Há precisamente dois anos, Angela Gulbenkian dava uma entrevista ao Jornal de Negócios onde falava dos seus muitos planos. Estava a morar em Lisboa com o marido, Duarte Gulbenkian, sobrinho-neto de Calouste Gulbenkian, e queria exercer aqui a sua atividade como negociante de arte ou, como também se costuma dizer, marchand. "Tudo pode ser criado. Estou disponível para investir. De outra forma nem teria começado", dizia, revelando que gostava de abrir na capital portuguesa uma galeria de arte dedicada à arte contemporânea ou de, pelo menos, trazer uma galeria de Nova Iorque em formato pop-up durante seis meses. Entusiasmo não lhe faltava. E, aparentemente, dinheiro também não. "Porque não tentar, a uma pequena escala, ter um setor contemporâneo?", perguntava..Dois anos depois, Angela Gulbenkian, alemã de 37 anos, deverá comparecer nesta terça-feira no Tribunal de Westminster, em Londres. Vai responder pelos crimes de furto e fraude. Na origem das acusações está a venda de uma escultura com uma abóbora amarela gigante, da artista Yayoi Kusama, por 1,2 milhões de euros. Os pagamentos foram feitos em abril e maio de 2017 mas a obra nunca foi entregue ao comprador, um conselheiro de arte radicado em Hong Kong, Mathieu Ticolat, que processou Angela Gulbenkian civil e criminalmente..Quem é Angela Gulbenkian?.Nascida em Munique, em fevereiro de 1982, Angela Maria Ischwang mudou-se para Londres em 2000 para estudar Política e História e permaneceu na cidade, onde começou por abrir uma empresa de marketing e depois decidiu dedicar-se à arte. Isto aconteceu ainda antes de conhecer Duarte Gulbenkian. Nessa entrevista ao Jornal de Negócios contava que tinha herdado dos pais o gosto pelo colecionismo e que foi com a ajuda deles que comprou a sua primeira obra de arte: do alemão Günther Uecker. A partir daí, nunca mais parou: "Sou viciada. Obcecada mesmo. Depois de nos apaixonarmos por arte, não conseguimos cansar-nos", dizia..Em 2016 mudou-se para Lisboa com o marido, que é agente da Federação Internacional de Futebol (FIFA) e dono da LXG Sports, empresa de agenciamento de jogadores de futebol. Mas Angela manteve em Londres o seu projeto, a Fine Art Private Sale, que tinha aberto em parceria com a também alemã Florentine Rosemeyer, advogada especialista em arte (Rosemeyer deixou a empresa no início de 2018 e atualmente tem o seu próprio negócio, a Rosemeyer Art Advisors, em Munique). Esta empresa servia como intermediária na compra e venda de obras de arte, sem que comprador e vendedor tivessem de se encontrar. Nesta altura já tinha um nome relativamente conhecido no meio.."Num momento estava a posar para fotografias ao lado do artista Ai Weiwei. No momento seguinte ela estava a fechar negócios de arte de milhões de dólares", escreveu o Bloomberg, mostrando como a sua ascensão do mundo da arte foi rápido..A importância de um nome.Duarte Gulbenkian, o marido de Angela, é neto de Roberto Gulbenkian, que trabalhou com a Fundação desde 1956, tendo sido responsável pelo departamento das comunidades arménias. No entanto, na entrevista de 2017, Angela Gulbenkian garantia que nem ela nem o marido pretendiam ter qualquer cargo ou interferência na gestão diária da Fundação Calouste Gulbenkian. "Não quero criar conflitos. Só estou aqui pelo amor à arte", assegurava.."No mundo da arte, este nome abre portas, mas não fecha negócios. As pessoas espantam-se por ser membro da família. Existem outros. Talvez seja a única que não fica envergonhada e fala", dizia a empresária, admitindo que o nome Gulbenkian lhe poderia dar vantagens mas também trazia consigo uma maior responsabilidade: "As pessoas esperam mais de nós. É um desafio, gosto de desafios. Há essa tradição. Basta pesquisar para ver que há o Museu e a Fundação Gulbenkian." Ela tinha noção, portanto, de que o seu nome estaria sempre associado ao da Fundação..Mas Mathieu Ticolat acusa Angela Gulbenkian de ter usado não só o nome como a própria Fundação. À agência Lusa, o advogado de Ticolat, Christopher Marinello, garantiu que Angela Gulbenkian sempre utilizou o nome da Fundação Calouste Gulbenkian para se credibilizar durante o processo negocial para venda da escultura: "Angela [Gulbenkian] criou um endereço de e-mail (gulbenkian.foundation) para parecer estar associada à instituição Gulbenkian. Ela apresentou-se a diversos clientes como estando associada à Fundação e publicou também essas falsas ligações nas suas páginas das redes sociais", sublinhou Marinello..Na sua conta privada de Instagram, onde tem quase dois mil seguidores, Angela Gulbenkian não só se apresenta como colecionadora e responsável por uma tal Gulbenkian Private Art Collection como usa o pseudónimo Pantaraxia, que é nada mais nada menos do que o título da autobiogradia de Nubar Gulbenkian, filho de Calouste Gulbenkian. Existem ainda relatos de negociantes, colecionadores e conselheiros que dizem que Angela Gulbenkian dizia aos seus clientes que tinha comprado obras para a Fundação Gulbenkian. Esses relatos serão certamente usados em tribunal..Em agosto de 2018, questionada pela Lusa, a negociadora de arte negou a acusação: "Sou casada com um Gulbenkian. Nunca disse que fazia parte da Fundação. Nunca disse que queria pertencer à Fundação. Nunca disse que queria ou ia fazer parte do Museu. Se alguma vez tivesse dito isso, porque é que não foram ao site da Fundação verificar as equipas? Toda a gente sabe que não estou lá. É do conhecimento geral que não faço parte da Fundação ou do Museu.".Por seu lado, a Fundação Calouste Gulbenkian tem sempre deixado claro, em todo este processo, que não tem nem nunca teve qualquer relação com Angela Gulbenkian..Uma abóbora muito valiosa.Seja como for, o caso expõe a fragilidade do mercado internacional da arte, onde se compram e vendem obras de arte por milhões de dólares em circunstâncias nem sempre muito claras. "As pessoas estão a comprar arte cara e não fazem as devidas diligências para saber a quem é que estão a comprar", afirmou ao Bloomberg Christopher Marinello, diretor da Art Recovery International, uma empresa especializada em casos de recuperação de arte e que está a colaborar com Ticolat no processo civil..A escultura em causa é uma abóbora da conhecida artista japonesa Yayoi Kusama, que tem atualmente 90 anos. É uma abóbora enorme, com mais de 90 quilos, amarela e pintalgada de preto. Mathieu Ticolat pagou por ela 1,375 milhões de dólares (1,2 milhões de euros)..Entretanto, a peça acabou por ser vendida a outro colecionador no final de 2017 mas Angela Gulbenkian continuava a dizer que ia entregá-la a Ticolat. O consultor de arte esteve meses a tentar resolver a situação e chegou a fazer ameaças até que decidiu avançar com um processo, pedindo o congelamento dos bens dela, o que foi confirmado pelo juiz do caso que corre na justiça inglesa..Em agosto do ano passado, em declarações à agência Lusa, Angela Gulbenkian perguntava: "Mas porque é que o meu nome está a ser assim denegrido? Se tivesse um apelido comum, como Smith ou Muller, ninguém ia prestar atenção. Iam pensar 'ah, há uma disputa em tribunal' como acontece em todo o mundo." Angela Gulbenkian dizia ainda que este é um problema comum no negócio de transação de peças de arte: "Se olharmos para os grandes colecionadores, vemos que todos tiveram problemas do género, porque o mercado da arte não é um mercado regulado. Não há uma regulação de qualquer tipo.".No início de maio, Steve Cohen, advogado de Nova Iorque que representa Angela Gulbenkian, afirmou ao Bloomberg que a empresária nega as acusações e vai defender a sua inocência..Já o advogado de Ticolat assegurou que o seu cliente "tenciona processar agressivamente Angela Gulbenkian nos tribunais civis e penal do Reino Unido, Alemanha e Hong Kong, onde já foram apresentadas queixas". "O meu cliente quer acabar com as suas atividades fraudulentas e processar também ativamente os membros da sua família, parceiros e associados, até que o último dólar seja recuperado", adiantou à Lusa. "Vamos olhar para a atividade de Angela e Duarte Gulbenkian, a nível mundial, incluindo em Portugal. Temos provas de que Duarte Gulbenkian e a mãe de Angela receberam fundos que eram parte desta fraude, o que pode ser considerado lavagem de dinheiro", sustentou.