O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, anunciou nesta quinta-feira que a Turquia vai enviar tropas para a Líbia, depois de o governo do Acordo Nacional (GNA, na sigla em inglês), que controla Tripoli e é liderado pelo primeiro-ministro Fayez al-Sarraj, ter pedido auxílio militar a Ancara. Do outro lado da barricada está a administração paralela do comandante Khalifa Haftar do Exército Nacional Líbio (LNA), que controla o leste do país a partir de Tobruk e que, entre outros, tem o apoio dos russos..Erdogan vai pedir autorização ao Parlamento para o envio de tropas a 7 de janeiro. A decisão de enviar militares surge depois de, no mês passado, responsáveis turcos terem assinado com o governo de Sarraj dois memorandos de entendimento. Um deles referente a cooperação de segurança e militar, que exigia um pedido formal de ajuda por parte dos líbios para ser acionado, o outro sobre fronteiras no Mediterrâneo Oriental e a criação de uma zona económica exclusiva..As sessões do Parlamento turco para o envio de tropas para a Líbia vão decorrer na mesma altura em que Erdogan tem previsto um encontro, em Istambul, com o homólogo russo, Vladimir Putin. Na agenda estará a Líbia, depois de o turco ter acusado Moscovo de pagar aos mercenários para apoiar Haftar. Mas também a Síria, outro país onde estão em lados opostos da barricada e onde chegaram a um acordo em outubro, mas que ainda não se concretizou totalmente..Nesta quinta-feira, num telefonema com o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, Putin concordou que a situação na Líbia deve ser resolvida de forma pacífica..A Líbia é um Estado falhado, envolto no caos e na guerra civil desde a queda do ditador Muammar Kadhafi, em 2011, numa ação apoiada pela NATO. Há inúmeras milícias no país, mas o país está dividido entre duas administrações. De um lado o GNA, que é reconhecido oficialmente pelas Nações Unidas, União Europeia e EUA, mas que depende principalmente do apoio da Turquia e do Qatar. Do outro lado está o LNA, de Haftar, que se baseia no apoio do Parlamento eleito em 2014 que recusou entregar o poder, e que controla a região rica em petróleo do leste e sul da Líbia. Este tem o apoio internacional da Rússia, dos Emirados Árabes Unidos, da Arábia Saudita e do Egito..Erdogan deixou o aviso aos países que apoiam Haftar: "Estão a ajudar um senhor da guerra. Nós estamos a responder a um convite do governo legítimo da Líbia. É essa a nossa diferença.".Qual é o interesse da Turquia na Líbia?.Erdogan disse, após um encontro com o primeiro-ministro líbio, ainda antes do Natal, que o motivo turco se prende com a legalidade, considerando que Haftar "não é um líder legítimo e representa uma estrutura ilegal". Mas o objetivo é também estratégico, relacionado com uma política para o Mediterrâneo e o acordo sobre fronteiras que também assinou com o GNA..Haftar, um marechal de 76 anos, serviu no exército líbio sob o comando de Muammar Kadhafi e participou no golpe que o levou ao poder em 1969, mas acabaria por se desentender com ele em 1987 quando foi feito prisioneiro, junto com 300 homens, no Chade (a Líbia tinha até então negado a presença das suas tropas no país)..Haftar acabou por ser libertado e por ir viver para os EUA (há quem diga que tem nacionalidade norte-americana), mais precisamente na Virgínia (a proximidade a Langley, sede da CIA, fez acreditar numa ligação aos serviços secretos norte-americanos). Voltou à Líbia em 2011, ganhando destaque a lutar contra o avanço dos grupos islamitas no leste..O comandante do LNA conta com o apoio da Rússia, que negou, no mês passado, ter enviado mercenários para lutar ao lado de Haftar, como tinha denunciado o The New York Times. A Líbia pode, contudo, tornar-se uma segunda Síria, onde turcos e russos estão em lados opostos da barricada. Ali foi a intervenção dos russos, a partir de 2015, que permitiu que o regime de Bachar al-Assad recuperasse o terreno que tinha perdido e desse a volta à guerra civil. Por seu lado, foi o apoio da Turquia que permitiu que os rebeldes não fossem totalmente aniquilados..Que impacto terá o envio de tropas turcas para a Líbia?.O envio de tropas turcas poderá ajudar o GNA a defender a capital contra a ofensiva de Haftar. Desde abril que o comandante lidera uma campanha militar contra o GNA, que acusa de incluir "elementos terroristas", tendo lançado o ataque a Tripoli quando o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, estava na cidade à procura de incentivar um acordo político para a celebração de eleições..No dia 12 de dezembro, o comandante anunciou o início da ofensiva "decisiva" sobre Tripoli. Com as suas forças retidas nos subúrbios da capital, Haftar tem usado a força aérea, com o apoio dos Emirados Árabes Unidos, nos ataques a Misrata, bombardeando nomeadamente o aeroporto desta cidade costeira a 187 km de Tripoli. No passado, o LNA tinha evitado atingir esta cidade cuja milícia foi crucial na rebelião de 2011 que levou ao derrube e morte de Kadhafi. As forças de Misrata, com o apoio dos EUA, ajudaram a expulsar o Estado Islâmico de Sirte, mais para leste na costa, em 2017..Mas a presença de tropas turcas poderá também levar os outros atores no terreno a apoiarem mais abertamente o comandante do LNA, que voltou a exigir que as milícias apoiadas pelos turcos recuem de Tripoli..Qual tem sido a reação ao anúncio?.Tanto a União Europeia como os EUA têm expressado preocupação com o escalar da violência na Líbia e o envolvimento de atores internacionais. A Turquia já foi formalmente acusada pelas Nações Unidas de violar o embargo de armas existente, tal como os Emirados Árabes Unidos, do outro lado da barricada..A posição dos EUA tem sido confusa, depois de em abril o presidente norte-americano, Donald Trump, ter telefonado a Haftar. Isto numa altura em que já decorria o ataque a Tripoli, capital do governo reconhecido oficialmente pelas Nações Unidas. Os EUA tinham antes condenado a incursão de Haftar e apoiado uma resolução do Conselho de Segurança a apelar a um cessar-fogo. O telefonema de Trump legitimou, contudo, o líder do LNA..Mas oficialmente a política dos EUA não mudou, tendo em novembro reiterado o apoio à soberania do país e à sua integridade territorial, rejeitando "as tentativas da Rússia de explorar o conflito contra a vontade do povo líbio", segundo um comunicado após um encontro de responsáveis norte-americanos com ministros líbios, em Washington. O facto de os russos apoiarem Haftar tem sido usado pelo governo de Sarraj para tentar reforçar o apoio de Washington..A França também tem sido acusada de fazer um jogo duplo na Líbia, tendo uma posição oficial de apoio ao governo reconhecido pelas Nações Unidas, ao mesmo tempo que é acusada de apoiar militarmente Haftar, que o presidente francês, Emmanuel Macron, já recebeu em Paris..O Egito, cuja relação com a Turquia tem sido tensa desde que os militares egípcios derrubaram o presidente Mohammed Morsi em 2013, apelou ao fim da intervenção internacional na Líbia. "Temos a capacidade de intervir, mas não o fizemos", disse o presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi. No passado os egípcios realizaram ataques aéreos na Líbia e enviaram material de apoio à LNA, segundo peritos das Nações Unidas..A Alemanha, que está a tentar organizar uma conferência sobre a Líbia, também está preocupada. "O processo de Berlim, no qual estamos a trabalhar, está preparado para chegar a um cessar-fogo e garantir que todas as partes cumprem com o embargo de venda de armas. Estas duas coisas são absolutamente essenciais para facilitar as negociações sob o auspício das Nações Unidas para trazer a paz à Líbia", disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros..O anúncio de Erdogan surge depois de uma visita surpresa à Tunísia, no Natal, para um encontro com o seu homólogo Kaïs Saied. O presidente turco disse aos jornalistas que ambos discutiram uma forma de chegar a um cessar-fogo e levar GNA e LNA a sentarem-se à mesa de negociações..A decisão turca de apoiar militarmente o governo líbio chega também num momento de tensão entre Ancara e a União Europeia em várias frentes, desde logo a intervenção contra os curdos na Síria. E depois da assinatura do polémico acordo marítimo, que tem como objetivo reforçar o poder de Ancara no Mediterrâneo..Acordo marítimo.O acordo, que prevê uma espécie de zona económica entre ambos os países, irritou os europeus e os gregos em participar, com quem os turcos discutem há décadas por causa de algumas ilhas no mar Egeu. Atenas já expulsou o embaixador da Líbia.."A Turquia tem de escolher entre seguir um caminho de autoisolamento, continuando a representar o papel de criador de problemas na região, ou comportar-se como um bom vizinho", disse o número dois da diplomacia grega, Miltiadis Varvitsiotis, numa entrevista ao jornal grego Ethnos, citado pela Euronews..Os gregos têm criticado também a exploração de gás na costa do Chipre, uma ilha dividida desde que os turcos invadiram o norte, em 1974..Segundo os especialistas, deixa também em causa os esforços destes dois países que, junto com Israel e o Egito, têm procurado desenvolver a exploração de gás na região - estima-se que as reservas valem 700 mil milhões de dólares -, travando a construção de um possível gasoduto que iria de Israel até à Grécia e daí para a Europa, via Itália. Este gasoduto teria de cruzar a planeada zona económica..Israel também é contra o acordo, mas isso não deverá significar um conflito com a Turquia, disse o chefe da diplomacia, Israel Katz. Questionado na televisão israelita sobre se a posição oficial de Telavive era considerar o acordo ilegal, este respondeu: "Essa é a posição oficial de Israel. Mas isso não significa que vamos enviar navios de guerra para enfrentar a Turquia."