O museu dos enredos obsoletos

Publicado a
Atualizado a

"O céu sobre o porto tinha a cor da televisão, sintonizada num canal fora do ar." Foi assim que William Gibson começou o seu primeiro romance, Neuromancer. Pode não ser presença consensual no cortejo das grandes "primeiras frases" - os "Chamem-me Ishmael", os "Todas as famílias felizes...", os "É uma verdade universalmente reconhecida...", etc. -, mas será pelo menos o começo mais reconhecível dentro do género a que chamamos ficção científica. Dependendo da idade de quem lê, será também a evocação nostálgica de uma relíquia cultural desaparecida - o ruído branco que se seguia à mira técnica após o fecho de emissão - ou então um profundo mistério para quem cresceu, primeiro, com as emissões contínuas e, mais tarde, com a programação ad hoc e multiplataforma em que hoje consiste o acto de "ver televisão". A ideia de um canal fora do ar mais facilmente conjura uma mensagem de erro no ecrã de um periférico ou o fundo negro resultante de um cabo desligado.

Qualquer leitor frequente consegue construir o seu museu privado de situações semelhantes: imagens ou metáforas derivadas de tecnologias que o tempo tornou obsoletas. Recentemente, ao reler uma colectânea de contos de terror publicada nos anos 1970, encontrei uma história sobre ratos gigantes (são quase sempre boas as histórias sobre ratos gigantes) na qual a cauda de uma dessas criaturas colossais é descrita como "tão grossa e retorcida como o fio de um telefone". O que talvez fosse impressionante aos olhos dos leitores habituados aos rechonchudos fios dos telefones dos anos 1970, mas muito menos para os leitores de agora, permanentemente enrodilhados em fios (de carregadores, de auriculares) cuja espessura aproximada é a da cauda de um hamster.

Algo semelhante acontece na linguagem coloquial, em que certos detritos de passados desvanecidos também costumam sobreviver, como muletas verbais, aos seus prazos de validade. Acusar alguém de parecer "um disco riscado" continua a ser uma expressão imediatamente compreensível, mesmo para quem nunca tenha tido contacto directo com a tecnologia que lhe deu origem, por causa da sua nobre longevidade no debate político e em painéis televisivos de comentário futebolístico.
Num prefácio bem-disposto a uma reedição recente de Neuromancer, Gibson menciona de passagem o possível esforço de descodificação que a imagem de um "canal morto" pode obrigar alguns leitores a fazer, mas diverte-se ainda mais com uma lacuna óbvia do livro, à luz do seu contexto enquanto futuro imaginado: a acção decorre na terceira década do século XXI e não há um único telemóvel. Uma lacuna, comenta o autor, que se arrisca a ser interpretada pelos leitores mais jovens como o mistério central do enredo: que evento terrível terá criado aquela distopia de incomunicabilidade?

Evidentemente, parte substancial do enredo de Neuromancer (que é essencialmente um policial noir num cenário futurista) seria arruinado pela presença de telemóveis: uma característica que partilha com muitas outras ficções. O fenómeno já foi abordado vezes suficientes para justificar um baptismo informal e, na última década e meia, é raro o mês em que "o problema dos telemóveis" não é mencionado: em artigos, em críticas de cinema ou em entrevistas a escritores veteranos, lamentando a obsolescência imediata a que a tecnologia mais ubíqua do século XXI condenou tantas manobras narrativas outrora fiáveis. Larry David observou (correctamente) que a existência de telemóveis tornaria redundante metade dos episódios de Seinfeld. Na semana em que foi anunciado um remake do filme Sozinho em Casa, centenas de utilizadores do Twitter entraram rapidamente em acção para fazer piadas sobre a flagrante implausibilidade da premissa central nos dias de hoje.

É possível que a indústria do cinema de terror se considere a maior vítima deste estado de coisas. Enredos tradicionalmente estruturados pela necessidade de isolar os seus protagonistas têm um óbvio obstáculo na capacidade de pedir ajuda externa levando a mão ao bolso. Neutralizar a comunicabilidade das personagens tornou-se parte integrante da gramática do género, e a linha de montagem de Hollywood reagiu ao problema organizando uma sub-linha de montagem, dedicada a inserir, em quase todos os filmes estreados desde 2002, a cena obrigatória em que uma personagem agita freneticamente o telemóvel no ar antes de anunciar, com um resignado encolher de ombros: "Não há rede." (Um vídeo lendário no YouTube chamado No Signal compila cenas praticamente idênticas de mais de três dezenas de filmes.) A sequência coalhou tão depressa num lugar-comum que alguns filmes mais recentes começaram a perceber que a solução ideal não é encontrar maneiras originais de inutilizar telemóveis, mas sim formas de canalizar essa moderada mas genuína ansiedade contemporânea que é uma bateria abaixo dos 5% numa situação de isolamento temporário.

A queixa de que os telemóveis invalidam os confortáveis enredos do séculos XX, no fim de contas, faz tanto sentido como a queixa de que o comboio invalida os enredos medievais, ou a penicilina os enredos vitorianos. Cada inovação tecnológica cancela possibilidades e inventa outras. Um ponto fulcral de Os Três Mosqueteiros depende de D'Artagnan convencer um amigo a atrasar o seu relógio 45 minutos de forma a ilibá-lo da não comparência num duelo. O expediente só funciona num período histórico em que o relógio portátil era ainda uma tecnologia semiexótica e as pessoas nem sempre sabiam as horas. As complicações emocionais dos romances vitorianos eram frequentemente provocadas por equívocos de comunicação que, entre longas viagens de charrete e morosas trocas de correspondência, demoravam meses a resolver; um automóvel e dois telefones - mesmo na sua arcaica versão de rede fixa - descomplicariam fatalmente quase toda a obra de Jane Austen.

Aquilo que definimos como "enredos" são objectos historicamente contingentes, e lamentar a sua obsolescência é próprio de ficcionistas que preferem imaginar ficções, não no mundo que habitam mas nos mundos inertes e confortáveis das ficções de anteontem. É difícil, aliás, não suspeitar que séries como Stranger Things depositam as suas peripécias nos anos 1980 por qualquer outra razão que não o comodismo de um cenário mais receptivo à nostálgica reciclagem de tropos emprestados. A reacção imaginativamente adequada é perceber que qualquer fenómeno que torne um "enredo" defunto está em simultâneo a permitir actos criativos que antes não eram possíveis. Em 1930, Evelyn Waugh reinventou fundamentalmente a arte de escrever diálogo cómico no capítulo 12 de Corpos Vis; o capítulo consiste em duas conversas telefónicas e é uma lição de como explorar o potencial de uma tecnologia ainda recente para criar formas novas e complicações interessantes.

Na verdade, os escritores de ficção científica são os que correm mais riscos com esta abordagem, pois são os que aceitam com mais entusiasmo o mandato para explorar tudo aquilo que é novo, por vezes quando ainda é demasiado novo para se perceber o que é e o que pode fazer, aos enredos e ao mundo. O excerto mais inadvertidamente cómico de Neuromancer, lido em 2019, não é a evocação de televisores cheios de estática, nem a enigmática ausência de telemóveis, mas uma cena particularmente tensa em que o protagonista, embrenhado na resolução de um problema, pede a um colega num tom urgente, "Rápido! Arranja-me um modem!"

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt