Seis milhões não conseguiram fugir
Visitei uma vez Auschwitz e sinceramente não penso voltar, a não ser talvez para um dia mostrar o mais célebre dos campos de extermínio nazi aos meus filhos, para perceberem como o mal absoluto existe. Foi um murro no estômago desde o primeiro momento essa visita, bastou-me atravessar o portão que em alemão diz que "o trabalho liberta". Entrei numa câmara de gás mas nem de perto se consegue imaginar o horror dos judeus que ali foram assassinados. O mais impactante para mim, porém, foram as roupas de bebé expostas em vitrinas, testemunho de que famílias inteiras foram exterminadas. Que hoje, 27 de janeiro, seja o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto faz, pois, todo o sentido. Afinal, foi a 27 de janeiro de 1945 que os soldados soviéticos libertaram o campo, encontrando alguns sobreviventes que pareciam esqueletos. Um dia, o filho de uma sobrevivente de Auschwitz contou-me que a mãe só muito, muito velhinha lhe contou que tinha sido ali prisioneira e que o primeiro marido e um outro filho tinham lá morrido. A senhora, judia sérvia, nunca antes sentira coragem para falar do horror a que assistira.
O jornalista Jonathan Freedland escreveu O Mestre da Fuga, um livro sobre Auschwitz que não tem Auschwitz no título, o que logo o distingue de uma série de outros livros recentes que exploram o fascínio macabro que provoca o campo de concentração nazi localizado no sul da Polónia ocupada. Fala de dois judeus, Rudolf Vrba e Fred Wetzler, que conseguiram fugir de Auschwitz em abril de 1944 e tentaram alertar os Aliados para o que ali se passava. Um ano antes, um polaco, o católico Jan Karski, fora a Washington também denunciar o extermínio de judeus em vários campos espalhados pela Europa Central e Oriental. A reação dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha não foi a esperada por nenhum deles. A máquina de morte montada pelos nazis era demasiado terrível para parecer plausível. E a prioridade era derrotar os alemães no campo de batalha, através do desembarque anglo-americano em França, o Dia D, e pouco depois a Operação Bagration, uma gigantesca ofensiva soviética a Leste.
Freedland, colunista do The Guardian, destaca Vrba no livro - e vale a pena ler a entrevista que o autor deu ao DN e hoje é publicada. É este judeu eslovaco o tal homem que surge referido no subtítulo do livro, "o homem que fugiu de Auschwitz para avisar o mundo". Quantas vidas se teriam ainda salvado se pelo menos as linhas férreas que conduziam a Auschwitz tivessem sido bombardeadas, como pediam os líderes judeus internacionais? Nunca se saberá. Mas a total responsabilidade será sempre da ideologia encarnada por Adolf Hitler. Tanto Franklin Roosevelt como Winston Churchill acreditavam que a melhor forma de ajudar os judeus era derrotar o nazismo. Conseguiram-no, juntamente com alguns outros países, a União Soviética, claro, em primeiro lugar, e destaque também para a França Livre de Charles de Gaulle.
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Recomendo o murro no estômago que é visitar Auschwitz, mesmo que só uma vez. Para que a memória do Holocausto nunca se desvaneça nas novas gerações. Livros e filmes também ajudam, mas sei que nas escolas portuguesas muitos professores fazem igualmente questão de explicar aos mais jovens o que se passou. É o caso de Francina Santos, que quando estava na Escola Secundária de Airães, em Felgueiras, me convidou a falar aos alunos da minha ida a Auschwitz e este ano repetiu igual convite, desta vez com a audiência a serem os seus alunos do 11.º H e do 11.º I do Ensino Profissional na Escola Secundária da Lixa, também no concelho de Felgueiras (iniciativa acarinhada pelo diretor da escola, Armindo Gomes Coelho).
Ontem, também a Câmara Municipal de Lisboa se associou às embaixadas de Israel e da Alemanha para um momento cultural de memória do Holocausto, com os oradores que precederam o programa artístico a serem Carlos Moedas, os embaixadores Dor Shapira e Julia Monar, também o presidente da comunidade judaica de Lisboa, David Botelho, e ainda o ministro da Educação, João Costa. Também o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, marcou presença, ele que tantas vezes tem referido o exemplo de heroísmo de Aristides de Sousa Mendes, o nosso cônsul em Bordéus, que tantas vidas salvou, assinando milhares de vistos.
Seis milhões de mortos. É o número do Holocausto. O espetáculo pela dupla israelita Hanny Nahmias e Eyal Haviv deu-lhes voz pela música e pelas palavras em várias línguas, até ladino; isto numa Lisboa onde a Segunda Guerra Mundial só chegou através dos espiões e dos refugiados, muitos destes judeus com o visto passado por Aristides. Foram acolhidos enquanto esperavam partir para a América, alguns até decidiram fazer de Portugal a nova casa. Mas não posso terminar sem dizer o quanto me emocionou ouvir o embaixador Shapira falar do avô Aron, judeu nascido na Hungria, sobrevivente dos campos de concentração, homem que sofreu muito, que perdeu muitos familiares para a fúria antissemita dos nazis, e que refez a vida em Israel.
Diretor adjunto do Diário de Notícias