Freitas do Amaral: "O dia da morte de Sá Carneiro foi o mais triste da minha vida"
Ao lançar hoje do Centro Cultural de Belém Mais 35 Anos de Democracia - Um Percurso Singular, Diogo Freitas do Amaral acrescenta mais 400 páginas às mil que já publicou nas suas Memórias Políticas. Tal como nos dois volumes anteriores, não faltam "revelações", é o termo que utiliza, sobre o que refere nesta história de Portugal mais recente em que é o narrador, personagem e protagonista e na qual faz desfilar uma galeria de protagonistas e acontecimentos políticos que não tem fim.
O índice promete capítulos tão variados como picantes: a relação sempre presente com Cavaco Silva, a amizade com Mário Soares, a sua mudança partidária do centro-direita para o centro-esquerda, a participação no governo Sócrates; mas não esquece o atentado de Camarate que vitimou Sá Carneiro ou a polémica fatura da campanha das presidenciais e a teoria de conspiração sobre ter existido uma fraude nessas eleições, temas que quer deixar esclarecidos neste III volume das suas Memórias Políticas.
O livro não contempla a situação atual do CDS e do PSD, o futuro do governo PS e a praga da corrupção, daí que esclareça e preveja a evolução política dos próximos tempos nesta entrevista em que não se furta ao comentário sobre a atualidade.
Confessa ao DN que este será o seu último volume de memórias. Pergunta-se o que ficou por dizer? "Propositadamente, chamo-lhe Memórias Políticas, porque é do que trata. Não tem senão referências incidentais à minha vida pessoal e familiar ou muito de passagem à minha vida académica e obra de muitos volumes que publiquei como professor de Direito - é de facto só a vida política", diz. No ar fica um desejo: "Teria gostado muito de ter escrito um livro que se poderia chamar Memórias de Um Professor mas tenho tido uma vida muito cheia e não houve tempo."
Para o autor ainda existem muitos acontecimentos destas últimas quatro décadas e meia por clarificar: "Esclareci os que se passaram comigo e não quis entrar em temas alheios; contei principalmente aquilo em que participei ou de que tive conhecimento direto e assisti. O resto não, mas acho que há um conjunto de 'revelações' que são interessantes para quem se interessa por estas coisas." Acrescenta: "Senti que tinha muito para contar. A minha carreira é atípica e pouco frequente, portanto algumas das coisas que relato até poderão amanhã, quando houver historiadores imparciais, para fazer a história. Isso já aconteceu no primeiro volume, por exemplo o que se passou no Conselho de Estado entre 1974 e 1975, que tem sido utilizado por vários historiadores, e no segundo volume o que digo sobre as razões da queda do governo PS/CDS."
O regresso à liderança do CDS em 1987 foi o seu maior erro político?
No primeiro volume das Memórias tinha referido aquele que considerava o meu maior erro político cometido até essa altura, que era não ter entrado logo para o I Governo Provisório e ter criado o CDS só no final de julho, já com três meses de atraso em relação aos outros. Lembro-me de ir a muito sítios do país e responderem que "éramos muito simpáticos mas já demos o nome pelo PSD". O meu segundo erro político foi realmente o regresso ao CDS. Não tanto pelo partido porque, entretanto, consegui afastar a ideia generalizada de que iria acabar, no entanto não fui capaz de uma grande recuperação em termos de votos e só passámos de quatro para cinco deputados - o que era manifestamente pouco apesar de o arquiteto Gonçalo Ribeiro Teles me ter dito que tinha conseguido um aumento de 25%. O que eu queria era levar o CDS ao que fora antes e não foi possível. Nem do ponto de vista pessoal foi positivo pois foram quatro anos muito trabalhosos e difíceis e, depois de ter tido aqueles resultados tão elevados nas presidenciais, andar ali à frente de um pequenino partido com 4% não foi bom.
Esses tempos no CDS regressaram agora com o resultado nas eleições europeias?
Estou numa fase em que olho para a vida política portuguesa sem esta fazer referência alguma a mim. Olhei para o resultado, disse "confirma-se que o CDS está a descer um bocado" e fiz chegar a várias pessoas do CDS com quem continuo a dar-me o que acho: porque tem corrido mal e como dar a volta. Também fiz chegar a minha opinião relativamente ao PSD, embora continue a estar mais perto do PS do que do PSD por questões que têm que ver com justiça social. A verdade é que acho que era bom para o país que o PSD e o CDS não estivessem tão fracos! Recordo que em 1976, apesar da vitória retumbante do PS e de Mário Soares, o PSD e o CDS juntos tiveram 40% e agora não chegaram aos 30%. Há, de facto, ali uma crise.
É uma crise que esses partidos poderão ultrapassar?
Penso que sim, com o passar do tempo, mas não nas legislativas de outubro. Até porque o PS irá desgastar-se e o PSD há de recuperar - não sei se é com Rui Rio ou não, nem me pronuncio sobre isso - mas é perfeitamente natural que mais dia, menos dia o PSD comece a recuperar e possa assumir a alternância. Não será imediato, porque neste momento o governo tem ótimos resultados para apresentar e tem feito uma governação moderada e equilibrada, não perseguiu ninguém e está numa posição charneira. Só que estas situações não duram eternamente, não sabemos é prever quanto tempo falta para o desgaste do PS ou recuperação do PSD e as coisas mudem.
Existe ao longo destas Memórias uma omnipresença de Cavaco Silva, ora como primeiro-ministro ou Presidente da República. Confirma?
Sim, é verdade. É preciso não esquecer que a síntese que ele e os amigos fazem da sua vida política é a fórmula matemática de 10+10. Dez anos de primeiro-ministro, dez de Presidente da República - o que nenhuma outra pessoa teve - e até como presidente do PSD, em que interagiu várias vezes comigo. Primeiro ao desafiar-me para que me candidatasse à Presidência da República, prometendo o seu apoio mesmo que o PSD o não fizesse; fez campanha comigo nos sítios mais importantes; teve a gentileza de me fazer a seguir um convite para embaixador em Washington se estivesse interessado em sair de Portugal durante algum tempo - na altura não pude; e quando estava a acabar os dez anos como primeiro-ministro pediu a Durão Barroso para me convidar para ser o candidato português a presidente da Assembleia Geral da ONU. E depois há a vida partidária, pois entre 1988 e 1991 regressei ao CDS e tive de o enfrentar como líder do governo. Foi muito difícil para mim ultrapassar certas barreiras que ele e a sua gente - do governo e do partido - foram colocando para não deixar o CDS crescer, porque se tal acontecesse o PSD perderia a maioria absoluta. Efetivamente conseguiram, como conto neste livro, o que se tornou para mim uma grande dificuldade. De facto, houve uma presença que se não foi constante foi muito repetida, menos quando foi Presidente da República. Aí chamava-me poucas vezes e eu também só lhe pedi uma ou duas vezes para falar com ele. Enfim, foi um pouco mais distante mas ainda agora a propósito destas memórias, por ter declarações de todos os outros presidentes - Eanes, Soares e Marcelo -, escrevi-lhe um cartão a solicitar que não fosse o único ausente. E três dias depois telefonou-me: "Já escrevi, tenho muito gosto em enviar amanhã." Portanto, não posso deixar de ter em consideração estas atitudes. Nunca fomos amigos íntimos mas houve sempre uma certa cumplicidade. Creio que ela nasceu naquele ano em que fomos ambos ministros de Sá Carneiro, quando o apoiei em Conselho de Ministros em várias situações que não eram fáceis e ele também o fez por mim. Foi um ano muito difícil e com Conselhos de Ministros muito interessantes e não uma chatice como outros em que estive. Foi a partir daí que se gerou esta ligação que, repito, não é de amizade íntima. Aliás, toda a gente diz que o Dr. Cavaco não tem amigos íntimos, não sei se é verdade mas corresponde um pouco ao perfil que lhe conhecemos, mas houve uma relação que mantivemos ao longo dos anos.
Um dos capítulos mais inesperados é aquele em que questiona a sua mudança de orientação ideológica, com o título "Terei eu feito uma viragem à esquerda, por causa da ONU?" Porque faz esta reflexão?
Primeiro, porque fui acusado por muita gente de ter feito uma grande viragem à esquerda e de isso ter sido por alguma coisa que se passou durante o ano em que estive na ONU. Como conto no livro é verdade que alguma coisa se passou durante esse ano mas não foi na ONU, antes por ter acompanhado de perto e pela primeira vez a política interna dos Estados Unidos ao nível do Estado de Nova Iorque. Onde estava no poder um governador com maioria parlamentar que era do Tea Party, a ala mais à direita do Partido Republicano, e onde foram tomadas medidas escandalosas para favorecer os ricos e suprimir ajudas aos mais pobres. Foi um choque muito grande quando percebi o que estava a acontecer, que era diário pois eu lia com atenção o caderno IV do The New York Times. Isso fez-me aproximar de várias pessoas do Partido Democrático que têm posições mais próximas daquelas que sempre defendi. Que houve essa viragem, é verdade. Uma viragem do centro-direita para o centro-esquerda, mas não foi uma traição aos meus ideais democratas cristãos, onde o valor fundamental é a justiça social. É, no fundo, o Sermão da Montanha: Bem-aventurados os pobres e os que sofrem. O que me causa surpresa é o facto de a maioria dos católicos esquecerem-se disso! Eu, ao aproximar-me mais do centro-direita numa altura em que o centro-direita se afastou muito das políticas sociais, não é uma incoerência ideológica, apenas uma mudança de posicionamento face aos partidos.
Foi uma liberdade política que lhe saiu cara?
Saiu-me cara no seguinte sentido: eu já não fazia tenções de ter uma vida política ativa e menos ainda partidária, portanto nesse nível não foi um problema. Onde foi pior é que eu sempre pensei que quando saísse da ONU, ainda por cima com algum prestígio, iria ser convidado por alguma empresa onde teria um lugar não executivo e que permitiria gozar a minha velhice sem grande esforço. Não tive nenhuma oferta desde o regresso da ONU e até hoje tenho continuado a trabalhar, a publicar livros de Direito, a dar pareceres - porque não sou nem nunca fui milionário. Aos quase 78 anos tenho de continuar a trabalhar para sustentar a família. Neste aspeto é que saiu caro.
É grande o destaque que dá às fotografias sobre a sua presidência da Assembleia Geral da ONU. Não podia ser diferente?
Foi o segundo momento mais importante na minha vida e creio que essas imagens ficaram gravadas na mente das pessoas.
No livro comenta que a avaliação do governo Sócrates tem sido feita mais por gente que parece adepta do Benfica e do Sporting a falar. Há uma falta de amadurecimento da opinião pública portuguesa após tantos anos de democracia?
Acho que sim e em vez de termos melhorado gradualmente, porque partimos da estaca zero em formação política em Portugal, temos vindo a piorar. Estamos a transformar o debate político numa espécie de discussão entre Sporting e Benfica - ou entre Benfica e Porto -, aquilo a que talvez se possa chamar a futebolização da política, e isso é mau para a democracia e afasta os eleitores. Todos, a começar pelos partidos, comentadores e comunicação social, deveriam fazer um esforço para elevar o nível.
Tem alguns capítulos que não seria de esperar o retomar de certas polémicas. É o caso do atentado a Sá Carneiro. Porque o faz?
Aquele dia foi um choque enorme, o dia mais triste da minha vida. Acho que a Polícia Judiciária e o Ministério Público, deliberadamente, não quiseram investigar a hipótese de atentado e descartaram tudo o que apontava, nesse sentido, e só valorizaram o que era em sentido contrário. Isso revoltou-me, daí incluir um capítulo com um resumo de tudo o que se descobriu aos poucos por mérito das comissões parlamentares de inquérito; foi a forma de dizer: é nisto que eu acredito, é isto que acho que se passou e estou indignado por as entidades oficiais não terem cumprido o seu dever. Posso perceber que as autoridades receassem naqueles primeiros dias e meses a hipótese de se descobrir que foi um atentado porque as pessoas estavam muito exaltadas e podia ter havido assaltos a sedes dos partidos de esquerda - que começaram a acontecer nessa própria noite - ou coisas piores. Contudo, ao fim de dez anos, manter-se esse receio quando o país tinha mudado e fosse qual fosse o resultado não haveria qualquer reação não democrática, chocou-me muito. É, de certo modo, um voto de protesto.
Outra polémica é a alegada fraude eleitoral na campanha presidencial. Não a aceita mas não a ignora, porquê?
Foi uma coisa em que muitos dos meus apoiantes acreditavam e falavam muito nisso porque estavam convencidos de que teria acontecido uma fraude. Eu nunca acreditei, nem acredito hoje, porque se tivesse havido fraude eleitoral seria com três, quatro ou cinco mil votos e a diferença foi de 142 mil. Além de que nenhum dos representantes da minha candidatura nas mesas de voto protestou. Não houve uma única fraude reportada, zero.
Também regressa à dívida da campanha eleitoral que merece no livro um acerto de contas com o PSD e o CDS muito grande...
O meu objetivo principal não foi esse, mas contar como é que vivi o problema - que me chegou a angustiar - e como se encontrou ao fim de muito tempo uma solução que ajudou a resolver a questão. Quis deixar escrito o testemunho de alguém que nunca aceitou a ideia de vários colaboradores de "se não há dinheiro não se paga". Nunca aceitei que as dívidas não fossem honradas porque o PSD e o CDS se recusaram a contribuir. Não é um ajuste de contas, ou se o for, não é o motivo principal.
Um dos encartes fotográficos deste livro é apenas sobre essa campanha presidencial. São as imagens mais importantes?
Na minha vida política, embora tenha havido outros momentos importantes, este foi dos mais marcantes na opinião pública portuguesa. Recordo que tive na candidatura presidencial um resultado superior a 48%, o que é raríssimo.
Termina o livro a desejar que se elimine o número absurdo de pobres em Portugal. A corrupção que assola o país deixará cumprir esse seu desejo?
São coisas diferentes, antes de mais. Não tem havido uma política ativa e coerente para combater a corrupção. Há muitos exemplos que se podem ir buscar a organizações internacionais, como a Transparência Internacional que tem um catálogo de cem medidas, que inclui a alteração do plano de estudos de Direito para que se aborde numa disciplina semestral as formas de combate à corrupção. Há muita coisa por fazer; este governo não o fez e o anterior também não. Espero que se crie um ambiente favorável na próxima legislatura para definir essa política, após ser discutida, aprovada e posta em prática. Quanto à questão da pobreza, o problema é o da falta de uma política integral de combate à situação. Tem-se feito muito e é verdade mas há muito mais a fazer, principalmente envolver a sociedade civil.
Faz questão de pôr como última foto o debate com Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal. Qual a razão?
Para que as pessoas não se esqueçam que essas quatro pessoas foram as fundadoras do sistema partidário português e, em certa medida, fundadores da democracia. Não fomos só nós, também os militares e outras pessoas, mas "esses" da fotografia foram os rostos de um sistema partidário que nas primeiras eleições em liberdade levaram 93% das pessoas a votar.
Diogo Freitas do Amaral
Editora Bertrand, 407 páginas
Apresentado por Teresa Pizarro Beleza hoje no Centro Cultural de Belém, pelas 18.00
Com a presença do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa