A BBC exibe, nesta segunda-feira, a primeira parte do documentário Inside Europe: 10 Years of Turmoil, dedicada ao referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia, convocado por David Cameron, realizado em 2016, com consequências conhecidas, sim, mas ainda com um desfecho incerto. Em aberto..Uma produção Brook Lapping, pela mão da conceituada produtora Norma Percy, esta primeira de três partes do documentário põe líderes europeus e seus conselheiros e assessores a falar de forma algo inédita sobre os bastidores do Brexit, ajudando a perceber melhor a forma como, muitas vezes, é feita política nos países europeus e na UE..Numa altura em que o presidente francês, Emmanuel Macron, tem repetido as suas críticas àqueles que foram os principais rostos do Brexit, acusando-os de terem mentido ao povo britânico, num momento em que o tempo escasseia para o governo de Theresa May conseguir aprovar um novo acordo no Parlamento do Reino Unido até 29 de março, há relatos feitos neste documentário que, juntamente com a recuperação e cruzamento de eventos e declarações, permitem perceber um pouco melhor os bastidores políticos de toda esta confusão chamada Brexit..1. Nick Clegg defendia um referendo por achar que britânicos queriam ficar na UE. A União Europeia sempre foi um fator de divisão na política interna britânica, sobretudo no Partido Conservador, mas também noutros. Em 2007, o debate do momento era sobre se o Tratado de Lisboa, herdeiro da malograda Constituição Europeia, precisava de ser submetido a referendo para ser ratificado no Reino Unido. O governo britânico da altura, do Labour, argumentava que se tratava de um documento diferente da Constituição Europeia, que emendava os tratados existentes, em vez de os reescrever. E que, por isso, não era preciso o texto ser validado por consulta popular..O novo tratado fora assinado em Lisboa, no dia 13 de dezembro de 2007, e, nesse mesmo dia, o mal-estar existente no Reino Unido transpareceu para fora. No Mosteiro dos Jerónimos, onde decorreu a assinatura do documento, os britânicos foram os únicos que não tiveram um primeiro-ministro a representá-los. Gordon Brown, do Labour, sucessor de Tony Blair no n.º 10 de Downing Street, chegou atrasado, a tempo apenas da fotografia de família. Quem assinou o Tratado de Lisboa em nome do Reino Unido foi o então ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, David Miliband. Não contente, o líder da oposição da altura, David Cameron, bem como o seu Partido Conservador, apresentaram uma emenda à EU Treaty Bill, exigindo a convocação de um referendo ao Tratado de Lisboa, mas esta foi rejeitada a 5 de março de 2008. Houve 311 votos contra e 248 a favor, ou seja, a diferença foi de 63 votos. Nessa altura, as rebeliões partidárias, hoje muito em voga, também foram notórias. Vinte e nove deputados do Labour desafiaram Brown e votaram a favor da emenda. No partido liberal-democrata então liderado por Nick Clegg também houve divisões. Clegg, um entusiasta do projeto europeu, instruíra os deputados do partido para se absterem durante a votação da emenda dos conservadores. Porém, 13 deles votaram a favor, desobedecendo àquilo que tinham sido as ordem do dirigente do partido..Algum tempo antes, no final de fevereiro de 2008, num artigo datado de 25 de fevereiro, publicado no The Guardian, Clegg sugerira aos políticos britânicos que parassem de se enfrentar num debate de loucos sobre o referendo ao Tratado de Lisboa e defendeu que, em vez disso, houvesse um referendo sobre o Reino Unido na UE. "É tempo de removermos o espinho e sararmos a ferida, tempo de ter o debate político que, de forma cobarde, evitamos há 30 anos - é tempo de fazer um referendo sobre a grande questão. Queremos estar dentro ou fora? Ninguém, no Reino Unido, com menos de 51 anos, alguma vez foi colocado perante esta questão. Ninguém pôde votar no referendo de 1975. Isso inclui metade dos deputados. Duas gerações nunca tiveram a oportunidade de dizer de sua justiça (...) Queremos um referendo com substância. Esta geração merece uma oportunidade de dizer o que quer em relação à Europa - ficar ou sair.".Dois anos depois, no seu manifesto eleitoral, os liberais-democratas incluíram a promessa de um referendo sobre a UE se voltasse a haver alterações significativas nas relações entre a UE e o Reino Unido. Através, por exemplo, de um novo tratado. Mais tarde, já no governo, coligado com David Cameron, Nick Clegg, então vice-primeiro-ministro, fez a seguinte afirmação durante uma sessão parlamentar, a 15 de maio de 2013, deixando surpreendidos os deputados: "Devemos ter um referendo sobre a Europa quando as regras mudarem. Dissemos isso na altura do Tratado de Lisboa. No nosso manifesto. Legislámos nesse sentido. E voltaremos a dizê-lo de novo. Não é uma questão de quando. Nem de se." Apesar de tudo, Clegg era contra a ideia dos conservadores no sentido de assumir um compromisso prometendo, com vista às eleições de 2015, um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE sem antes negociar qualquer novo enquadramento com essa mesma UE..Aquando da rejeição do referendo ao Tratado de Lisboa, em 2008, Cameron afirmara: "As pessoas sentem-se enganadas e isto é cínico porque as promessas que foram feitas não foram cumpridas." O então líder dos conservadores referia-se ao facto de o Labour e os liberais-democratas terem prometido, em 2005, na campanha eleitoral, um referendo à Constituição Europeia. Com o chumbo desta, em França e na Holanda, a UE entrou em crise e aquela ideia foi sendo reformulada. Quando chegou ao poder, coligado com os liberais-democratas de Clegg, Cameron prometeu em janeiro de 2013 que, se fosse reeleito em 2015, organizaria um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE até 2017. No ano seguinte, em maio de 2014, o eurocético Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), de Nigel Farage, venceu as eleições europeias com 26,77%. Em maio de 2015, o Partido Conservador de Cameron venceu as legislativas britânicas, com maioria absoluta. Na sua primeira reação oficial à vitória, Cameron reiterou que iria cumprir a sua principal promessa, a de um referendo sobre a UE..Hoje em dia, Clegg, entretanto contratado pelo Facebook como líder dos Assuntos Globais, defende um segundo referendo sobre o Brexit. O primeiro, realizado a 23 de junho de 2016, deu afinal a vitória ao sair, com 52%, contra 48%, para o ficar. O Leave foi sobretudo apoiado pelos eleitores com 65 anos ou mais e o Remain pelos que tinham entre 18 e 24 anos. Por isso, de certa forma, Clegg tinha razão, quando, em 2008, intitulou o seu artigo no The Guardian de "Ask the under-50s", ou seja, "Façam a pergunta a quem tem menos de 50 anos." Em julho do ano passado, Clegg, citado pelo The Independent, declarou: "A cada dia que passa torna-se óbvio que o Brexit não pode ser deixado nas mãos dos políticos. Todo o processo que conduziu ao Brexit esteve ele próprio caracterizado por lutas internas em Westminster. Os vencedores do referendo de 2016 não se entendem. Há uma exigência crescente no país para pôr a decisão sobre o futuro onde ela deve estar, ou seja, nas mãos do povo.".A avaliar pelas recusas constantes de Theresa May e das reticências do atual líder do Labour, Jeremy Corbyn, a hipótese de um segundo referendo parece, neste momento, ser das menos prováveis. Até os deputados trabalhistas que tinham previsto apresentar, com o apoio dos liberais-democratas, nesta segunda-feira, uma emenda sobre o assunto, em Westminster, desistiram de o fazer por perceberem que não existe, à partida, grande base de apoio. Os liberais-democratas, que hoje são liderados por Vince Cable, também só aceitariam esta emenda se um possível referendo pudesse englobar a hipótese de permanência do Reino Unido na União Europeia..2. David Cameron prometeu o referendo porque achava que ele não ia acontecer. Segundo o atual presidente do Conselho Europeu, o polaco Donald Tusk, David Cameron só prometeu o referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia porque achava que ele não ia acontecer. Entrevistado para aquele documentário, a ser transmitido pela BBC Two, o ex-primeiro-ministro polaco conta sobre o ex-primeiro-ministro britânico: "Eu perguntei a David Cameron 'porque é que decidiste fazer este referendo - é tão perigoso, estúpido até, sabes. Então ele disse-me - e eu fiquei surpreendido e chocado - que a única razão era o seu próprio partido'.".O Partido Conservador sempre teve uma corrente eurocética muito forte e, no passado, as lutas internas sobre a UE já tinham levado à queda de Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, do poder. Em dezembro passado, a própria Theresa May ia tendo o mesmo destino, quando o atual líder dos eurocéticos e rebeldes conservadores Jacob Rees-Mogg apresentou uma moção de censura interna contra ela. Perdeu. May sobreviveu. A esta e, posteriormente, a uma moção de censura apresentada contra o seu governo pelo líder do Labour Jeremy Corbyn. Apesar de tudo, Rees-Mogg, também líder do think tank European Research Group, não desiste de pressionar. Agora defende que May não deve procurar fazer aprovar nenhum novo acordo em Westminster e simplesmente deixar o Brexit desordenado, sem acordo, acontecer a 29 de março..Quando Tusk teve aquela conversa com Cameron este parecia seguro de que Clegg, seu parceiro de coligação, não aceitaria realizar um referendo. "Ele disse-me que se sentia relativamente à vontade porque, ao mesmo tempo, achava não existir risco de haver mesmo um referendo. Isto porque o seu parceiro de coligação, os liberais-democratas, iria bloquear a ideia. Mas depois, surpreendentemente, ele ganhou as eleições e não precisou de renovar a coligação. Então, paradoxalmente, David Cameron tornou-se vítima da sua própria história", declarou o presidente do Conselho Europeu, no âmbito do "Inside Europe: 10 Years of Turmoil". Cameron, que tem andado relativamente desaparecido, não reagiu. Quem o fez foi o seu ex-diretor de comunicação em Downing Street, Craig Oliver, no Twitter: "Isto está completamente errado. David Cameron passou toda a campanha eleitoral de 2015 a deixar claro que não formaria qualquer governo que não concordasse com o referendo. Vejam a maioria das entrevistas que ele deu. Usar a coligação como desculpa é um mito.".Tusk lembra ainda o que disse noutras ocasiões ao ex-chefe do governo do Reino Unido: "Vá lá, David. Eu sei que todos os primeiros-ministros estão a prometer ajudar-te, mas acredita que ninguém está com paciência para uma revolução na Europa só por causa do teu estúpido referendo. Se tentares pressionar-nos, apressar-nos, vais perder tudo. E pela primeira vez vi qualquer coisa parecida a medo nos olhos dele. Finalmente percebeu o desafio que estava a enfrentar." No documentário, Tusk, mas também Jean-Claude Juncker, atual presidente da Comissão Europeia, revelam detalhes das negociações entre Cameron e o resto da UE quando o britânico tentava obter garantias dos europeus para poder, na campanha do referendo, defender o Remain e dizer aos eleitores para votarem nessa opção..George Osborne e William Hague, que eram, respetivamente, ministro das Finanças e ministro dos Negócios Estrangeiros, também foram entrevistados para a BBC Two. Osborne recorda-se de ter avisado que o Brexit iria ser "um desastre para o Reino Unido". E Hague, por outro lado, de achar que não havia outra opção: "Isto estava imparável. Ou liderávamos o processo ou tornávamo-nos vítimas dele." Do lado da França, são entrevistados os ex-presidentes Nicolas Sarkozy e François Hollande (o primeiro de direita, o segundo socialista). "Se tentares partir-nos os braços, não levas nada", lembra-se Sarkozy de ter dito a Cameron. Na altura, o conservador queria concessões por parte da UE a nível das políticas de integração e de imigração. "Nada o obrigava a fazer um referendo quando ele o fez. Não teria sido a primeira vez que uma promessa eleitoral não seria cumprida, mas ele queria mostrar que podia negociar, de uma forma bem-sucedida, com os europeus", recorda por sua vez Hollande em declarações para o documentário da BBC Two..Após a vitória do Brexit, Cameron comunicou a demissão a Tusk. "David Cameron telefonou-me e informou-se que ia demitir-se. Eu disse: sim, David, seria muito difícil imaginar que um primeiro-ministro que liderou a campanha pelo Remain seria, dois dias depois, o mesmo primeiro-ministro a negociar o Brexit. Era como se estivesse a chegar o dia em que ele seria obrigado a reconhecer o maior erro da sua vida", explica o presidente do Conselho Europeu..Por tudo isto, o atual presidente francês, Emmanuel Macron (centrista), não se tem cansado de criticar os líderes britânicos, que, segundo ele, enganaram e venderam mentiras aos seus eleitores. "As pessoas começam agora a perceber que os números que lhes foram dados são totalmente falsos e que aquilo que lhes disseram que podia ser feito do dia para a noite, na verdade, não pode", declarou nesta semana o chefe do Estado francês num debate em Bourg-de-Peage, em Lyon, com uma audiência que contou com a presença de alguns membros do movimento dos coletes amarelos. Macron não poupou Cameron: "O resultado foi que, de facto, isto tem estado a passar-se nos últimos dois anos e aqueles que prometeram o Brexit desapareceram, literalmente, duas semanas depois. Nem sequer queriam governar!".3. Boris Johnson ameaçou com invasão turca mas diz que não o fez. Boris Johnson, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Theresa May, fez no passado dia 18 uma espécie de alegoria da retroescavadora para falar do Brexit. Na sede da empresa multinacional britânica JCB, em Rocester, em Inglaterra, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Theresa May começou por dizer que a retroescavadora consegue levar tudo à sua frente, se for bem manobrada, mas, se acidentalmente for posta em marcha-atrás, as coisas podem correr muito mal. O mesmo acontece com todo este processo de saída do Reino Unido da UE, sublinhou, criticando a abordagem da primeira-ministra conservadora..Após discursar, aceitou perguntas, tendo uma delas sido a de Michael Crick, do Channel 4, acerca de afirmações que fez sobre a imigração e a Turquia, em 2016, no contexto do referendo do Brexit. O ex-ministro de May respondeu que nada tinha dito na altura sobre a Turquia durante a campanha para o referendo.."Eu não disse nada sobre a Turquia durante o referendo", declarou, tendo a imprensa britânica desmentido em seguida. Em abril de 2016, referindo-se a uma eventual adesão da Turquia à UE no futuro, Boris Johnson afirmou: "Tenho muito orgulho em ser pró-Turquia, mas não posso imaginar uma situação em que 77 milhões de turcos ou pessoas de origem turca podem chegar aqui sem qualquer tipo de controlo - isso não vai funcionar.".Ashley Cowburn, jornalista de política do The Independent, partilhou no Twitter a carta que Boris Johnson e Michael Gove, na altura os rostos da campanha pela saída do Reino Unido da UE (Vote Leave), enviaram a Downing Street, sete dias antes do referendo de 2016. "Uns dizem que o Reino Unido tem direito de veto sobre a adesão da Turquia. Esta alegação é obviamente artificial, dado o compromisso do governo com uma adesão da Turquia o mais rapidamente possível. Se o governo [de David Cameron] não der a garantia [de que o Reino Unido vetará a entrada da Turquia na UE], então as pessoas podem tirar a conclusão, razoável, de que a única forma de evitar ter fronteiras em comum com a Turquia é votar Sair e recuperar o controlo a 23 de junho.".A imigração no Reino Unido, bem como o seu impacto a nível do mercado laboral e dos benefícios sociais, foi uma das preocupações que os britânicos mais relacionaram com o referendo do Brexit. Neste contexto, as declarações no sentido de uma invasão turca não foram de descurar. Outra prova de que a Turquia foi um tema na campanha para o referendo do Brexit são as afirmações feitas por Cameron, então primeiro-ministro do Reino Unido, em maio de 2016: "O Reino Unido e qualquer outro país da UE tem o poder de veto sobre a adesão de qualquer outro país. É um facto. Isto é muito importante, porque eles estão a dizer, basicamente, que é preciso as pessoas votarem para sair da Europa por causa desta questão da Turquia que não podemos travar. Isso não é verdade. Nós podemos impedir a adesão da Turquia", sublinhou David Cameron na ITV. E previu que os turcos, que apresentaram o pedido de adesão em 1987, não estarão preparados para entrar na UE "antes do ano 3000"..Com todo este debate suscitado em torno da Turquia, do diz que disse, Boris Johnson acabou a manhã daquele dia 18 debaixo de uma chuva de críticas. No final de contas, parece ter manobrado mal a retroescavadora, acidentalmente acionando a marcha-atrás. Contra si próprio..4. Nigel Farage prometeu dinheiro que depois admitiu que não existia. O Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), então liderado por Nigel Farage, passou a campanha para o referendo do Brexit a martelar num ponto: dizia que com o Brexit 350 milhões de libras seriam libertados e passariam a ser utilizados no Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS)..Logo no dia a seguir a ser conhecido o resultado do referendo, que deu a vitória à saída do Reino Unido da União Europeia, Farage foi de manhã ao programa Good Morning Britain, da ITV News, tendo admitido que essa mensagem "foi um dos erros da campanha pela saída"..Questionado pela jornalista sobre se haveria mais coisas que as pessoas acordariam e descobririam que não iriam acontecer, Farage contornou a questão, dizendo que há dinheiro que não será enviado para a União Europeia e poderá ser aplicado no país..Apesar de altos e baixos, com disputas internas dentro do próprio UKIP e acusações de uso indevido de fundos europeus para campanhas eleitorais, Farage mantém-se até hoje no Parlamento Europeu como eurodeputado. No passado dia 16, em entrevista ao DN em Estrasburgo, declarou-se disposto a voltar a fazer campanha pelo Leave se o governo e a UE insistirem em repetir o referendo do Brexit.."Claro que este velho lugar não quer que o Reino Unido saia. Somos uma economia enorme. A nossa economia tem a dimensão das 20 menores economias do Mercado Único Europeu. Por isso, temos as classes políticas entre Bruxelas e Westminster a conspirarem para tentarem uma reviravolta no resultado democrático do referendo, porque o que eles querem mesmo é um segundo referendo. É isso que eles querem. Será um insulto se forçarem um novo referendo, mas digo-lhe: se querem lutar comigo outra vez, vou combatê-los", afirmou, na sede da eurocâmara, onde mensalmente os eurodeputados vão para as sessões plenárias..5. Theresa May mantém-se porque ninguém quer o presente envenenado do Brexit. No documentário da BBC Two, George Osborne, que foi demitido de ministro das Finanças quando Theresa May sucedeu a David Cameron em Downing Street, conta que, numa reunião, o então primeiro-ministro perguntou aos ministros quais eram as suas opiniões sobre o referendo do Brexit. "Theresa May não disse muito sobre isso, o que, aliás, acontecia, por defeito, nestas reuniões", conta Osborne. A nível europeu, também fontes diplomáticas disseram que a postura de May, ex-ministra do Interior de Cameron, sempre foi mais de esperar para ver do que de apresentar propostas concretas. A nível interno, a líder conservadora foi acusada de não dialogar com a oposição e de ceder demasiado à UE. Boris Johnson, por exemplo, chegou a afirmar que ela queria pôr "um colete suicida" à volta da Constituição britânica e "entregar o detonador a Bruxelas"..Já no poder, a nova chefe do governo britânico viu o tribunal obrigar a que a ativação do Artigo 50.º do Tratado de Lisboa tivesse de ser aprovada pelo Parlamento. E assim aconteceu. A 29 de março de 2017, May acionou o artigo que permite a um Estado membro pedir para sair da União Europeia. Os britânicos, que aderiram em 1973, sempre foram colocando entraves, ao longo do tempo, ao processo de integração europeia, conseguindo, aqui e ali, em todas as negociações, os chamados opting-outs, ou seja, cláusulas de exclusão para não se comprometerem em certas áreas..Em abril de 2017, sentindo a necessidade de se legitimar nas urnas, May optou por eleições antecipadas. As sondagens colocavam o Partido Conservador em vantagem face ao Labour liderado por Jeremy Corbyn. Mas as contas saíram furadas e a vantagem reduziu-se consideravelmente, resultando as eleições num hung Parliament. Perdeu a maioria absoluta que Cameron tinha conseguido em 2015 para os conservadores. Por causa disso, May ficou então a depender do apoio dos dez deputados do Partido Unionista Democrático (DUP) da Irlanda do Norte..Face a essa dependência do DUP, associada à rebelião de deputados conservadores que contestam o backstop (mecanismo de salvaguarda para evitar o regresso de uma fronteira física entre a Irlanda do Norte e a Irlanda no pós-Brexit), May sofreu a maior derrota história de sempre na Câmara dos Comuns, no passado dia 15. Quatrocentos e trinta e dois deputados votaram contra o acordo do Brexit, fechado entre Londres e a UE27 em novembro de 2018. Duzentos e dois votaram a favor..Na sequência disso, Corbyn, que no passado apresentara apenas uma moção de censura contra May, avançou com uma moção contra todo o governo, para fazê-lo cair. E exigiu eleições antecipadas. Perdeu. May, que em dezembro sobrevivera a uma moção de desconfiança no próprio Partido Conservador, sobreviveu a esta também. O DUP e os rebeldes conservadores vieram em seu auxílio. Trezentos e vinte e cinco deputados votaram contra a moção. E 306 a favor. Na verdade, muitos dizem que Corbyn só avançou porque sabia que ia perder. E que o líder do Labour, além de não querer um segundo referendo sobre o Brexit, de nunca ter sido propriamente um grande entusiasta da integração europeia, também não quer que esse dossiê envenenado venha parar às suas mãos. Pelo menos nesta fase em que o processo está..E eis que May, de fraca, passou a ser apelidada de forte, decidida, comprometida com o interesse nacional. A primeira-ministra ofereceu depois diálogo com todos os partidos, para encontrar um plano B, o qual não resultou em nada de concreto. Pelo menos até agora. Corbyn, do Labour, diz que só fala com ela se o No Deal Brexit deixar de ser um cenário possível. May diz que não se compromete e garante que o Brexit vai mesmo acontecer. Porque foi nisso que o povo britânico votou. Só não se sabe como e quando. A próxima data a ter em atenção é a próxima terça-feira, dia 29, quando em Westminster forem debatidas e votadas emendas que poderão indicar algum rumo para este caminho. Entretanto, reina a confusão.