes, presunçosa, enquanto a relação com Maradona sempre foi - e será - autenticamente visceral..Diego também não era um produto de nenhum ginásio, de uma equipa completa de personal trainers, massagistas e médicos nutricionistas. Ele não sofria de devaneios apolíneos. Nascido uma autêntica força da natureza, manteve-se em estado bruto até morrer. Jamais foi uma estratégia de marketing..Foi um herói improvável. Sucumbiu ao uso das drogas e saiu delas. Fundou uma igreja, mas logo a esqueceu. Tomou partido pelos explorados de todo o mundo, demonstrando que não se esqueceu das suas origens. Manteve a sua amizade com líderes que, qualquer que seja a opinião de cada um em relação aos seus equívocos posteriores, contribuíram indesmentivelmente para a dignificação histórica da América Latina..Curiosamente, diremos nós, Maradona deixou-nos no mesmo dia em que faleceu um desses líderes, com quem ele construiu uma amizade provocatória: Fidel Castro, que morreu a 25 de novembro de 2016. O batuque argentino e a santería cubana devem estar em festa. Os deuses africanos que há séculos viajaram para as Américas sabem o que fazem..Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.