Tejo: como matar um rio

Uma viagem entre Portugal e Espanha para contar como as alterações climáticas e a gestão da água ameaçam a sobrevivência do maior rio da Península Ibérica.
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Há tão pouco Tejo que o mar está a subir o rio. Pescam-se hoje douradas em Valada, a 70 quilómetros de Lisboa, onde é captada uma parte da água que abastece a capital. No estuário, os agricultores pegam em tratores para erguer barricadas ao sal. É isto um rio?

Todos os dias, às sete da manhã, Joaquim Madaleno levanta-se e vai à janela do quarto espreitar o ribeiro que passa ao lado de sua casa. É na verdade um pequeno braço do Tejo que entra pelo norte do estuário - e onde ele instalou uma tábua artesanal de medição de marés. Olhando para aquela régua todas as manhãs, o homem vê o rio mudar.

"Entre os pontos mais extremos da maré alta e da maré abaixa havia até há poucos anos uma diferença média de dois metros. Hoje, a variação pode chegar aos 4,5 metros. Se o tempo está seco, percebo logo que o mar está a galgar o Tejo. E são cada vez mais as vezes em que tenho de soar o alarme", lamenta. "O rio está simplesmente a entrar em colapso."

É difícil para quem vive na capital portuguesa perceber as oscilações da água a olho nu. Mas Madaleno é presidente da Lezíria Grande, que na verdade se chama Associação dos Beneficiários da Lezíria Grande de Vila Franca de Xira. A invasão salina do rio afeta-o profundamente. A ele e a 135 outros agricultores que trabalham diariamente aqueles 13.420 hectares de terreno. Localizada trinta quilómetros a norte de Lisboa, é a maior exploração agrícola que existe na bacia portuguesa do Tejo.

As alterações climáticas estão a criar um fenómeno tão discreto quanto preocupante. "Há 20 anos ninguém pensava nisto, mas os sinais são inegáveis e alguma coisa é preciso fazer", assume António Carmona Rodrigues, presidente da câmara municipal de Lisboa entre 2004 e 2007, professor na Universidade Nova de Lisboa e uma das maiores autoridades portuguesas no campo da Hidrologia e dos Recursos Hídricos. "A subida da água salgada traz espécies invasoras que destroem os habitats, ameaça a produção agrícola e pode afetar o abastecimento para consumo humano."

A água salgada tem duas formas de invadir o Tejo. A mais frequente acontece com a maré alta. Há menos água doce a descer o rio e as ondas, sobretudo durante as marés vivas, chegam hoje mais longe do que nunca. Muitas vezes transportam consigo fauna, flora e plâncton, que alteram com grande impacto os habitats das bacias. É a isso que Joaquim Madaleno assiste da sua janela.

Há um segundo tipo de invasão que transforma o rio para sempre - a subida da cunha salina. "As alterações climatéricas e o aproveitamento humano fazem com que menos água doce esteja a descer o rio", explica Carmona Rodrigues. "Por outro lado, o degelo faz o nível dos oceanos subir. As massas de matéria salgada avançam pelo fundo do rio e vão-se estabelecendo progressivamente."

Imagine cozinhar um bolo-mármore, ou em espanhol um bizcocho marmolado. É um doce tradicional dos dois países onde corre o Tejo e é feito com duas massas, uma de baunilha, outra de chocolate. São colocadas alternadamente no mesmo tabuleiro antes de irem ao forno sem serem misturadas, para que tenham o aspeto de uma pedra mármore. Se se deitar em simultâneo de um lado do tabuleiro a massa clara e do outro a massa escura, o chocolate, que é mais denso, avança progressivamente pelo fundo, ocupando toda a parte de baixo da forma.

No Tejo, o chocolate é a água salgada. Como é mais densa, avança como a lava de um vulcão, rio acima - e estabelece-se. Enquanto a maré alaga, a cunha salina engole.

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Para os agricultores da Lezíria Grande, o futuro já chegou. "Aqui, aqui e aqui" - e Joaquim Madaleno aponta o braço para as margens da Reta do Cabo, um troço de 10 quilómetros da estrada nacional 10 que divide a propriedade a meio - "plantava-se milho, beterraba e melão, e era assim há décadas."

Junto ao alcatrão ainda se veem algumas das tradicionais vendas de melão, mas é produto que já não vem daquelas terras. "Uns vêm das hortas mais para sul, mas a maioria compro no supermercado", diz uma vendedora sem querer dar nome para não comprometer o negócio. "O melão já não pega, há sal a mais."

O tomate, cujo preço no mercado internacional disparou na última década, ocupa agora quase toda a metade norte dos terrenos. "A zona sul está quase toda plantada com arroz, que é um produto de alagamento, em que 90 por cento da água serve como estabilizador térmico - e por isso é mais resistente ao sal", explica Joaquim Madaleno.

O tomate aguenta quase um grama de sal por litro de água, o arroz dois. O melão não aguenta quase nada. "Somos a agricultura moderna, que funciona e contribui para a economia do país", diz o presidente da uma exploração onde noventa por cento da produção é vendida para outros países, e a Lezíria Grande dá emprego de forma directa e indirecta a 3500 pessoas. "Mas para funcionarmos precisamos de água doce. E temo-la cada vez menos."

Foi em 2005 que os problemas se começaram a tornar verdadeiramente graves. Maria Caeiro, engenheira agrícola que trabalha na Lezíria Grande, tem entre outras responsabilidades monitorizar os níveis de salinidade da água do Tejo que entra na propriedade. Como as terras estão abaixo do nível médio da água do mar, são circundadas por um dique de 67 quilómetros e a irrigação dos terrenos é feita por gravidade. Abrem-se e fecham-se as comportas ao rio à medida das necessidades da rega.

No verão desse ano, a Estação Elevatória do Conchoso, já 50 quilómetros a norte de Lisboa, marcava três gramas de sal por litro de água. "Era algo de imaginável, ultrapassarem um grama", diz Caeiro. "Tivemos de fechar as comportas."

A Lezíria Grande também é uma espécie de ilha, uma enorme Manhattan onde numa frente circula o Tejo e na outra o Sorraia, um dos seus afluentes. "Quando não conseguimos ir buscar água de um lado vamos ao outro. Mas nem sempre é possível, porque o Sorraia tende a secar no verão", conta a técnica. Nesse 2005, por sorte, ambos os rios tinham água, mas a cunha salina avançava com tanta força que estava a subir o outro rio também. No dia 25 de agosto, os agricultores juntaram-se para fazer algo inédito. Todos os tratores da cooperativa foram mobilizados e ergueu-se uma barreira de terra no Sorraia, para que a água salgada que vinha do Tejo não pudesse avançar mais. Com esse garrote, salvaram-se pelo menos as culturas.

Em 2012, a salinidade ultrapassou os quatro gramas por litro e os produtores voltaram a levantar uma barricada ao sal. O mesmo aconteceu em julho de 2019 - o que fez estoirar polémica porque a medida foi tomada à revelia da Agência Portuguesa do Ambiente. "Tínhamos de fazer alguma coisa, ou perdíamos tudo", diz Joaquim Madaleno. "O que sabemos é que a salinidade é cada vez maior. Há picos inesperados e cíclicos, algo que nunca tinha acontecido antes. As alterações climatéricas estão a matar o maior rio da Península Ibérica a uma velocidade alarmante. E toda a gente continua de braços cruzados, à espera que o assunto se resolva sozinho."

Ao final da tarde, velejadores e pescadores ribeirinhos costumam juntar-se na esplanada do clube náutico da povoação de Alhandra, em Vila Franca de Xira, para atualizar as novidades da faina. Aqui há muito que deixou de ser novidade que as douradas, peixes de água salgada que desovam nos estuários dos rios, formaram uma colónia em Valada do Ribatejo, 70 quilómetros a norte de Lisboa.

"Ainda não os vi, mas já há pescadores a vê-los na Ponte de Muge, mesmo às portas de Santarém. As bogas e os safios, esses, é que já ninguém os apanha", diz Carlos Salgado, 80 anos, lobo velho do charco e fundador da mais antiga ONG de defesa do rio, a Associação dos Amigos do Tejo. "Há dias ligaram-me porque deram com alforrecas na Azambuja. E eu, que ando nestas águas há 65 anos, nunca vi uma coisa destas."

Na última década, os pescadores viram a amêijoa japonesa instalar-se no estuário, a corvina e o siluro a tomarem o rio - e um estudo do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, laboratório de investigação da Universidade de Lisboa, alertava em 2017 para o facto de, das 64 espécies que habitam a bacia do Tejo, 19 serem exóticas. Quando os pescadores vêm as douradas em Valada, quando os agricultores da Lezíria registam quatro gramas de sal por litro no Conchoso, é inevitável que se coloquem uma pergunta: quanto tempo falta até os cidadãos que vivem na área metropolitana de Lisboa terem água salgada a escorrer das torneiras?

Há essencialmente dois pontos de captação de água para abastecer a capital portuguesa: a barragem de Castelo de Bode, no rio Zêzere, e a estação de Valada, no Tejo. A primeira assegura 80 por cento das necessidades, a segunda 20. Mas a importância estratégica de Valada é maior do que parece: se houver contaminação na fonte principal (e em 2017 temeu-se que isso acontecesse por causa dos incêndios que assolaram a região e provocaram deslizamento de matéria orgânica para a água), aquela é a principal alternativa.

Foi em Valada do Ribatejo, 70 quilómetros a norte de Lisboa, que foram feitas as primeiras captações de água do Tejo para abastecer a cidade - e o facto revelou-se de tamanha importância que o governo de Salazar decidiu em 1940 construir na Alameda D. Afonso Henriques uma enorme Fonte Luminosa para assinalar o facto-. A estação atual só seria construída 23 anos depois. "Nessa altura ninguém pensava que a salinidade pudesse chegar tão longe", diz António Carmona Rodrigues.

A Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL), que coordena o abastecimento de água à região de Lisboa, é peremptória em afirmar que a água em Valada não está em perigo. Num dia de visita às instalações, aliás, a empresa recrutou uma verdadeira comitiva para falar com os jornalistas. Vieram os diretores de comunicação, de operações e dos laboratórios da companhia, o responsável pela infraestrutura de Valada e a engenheira de ambiente que trabalhou nos estudos sobre os perigos que a salinidade poderia trazer àquela estação de captação. A EPAL empenhou-se em mostrar que o abastecimento das torneiras está garantido.

Em 2012 a EPAL encomendou um estudo sobre os perigos que as alterações climatéricas poderiam causar no abastecimento e captação de água às populações. Chamava-se Adaptaclima, foi comandado por António Carmona Rodrigues e teve em Vanessa Martins, a engenheira do ambiente, uma das operacionais que trataram os dados.

"Colocámos várias conjunturas em cima da mesa quando falámos de salinidade", explica Martins. "O pior cenário possível mostrava uma subida do nível do mar extrema e uma descida do caudal do rio para metade até ao final do século. Ainda que isso acontecesse, a cunha salina permaneceria ainda a cinco quilómetros de Valada."

Mas o aumento de salinidade no rio também preocupa a EPAL. "Mas claro que o sal é um problema", constata Francisco Serranito, diretor de operações da empresa. "No final do relatório de 2012 havia indicações para que os estudos fossem atualizados regularmente, porque as alterações climáticas provocam mudanças grandes e rápidas. Queremos ainda este ano lançar um novo Adaptaclima para percebermos, entre outras coisas, a evolução da cunha salina."

A cinco quilómetros de Valada fica a estação onde a água é tratada, Vale de Pedra. Foi remodelada há dois anos, é uma infraestrutura moderna. "Medimos ao segundo a condutividade da água, para perceber os níveis de sal", diz Luís Bucha, responsável por estas instalações.

O diretor dos laboratórios, Rui Neves Carneiro, atira isto: "Se os níveis de salinidade ultrapassassem os piores cenários que prevemos, teríamos de construir uma unidade dessalinizadora para a água doce continuar a chegar às torneiras de Lisboa. Isso encareceria os custos, obviamente, e ninguém quer esse futuro. Mas temos consciência de que, ainda que não estejamos hoje em risco, podemos vir a estar." A contenção da cunha salina não vai poder esperar muito mais tempo.

A história daquilo que falha na foz de um rio começa normalmente no lugar onde ele nasce, o que no caso do Tejo fica 1,038 quilómetros a montante - nuns montes de calhaus na serra de Albarracín, em Aragão.

As barragens de Entrepeñas e Buendía, uma centena de quilómetros a jusante, são as primeiras onde se consegue medir a disponibilidade de água na nascente. Em 40 anos, o Tejo perdeu metade da água na cabeceira por efeito direto das alterações climáticas, nomeadamente por causa do aumento das temperaturas e da diminuição das precipitações.

Ao longo do percurso, os afluentes voltam a engordar o leito, mas os homens condicionam o curso da água com barragens, transvases e centrais nucleares. "O Tejo também perdeu um quarto da pluviosidade em 20 anos", reconhece o ministro do ambiente português João Pedro Matos Fernandes. "É bastante claro que temos um problema." Há outros rios na Europa a perderem caudal de água, nomeadamente o Reno. Mas nenhum ao ritmo do Tejo.

Há dois anos, um grupo liderado pelo engenheiro hidráulico Jorge Froes apresentou ao governo um plano de irrigação da bacia do rio que previa, entre outras coisas, a construção de cinco açudes para travar a invasão salina. O Projeto Tejo causou revolta entre associações ecologistas como a Zero ou a Geota, que o classificaram como "um potencial desastre ambiental". Ainda assim, o ministério da agricultura português prometeu lançar um concurso para avaliar o impacto do mesmo ainda em 2020.

O ministro do ambiente Matos Fernandes diz que não aprova a contra a construção de mais barreiras. Não gosta deste plano, e tem outro. "A única forma de regularmos o caudal do rio é construirmos uma barragem no rio Ocreza, junto à fronteira com Espanha, apenas com fins ecológicos, para mantermos um fluxo homogéneo de água doce." Diz-se consciente de que um enorme reservatório terá impacto ambiental, mas é urgente avançar com medidas. "Os estudos de viabilidade arrancarão ainda em 2020", promete. Seja como for, nenhuma solução virá sem novos custos ambientais.

No seu último troço, o Tejo já não consegue disfarçar as falhas que acumulou ao longo do percurso. À chegada a Portugal, a água do Tejo é cada vez menos, e esse é o ponto fundamental que faz os pescadores e agricultores na região de Lisboa levarem as mãos à cabeça. E depois há isto: um transvase que desvia uma grande parte da água na nascente para regar milhares de hectares de frutas e hortaliças no Levante espanhol, uma sucessão de barragens mesmo antes da água passar para Portugal, fábricas e indústria que poluem o pouco que existe.

Oiçam-se dois ambientalistas, um de cada lado da fronteira. Paulo Constantino, do movimento português ProTejo, diz que "a grande estrada fluvial ao longo da qual se estabeleceu quase metade da população da Península Ibérica tornou-se um caminho de cabras que já ninguém quer atravessar." Miguel Ángel Sanchéz, da espanhola Plataforma em Defesa do Tejo e , diz que "até aos anos sessenta o rio era um rio, mas obrigámo-lo a trabalhar como uma besta. E agora o Tejo está morto."

Mesmo antes de chegar a Portugal, o Tejo deixa de ser um curso natural para transformar-se numa sucessão de cinco barragens para produção hidroeléctrica. A Convenção de Albufeira determina a quantidade mínima de água a transferir entre os dois países, mas a irregularidade dos caudais faz estragos nos ecossistemas e causa a revolta das populações da raia.

"Há dias em que só me apetece chorar", diz Joaquim Pinto, 52 anos inteiros a viver de um rio que "já não presta". Nas aldeias do lado português da fronteira, a vida sempre correu ao ritmo do Tejo. Só que, agora, ninguém consegue entender a corrente. Quando a água sobe, vem com tanta força que os homens nem conseguem largar as barcas. "Mas na maioria das vezes a maré está tão baixa que rebentamos os cascos nas pedras que há no fundo. Já não se consegue lançar as redes ao peixe", lamenta o homem. "E mesmo quando o fazemos, vêm vazias. O peixe já não sobe."

Ortiga é uma povoação do concelho de Mação, junto à pequena barragem de Belver, a 68 quilómetros de Espanha. Os seus 450 habitantes viviam tradicionalmente da pesca até à viragem do milénio, sobretudo da lampreia - que entre janeiro e abril trazia centenas de pessoas de toda a região para apanhar a espécie rainha do Tejo. "Nessa altura havia aqui 50 famílias a ganhar a vida no rio. Hoje somos só três ou quatro", diz Francisco Pinto. Com as subidas e descidas súbitas do caudal, o peixe desapareceu. E a riqueza desapareceu com ele.

Para Francisco, as coisas começaram a piorar em 1998, quando Portugal e Espanha assinaram a Convenção de Albufeira, um acordo que regula o montante e periodicidade da água que atravessa a fronteira. Antes, a regulamentação baseava-se num acordo de 1912, que foi renovado em 1968, e dividia a disponibilidade de água a meias: da água dos reservatórios, a capital espanhola mantinha metade e enviava os restantes 50% para Lisboa. O pescador confessa que, pelo menos nessa altura, "o Tejo era o Tejo".

Todos os anos, Mação organiza um Festival Gastronómico da Lampreia, que durante dois meses traz gente de Portugal inteiro à Ortiga. "Temos centenas de pessoas a virem comer o nosso arroz e o maior atrativo de todos é sermos nós a pescar os nossos próprios produtos", diz Pinto, que além de pescador é proprietário da Lena da Barragem, um restaurante encostado às margens do rio. "Nestas alturas gastamos umas vinte lampreias por dia. Mas sabe quantas consegui apanhar este ano, durante toda a campanha? Nem uma." A época de captura da espécie corre de janeiro a abril.

É tendência que se acentuou na última década: em vez de irem ao rio, as gentes da região passam as semanas a tentar comprar pescado noutras geografias, porque aqui ele já não chega. "Este ano safei-me com um produtor de Bordéus, mas a lampreia não tinha a mesma qualidade e cheirava mal", constata. "Continuava a ir ao rio todas as manhãs e nada, nem lampreia, nem bogas nem sável. A água do rio está sempre a subir e a descer e os animais já não sobem para desovar."

E atira com sabedoria do terreno: "A pesca desapareceu, os restaurantes vão fechando, o turismo não funciona porque o caudal é irregular e as praias fluviais estão cheias de lodo. Já não temos a mínima hipótese de sobreviver aqui."

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Os problemas da Ortiga têm origem uns quilómetros a montante, sobretudo zona da fronteira. "Quando chega à [região espanhola da] Extremadura, o Tejo já não existe como rio. São cinco grandes barragens que acumulam mais de 5.000 hm3 de água onde não há sequer um metro seguido de bosque fluvial", critica o ecologista espanhol Miguel Ángel Sanchez, porta-voz da Plataforma em Defesa dos rios Tejo e Alberche.

"São grandes instalações de armazenamento de água que, junto com a central nuclear de Almaraz, representam um negócio formidável para a Iberdrola, o operador hidroeléctrico. As aldeias, as pessoas, não importam: esta é uma reserva de para produzir dinheiro e lucros", diz.

Azután é o primeiro de cinco reservatórios geridos pela Iberdrola, que se seguem uns aos outros até à fronteira com Portugal. Fica a dez quilómetros de Talavera de la Reina, na província de Toledo. "A água chega limpa aos reservatórios de Madrid mas daí para baixo está em péssimas condições", explica Sánchez.

Depois de na cabeceira o Tejo já ter perdido uma uma grande parte do caudal, desviado por um transvase para irrigar o sudeste de Espanha, o rio mais longo da Península Ibérica volta a sofrer grandes pressões quando chega à capital espanhola. "Os afluentes do Tejo ficam aqui retidos para abastecer a população da capital e ter uma reserva de garantia para os anos secos. Mas quando as estações de tratamento de águas residuais devolvem a água ao rio, ela vem com má qualidade", diz.

A partir de Azután, os terrenos montanhosos e as precipitações garantiriam à partida um novo fôlego ao Tejo. Mas é precisamente a partir deste ponto que o rio perde o seu curso natural para se transformar num mar de represas sucessivas. Desde a década de 1950 que a hidroeléctrica espanhola Iberdrola - nessa altura, chamava-se Iberduero - tem a concessão para utilizar a água num um trecho de quase 300 quilómetros desde esta barragem até à fronteira portuguesa.

Para além deAzután, a Iberdrola gere Valdecañas, Torrejón-Tajo, Cedillo e Alcântara. Entre as cinco barragens, a produção média anual é de 2.180 gigawats por hora (Gwh). Só Alcântara, a maior de todas, produz uma média de 1.038,06 Gwh. Isso significa que, só ela, tem capacidade de fornecer o dobro da energia que a região da Extremadura inteira precisa. A barragem, aliás, tem capacidade de reter 3500 hm3 de água, mais 800 hm3 do que Espanha está obrigada a passar anualmente a Portugal.

"Quando a barragem foi construída, não faltava emprego. Vieram umas três mil pessoas trabalhar para aqui nessa altura", diz Manuel Magro por detrás do balcão do Café Lisboa, bem no centro da aldeia de Alcântara, a um par de quilómetros da barragem. Tem 72 anos e diz-se em plena forma. "Gosto de estar com as pessoas", confessa, e a maneira como se mexe parece dar-lhe razão. Mostra várias fotos de quando era jovem, nas terras agrícolas que entretanto foram tomadas pelo charco, e outras de como era o Tejo antes da construção daquele pântano gigante. "Era uma terra viva, esta. Agora a central eléctrica é altamente automatizada e controlada a partir de Madrid. No bairro não há hoje mais de 50 trabalhadores".

O bairro a que Manolo se refere é um aglomerado de casas construído para acolher os trabalhadores da Iberdrola que trabalham na central hidroelétrica. Está localizado mesmo no topo da barragem e tem vista para duas espetaculares obras de engenharia: a atual barragem, inaugurada em 1969, e a ponte romana, construída entre os anos 103 e 104. Apesar de terem um mar

de água doce ali ao lado, os habitantes de Alcântara extraem água furos para regar os campos. E sentem que aquela enorme estrutura não lhes trouxe nada de bom. "Desde que o campo nos roubou os melhores campos de cultivo, vivemos do turismo nacional mais alguns portugueses que de vez em quando vêm aqui parar", queixa-se Manolo. "A pandemia está a criar muitos problemas e a única coisa que para oferecer é um reservatório que não nos serve de nada."

Uma boa parte da água retida na barragem de Alcântara atravessa o Parque Nacional de Monfragüe, um dos maiores tesouros naturais da bacia do Tejo. Como é deste reservatório que se regula e transfere a água que passa para Portugal, as subidas e descidas do caudal são constantes e têm um grande impacto sobre várias espécies que aqui vivem. Nomeadamente esta: a cegonha negra.

"É uma ave que nidifica junto às margens do rio, em quotas muito baixas, e quando as oscilações do caudal se acentuam, podem levar à inundação dos ninhos", explica Marcelino Cadalliague, delegado na Extremadura da mais antiga ONG ambientalista de Espanha, SEO Birdlife.

O Salto del Gitano, ou Salto do Cigano, é um lugar popular para observar aves em Monfragüe. Aqui, as cegonhas-negras vão sobrevoando o rio de rocha em rocha. Não há muitos lugares na Europa onde se possa vê-las também - são animais discretos. Ameaçadas de extinção, são "a estrela de Monfragüe", nas palavras de Cadalliague. "Mas as crias correm risco de morte de cada vez que a água sobe demasiado depressa, porque os ninhos são baixos".

Explica que as variações do nível de água se estão a agudizar. "As alterações climáticas criam este facto: a precipitação é cada vez mais irregular, mais intensa em curtos períodos de tempo. Está a tornar-se cada vez mais difícil fazer previsões para o futuro. Por outro lado, o aumento da temperatura faz aumentar o consumo de electricidade, especialmente no verão, e estão a levar a uma gestão cada vez mais agressiva dos caudais."

No final de Junho, a água do rio parecia uma sopa verde. É causado por uma microalga que ocorre em águas paradas e excessivamente carregadas de nutrientes das quintas. Para piorar as coisas, faz-se sentir um calor intenso. Desde Maio, a água foi invadida por outra alga invasor: a azolla. "Temperaturas cada vez mais elevadas, água estagnada e a contaminação que a agricultura e a pecuária trazem indiretamente criaram aqui uma tempestade perfeita", diz o homem. A jóia natural do Tejo está debaixo de uma pressão insuportável.

A tarde cai e a tranquilidade toma conta da barragem de Alcântara. Não há uma única alma em redor e o silêncio é total. Isso também significa uma coisa: que a enorme estrutura de betão não está neste momento a libertar qualquer água para o outro lado da fronteira. Segundo a Convenção de Albufeira, o acordo que rege os rios internacionais na Península Ibérica, Espanha tem de passar anualmente 2700 hectómetros cúbicos (hm3) de água do Tejo para Portugal.

No último ano hidrológico, que correu de outubro de 2018 a setembro de 2019, Madrid tinha libertado apenas 1900 hm3 até ao final de julho. E então, para cumprir o protocolo, largou 800 hm3 de água em apenas cinco semanas, esvaziando a última barragem do lado espanhol, Cedillo, e secando os afluentes que garantiam o caudal ecológico do rio em Portugal.

Em outubro, o Tejo estava seco e atravessava-se a pé junto ao castelo de Almourol, já a meio caminho da foz. "Com as alterações climatéricas e o prolongamento dos verões as secas são cada vez mais extremas", diz Paulo Constantino, porta-voz do proTejo - Movimento pelo Tejo. "A irregularidade com que o caudal passa está a piorar o que já era gravíssimo. Toda a economia do rio, à volta do qual se concentra metade da população da Península, está hoje em causa."

O ambientalista português é um crítico feroz do acordo de Albufeira. "Há 2700 hm3 acordados entre os dois países, que na maioria dos anos têm sido cumpridos." Até 2008, cabia a Madrid decidir quando libertava a água, a partir daí os países estabeleceram passar 7hm3 semanalmente e um valor trimestal que varia entre os 130 e os 350 hm3. "O problema é que o acordo só regula a passagem de 37% da água. Não há valores diários que permitam assegurar um caudal ecológico e a decisão de transferência de 67% da água cabe a um único país. E é por isso que a água às vezes vem com uma força danada e na maioria das vezes chega sem força nenhuma. Aqui morremos de sede", queixa-se Paulo Constantino.

Portugal e Espanha concordam, no entanto, que o acordo estabelecido em 1998 em Albufeira satisfaz as duas partes. "Acredito que é um convénio exemplar, e confirmo-o sempre que o explicamos ao resto do mundo", diz Teodoro Estrela, Diretor Geral da Água de Espanha. "Mas seguramente que no futuro teremos de ajustá-lo, tanto ao nível dos indicadores como dos volumes de água." João Pedro Matos Fernandes, ministro do ambiente português, diz não ter qualquer interesse em rever o convénio. "Se pensarmos que o Tejo perdeu 25 por cento do caudal em duas décadas, percebemos que qualquer negociação vai começar neste ponto: há menos água, por isso Portugal tem de receber menos. E isso não nos interessa."

Os ambientalistas dos dois lados da fronteira lamentam a atitude de Lisboa - e não entendem como Portugal desistiu de lutar por uma maior regularidade da água que passa para o lado português. "Tentaremos reforçar os caudais semanais nas próximas negociações, mas parece-me mais importante que a água que nos chegue tenha boa qualidade, algo que hoje não se passa", diz Matos Fernandes, criticando o tratamento dos esgotos feito à saída de Madrid. Teodoro Estrela admite as culpas, justifica-se com a antiguidade das estações de tratamento. E promete recuperá-las.

Espanha recusa a crítica de que seja a Iberdrola a gerir a água do Tejo. "O setor hidroelétrico está sempre sujeito ao superior interesse da bacia do rio", diz Estrela. "A Iberdrola tem a autonomia que pode ter dentro de um plano de gestão integrada da bacia. Em determinadas situações, como nos períodos de seca, tem de cumprir o que lhe diga a administração geral."

A hidroelétrica espanhola defende-se: "As acções realizadas pela empresa respondem aos compromissos estabelecidos entre o Reino de Espanha e a República Portuguesa". E sublinham que colaboram "com o cumprimento desta obrigação e entregam o volume de água estabelecido em cada período" em coordenação com as administrações competentes e sob a supervisão da Confederação Hidrográfica do Tejo.

O governo de Portugal também recusa apontar o dedo às elétricas espanholas e prefere resolver o problema do seu lado. "Ainda este ano lançaremos um estudo de impacto ambiental para construir no rio Ocreza, do nosso lado da fronteira, uma barragem com fins ecológicos, que resolva as intermitências atuais", promete Matos Fernandes.

"Não se compreende como um rio internacional continue a ser gerido por dois governos com planos diferentes", responde Paulo Constantino, ambientalista da proTejo. "O Tejo é uma única entidade, e tem de ser visto como um todo. Ao dividí-lo, está a ser assassinado aos bocadinhos." Cita o exemplo do Danúbio, cujo plano de gestão é feito em comum por 14 países.

Na raia, o povo interroga-se como é um rio pode ser gerido aos soluços. "Aqui temos tanta água parada que ela evapora com o sol, e todos sabemos bem que ela não está a chegar em condições a Portugal", sentencia Manolo, o proprietário do café Lisboa, em Alcântara. E está certo que ele não conhece Francisco Pinto, o pescador de Ortiga que deixou de conseguir apanhar lampreias. Mas há isto: um está a viver à beira de um mar de água doce do qual quase não obtém qualquer benefício, e o outro vive na margem de um rio que nunca sabe quando vai correr. Na fronteira, o Tejo mostra a tragédia que os homens lhe inventaram: a de como parar um rio.

Nos últimos 40 anos, a água que enche as barragens junto à nascente do Tejo ficou reduzida a metade. Um transvase continua a desviar água para o irrigar o sudeste de Espanha e o que sobra no caudal do rio mais longo da Península Ibérica já não chega para as necessidades. As alterações climáticas agravam ainda mais a crise de escassez de água.

"Tejo-Segura, nem uma gota a mais", lê-se no autocolante do vidro de um carro em Chillarón del Rey, uma das cidades ribeirinhas localizadas à volta de Entrepeñas e Buendía, as primeiras barragens que existem na cabeceira do Tejo. "As pessoas estão indignadas porque estamos muito perto do rio e temos muitos problemas de falta de água. E porque a estão a levar daqui, lamenta a presidente da junta, Maribel Díaz

No Verão, a população desta aldeia de Guadalajara multiplica-se por seis - no Inverno não chega a 50 - e um depósito de água não é suficiente para todos tomarem banho ou cozinharem. "Têm de nos fornecer camiões-cisterna vindos das aldeias vizinhas", explica a autarca. É um paradoxo, considerando que se encontram a quilómetro e meio de Entrepeñas, uma enorme barragem com capacidade para 835 hectómetros cúbicos (hm3), ou seja, suficiente para abastecer uma população de mais de quatro milhões de habitantes durante um ano .

Em 1979, a construção do transvase Tejo-Segura, que leva água daqui ao Levante espanhol, operou um pequeno milagre. Converteu milhares de hectares de terras quase desérticas nas províncias de Alicante, Almeria e Múrcia num oásis de cultivo de frutas e legumes - e contribuiu decisivamente para que a Espanha fosse considerada a horta da Europa. Passados quarenta anos, a água que enche os reservatórios na cabeceira do Tejo é muito menos. Os volumes de água retidos nos reservatórios antes da criação do transvase, quando esta área era conhecida como "os mares de Castela", não voltaram a verificar-se.

"Antes do transvase, tínhamos mais de quinze nascentes de água. Agora só nos resta uma", diz Maribel Díaz. "A extracção de água da barragem é muito cara porque envolve muito tratamento e os altos e baixos do caudal requerem um sistema de bombagem muito complexo. É por isso que temos um poço", diz ela. O reservatório que utilizam funciona como uma esponja: absorve tudo, mesmo a água das nascentes à sua volta.

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"Nos últimos 40 anos tem havido uma redução muito clara de água na nascente do Tejo", explica Teodoro Estela, director-geral da Água de Espanha. O chefe da gestão dos recursos hídricos do Ministério de Transição Ecológica está preocupado com um problema que afecta directamente cidades ribeirinhas como Chillarón del Rey, mas também os regantes que usam o transvase Tejo-Segura e muitas outras povoações que cresceram ao longo de mais de 1.000 quilómetros por onde o rio corre, entre Espanha e Portugal.

Entre 1958 (quando Entrepeñas e Buendía entraram em funcionamento) até 1980 (quando o transvase começou a operar), a entrada média de água nas duas barragens foi de 1437 hm³. A entrada média de 1980 a 2019 foi de 737, segundo dados do Centro de Estudios y Experimentación de Obras Públicas (CEDEX) e da Confederación Hidrográfica del Tajo. Por outras palavras, nos últimos 40 anos, a água que atingiu a cabeceira do Tejo reduziu para metade. Esta queda faz parte do fenómeno conhecido como efeito 80.

"O Tejo, como muitas outras bacias do nosso país, tem cada vez menos água. Estamos a viver os riscos climáticos de uma forma muito clara e os modelos de simulação hidrológica dizem-nos que vamos ter cada vez menos recursos hídricos. Isso significa que temos de gerir o rio com mais cuidado", adverte Teodoro Estrela.

"As temperaturas máximas e mínimas aumentaram. No que diz respeito à precipitação, em termos gerais pode dizer-se que há uma redução significativa. Ambos os factores afectam indirectamente a água disponível", esclarece Ernesto Rodríguez, responsável pelas projecções climáticas na Agência Estatal de Meteorologia espanhola (AEMET). "Quanto mais alta for a temperatura, mais evapotranspiração acontece [a água que vai para a atmosfera através da evaporação e transpiração das plantas] e mais seco fica o solo - o que significa que a terra absorve mais água e não a liberta para os rios. Portanto, num cenário de maior calor e menor chuva, isto traduz-se em menos escorrimento - a água que não é absorvida pelo solo e acaba no leito do rio".

"Mesmo que os gestores não tivessem uma bola de cristal para ver o que o futuro poderia reservar, quando os reservatórios atingissem 60% da sua capacidade deveriam ter sido mais cautelosos", argumenta Antonio De Lucas Sepúlveda, engenheiro civil e autor de uma tese de doutoramento na qual faz uma análise exaustiva do transvase e da gestão da bacia do Tejo. "Não se aperceberam da redução das entradas de água e continuaram a permitir as saídas usando os números anteriores a 1980, que foram anos particularmente húmidos. A partir de 1979, começou um período de seca", assinala.

Dependendo do volume de água que exista em Entrepeñas e Buendía no início de cada mês, uma quantidade máxima anual de 650 hm3 pode seguir para o transvase Tejo-Segura. As barragens de Entrepeñas e Buendía têm uma capacidade máxima anual de mais de 2.500 hm3. Mas, em 40 anos, a média anual de água transferida foi de apenas 325 hm3 - e o único ano hidrológico em que mais de 600 hm3 foram transferidos foi em 2019-2020, com 620. Desde 1979 até junho de 2020, as barragens de Entrepeñas e Buendía juntas têm uma média mensal de 749 hm3 de água.

O resto, até um máximo de 365 metros cúbicos por ano, segue o curso do rio até à região de Madrid - segundo um decreto real de 2014. "Quando o Tejo passa por Aranjuez [Madrid], chega muito esgotado. Temos um problema muito sério com a redução da água, e se a isto acrescentarmos um transvase que leva quase 100% da água que chega à cabeceira, vemos que estamos a caminhar para um cenário de um rio praticamente morto", critica Miguel Ángel Sánchez, porta-voz da Plataforma em Defesa dos Rios Tejo e Alberche.

"Temos de começar a tomar conta do Teajo. Devolver-lhe a água e, é claro, aplicar urgentemente soluções no Levante. As alterações climáticas não respeitam ninguém. O Tejo está morto neste momento e a transferência de água está condenada", diz Sánchez.

Um trabalho hidráulico colossal de aquedutos, canais e túneis subterrâneos cumpre uma distância de 292 quilómetros para transportar água da cabeceira do Tejo para o coração da horta da Europa. "Sou o filho das amendoeiras", diz José Vicente Andreu, 56 anos, ao mostrar-nos a terra que trabalha desde 2010, quando se tornou um produtor agrícola especializado em citrinos. A vedação que delimita a propriedade de Villamilagros, na região de Alicante, é como uma linha do tempo. No exterior, uma grande extensão de terra árida e antiga, na qual só podem crescer árvores de fruto secas, como amendoeiras; no interior, 20 hectares de cultivo de clementineiras e laranjeiras irrigadas com água do transvase.

Este engenheiro agrícola pertence à quinta geração de uma família de agricultores de Torremendo, uma povoação na região de Vega Baja del Segura, em Valência. A água proveniente do transvase traçou-lhe um destino diferentes dos seus progenitores. "Os meus pais cultivavam trigo, cevada, azeitonas, amêndoas... Pura subsistência".

"Posso sustentar-me porque mudei para a agricultura biológica, com cada vez maior procura na Europa", enfatiza José Vicente, que cultiva terras alugadas a agricultores que se reformam porque não têm descendência que queira trabalhar a terra. Ou simplesmente porque o esforço não compensa: "Os preços não lhes parecem competitivos e os rendimentos não os compensam pelo aumento dos custos, tais como água dessalinizada para irrigação".

No total, tem 150 hectares e produz anualmente cerca de 2.000 toneladas de limões orgânicos, toranjas, tangerinas, bem como vários hectares de amêndoas e azeitonas. Como a maioria dos empresários agrícolas nas terras irrigadas pela transferência, José Vicente exporta uma grande parte da sua colheita para países europeus. Durante anos, a Espanha foi o principal produtor de fruta e o segundo maior produtor de vegetais de entre todos os estados membros - com 40% do total e 17,3%, segundo dados do Eurostat em 2017 - e vende 93% da sua produção para o mercado europeu para exportação.

À exceção deste Inverno, os 80.000 regantes que, como José Vicente, fazem uso da água do transvase sofreram longos anos de seca. Durante o ano hidrológico de 2013-2014 - um período de 12 meses de Setembro a Outubro do ano seguinte - e até Setembro de 2019, tiveram de irrigar com uma elevada percentagem de água dessalinizada, uma vez que não havia suficiente água doce a ser transferida da cabeceira do Tejo.

"Entre 2013 e 2015 passámos 18 meses sem ver chuva", acrescenta. Olha para baixo quando recorda a campanha de 2017-2018, que foi particularmente dura: "Metade da água que usávamos para irrigar esta quinta foi dessalinizada, e o custos de produção duplicaram em relação aos anos em que usávamos água doce". Antes da seca, a irrigação dos 20 hectares de culturas significava um gasto de cerca de 30.000 euros por ano, mas desde que começaram a utilizar 50% de água dessalinizada, o custo subiu para cerca de 70.000 euros.

Os efeitos da seca foram agravados por uma onda de calor de quatro dias em Maio de 2018 que afectou gravemente a colheita. "O pequeno limão, que ainda estava a amadurecer, começou a morrer. Perdi 40% da colheita, cerca de 300 toneladas [150.000 euros]", lamenta. "Há também ondas de calor em meses como Novembro ou Fevereiro, com dias em que as temperaturas excedem os 30 graus". Nestas alturas do ano, são as laranjas que sofrem com as alterações climáticas: florescem como se fosse Primavera, amadurecem antes do tempo mas são de má qualidade e não têm escoamento no mercado.

As situações climáticas descritas pelo agricultor de Alicante coincidem com alguns dos efeitos reais do aquecimento global que especialistas como Mar Gómez, chefe de meteorologia em Eltiempo.es, têm vindo a explicar há algum tempo: "Em Espanha estamos a caminhar para a desertificação na maior parte do território e a costa mediterrânica é uma das mais vulneráveis às alterações climáticas. Nos próximos anos vamos encontrar climas mais áridos, semi-áridos e sub-húmidos, e a parte mais árida será no sudeste da península, especialmente nas bacias do Júcar e Segura, que são áreas onde vamos ver o maior défice de precipitação".

A barragem de La Pedrera fica a cinco minutos de carro da propriedade de José Vicente Andreu. A cor do chapéu do produtor de citrinos confunde-se com o azul turquesa de um corpo de água com uma capacidade de armazenamento de 250 hm3. "Quase metade da água do transvase Tejo-Segura chega a este reservatório e é misturada com a água da central de dessalinização de Torrevieja", explica. A partir daqui, é distribuída essencialmente pelas comunidades de irrigação localizadas na zona de La Pedrera (cerca de 30.700 hectares brutos de rega), como a de José Vicente, e Campo de Cartagena (33.079).

"A água salgada praticamente não tem minerais, e as plantas precisam deles para se alimentarem. É por isso que tem de ser misturado com água doce", queixa-se o agricultor, embora este não seja o seu principal problema. Em comparação com os 30 cêntimos que paga por um metro cúbico de água do transvase, os mesmos mil litros de água dessalinizada custam-lhe 80 cêntimos. "Não obtemos lucro suficiente para podermos pagar esses preços", acrescenta ele. Ao preço estabelecido pelo Estado para a água do transvase e da dessalinização, cada cooperativa de regantes acrescenta um preço associado à manutenção das infra-estruturas.

De acordo com os seus cálculos, José Vicente só vai precisar de 15% de água dessalinizada até ao final deste ano hidrológico, porque este inverno choveu bem. Mas a tendência para utilizar a água dessalinizada como recurso de irrigação alternativo ao transvase está a aumentar. E não só devido às alterações climáticas que apontam para um futuro com menos chuva e temperaturas mais elevadas, mas também para evitar a sobrexploração dos aquíferos.

Uma investigação da Datadista de 2019 revelou como as águas subterrâneas têm sido sobrexploradas durante décadas para irrigar as terras da bacia do rio Segura. Abrir poços era uma forma de não só suprir as necessidades durante os anos de seca, quando não havia água suficiente a descer o transvase, mas também nos anos em que tiveram um abastecimento que vinha do Tejo era ótimo.

Em 2005, o Governo espanhol elaborou um novo Plano Hidrológico Nacional que cancelou o anterior, com o fim de pôr fim à sobreexploração dos aquíferos e promover a água dessalinizada como recurso hídrico alternativo face à necessidade de água doce.

"Dos 80 hm3 que somos capazes de dessalinizar, quase 90% da nossa produção é destinada à rega", diz Javier Zapatera, gestor da fábrica de dessalinização de Torrevieja, a maior da Europa e propriedade do estado espanhol. Desde que começou a operar em 2015 para aliviar a escassez de água devido à seca, produziu um total de 230 hectómetros cúbicos, dos quais 193 foram para irrigação e 36 para abastecimento humano. "Pediram-me 250 hm3 para o próximo ano, mas não temos essa capacidade", diz Zapatera. A empresa pública que gere esta fábrica já abriu um concurso público para expandir a fábrica e aumentar a capacidade de produção para 120 hm3.

Para além de Torrevieja, quase dez instalações de dessalinização abriram nos últimos anos no Levante espanhol para abastecer a população e para a agricultura. As plantas Águilas e Valdelentisco são também públicas, e a maior parte da sua produção é utilizada para irrigação. Estão também em fase de expansão, tendo em conta o aumento da procura.

"Pode a dessalinização substituir o transvase? É claro. Agora, se aumentarmos o volume de água dessalinizada, o preço deixa de ser compatível com a agricultura no Levante", reitera Lucas Jiménez, presidente da União Central de Rega do Aqueduto do Tejo-Segura (Scrats). "Será isso tecnicamente possível? Sim, mas não só aqui, também na região de Castilla la Mancha, que se queixa da falta de água. Podemos criar aqui instalações de dessalinização e empurrar a água para onde quisermos", diz o representante da maior união de regantes em Espanha.

Há um ar combativo no seu tom. Jiménez luta há anos a nível político para defender a importância do transvase face às questões que se levantam sobre a sua viabilidade - por causa da escassez de água na nascente do Tejo e por causa dos efeitos das alterações climáticas. "O controlo que temos sobre a água não é saudável. Produzimos rentabilidade, mas lutamos contra a escassez e os preços exorbitantes da água. Regamos mais, sim, mas na bacia do rio Segura também reutilizamos cerca de 110-115 hm3".

"A reutilização da água na bacia do rio Segura fez grandes progressos, mas não pode ser a fonte alternativa de recursos", diz Teodoro Estrela, director-geral da Água. Para a Estrela, o foco deve estar em outras alternativas, tais como o uso de água dessalinizada. "Acredito que a dessalinização integrada, ligando diferentes instalações de dessalinização na mesma área, já contribui muito para resolver o problema da escassez".

Relativamente às críticas da SCRATS pelo elevado custo da água dessalinizada, Estrela afirma que é verdade que a sua utilização para irrigação custa mais do que a utilizada para abastecimento, mas sublinha que os custos da dessalinização têm vindo a diminuir consideravelmente. "Há alguns anos atrás falávamos de um custo de um euro por metro cúbico, mas reduzimos esse custo para metade".

A transferência Tajo-Segura é viável num futuro com maior escassez de água? "O que eu sei é que cada vez menos podemos desviar água para o transvase", responde Estrela.

A cerca de 200 quilómetros de carro de Entrepeñas e Buendía, a água que chega a Talavera de la Reina (Toledo), depois de passar por Madrid, vem pouca e de má qualidade. O Tejo começa a morrer aqui, ainda longe de Lisboa, onde o rio encontra o Atlântico. O maior rio da Península Ibérica não compreende as guerras políticas. Só precisa de mais água.

A série de reportagens 'Tejo: como matar um rio' foi investigada ao abrigo da bolsa Reporters in the Field, promovida pela associação n-ost e pela Fundação alemã Robert Bosch, e é publicada simultaneamente no Diário de Notícias, no jornal espanhol El País e no luxemburguês Contacto.

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