João Gabriel Silva: "Universidade de Coimbra é uma das grandes instituições fundadoras do Brasil"

O reitor da Universidade de Coimbra, de 61 anos e nascido em Pombal, é doutorado em Engenharia Informática, é o pai do Ener 1000, o primeiro computador português, criado nos anos 1980.
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Como é ser o inventor do primeiro computador português?

Foi algo que não foi planeado. Por volta de 1980 estávamos no departamento de engenharia eletrotécnica da faculdade. Ainda não havia engenharia informática na altura, estávamos no início da microinformática, tudo isto anda muito rápido. E não havia dinheiro para comprar um computador das novas tecnologias e rapidamente percebemos que se o construíssemos nós sairia mais barato. Comprávamos as peças, que eram relativamente comuns. E foi isso que decidimos.

Para efeitos da universidade, precisavam de construir um computador?

Exato. Na realidade, utilizámos algumas partes que já estavam desenvolvidas pelo departamento de física que eles utilizavam para instrumentação, recolha de dados e atuação sobre as experiências. Eles tinham lá uns módulos iniciados, aquilo era um computador modulado. Embora esses moldes não estivessem pensados para um computador genérico, de secretária, para editar texto, enviar mensagens, essa transformação foi feita. Desenvolvemos os módulos necessários e depois todo o software, a adaptação do sistema operativo - na altura não havia Windows nem iOS nem nada, havia uma coisa chamada CP/M, ainda dos computadores de 8 bits, e adaptámos esse sistema operativo que tinha várias aplicações - ainda não havia Word, havia uma coisa chamada WordStar.

Era essencialmente para processar texto?

Era para tudo. Como era modular, tanto dava para controlar experiências como dava para ensino, porque um dos objetivos era ensinar aos estudantes como é que aquilo funcionava e para nós próprios aprendermos. Depois começou a funcionar e soube-se, não sei por que vias, e apareceu um empreendedor da Figueira da Foz, José Guedes, que tinha uma empresa que tinha começado na área da eletrónica, com intenção de fazer outras coisas e soube do computador e veio perguntar se estávamos disponíveis para o comercializar. Achámos a ideia muito interessante e depois houve muitas transformações porque tivemos não só de o ajustar a uma produção mais intensa mas também construir a própria linha de produção que tem toda a parte de testar as várias componentes que vão sendo construídas para ver se estão a funcionar.

Onde funcionava essa linha de produção?

Na Figueira da Foz. Era o pessoal da empresa que fazia a montagem, simplesmente o desenho, a conceção e o controlo da produção da linha era feito pela Universidade de Coimbra.

Venderam umas centenas de Ener 1000...

Não chegou a mil, mais aí 500, 600. Era muito competitivo na altura.

Alguém já lhe disse "tenho um computador inventado por si"?

Já me aconteceu algumas vezes. Aliás, ainda temos aí umas relíquias.

Foi um daqueles casos em que se percebe que uma universidade, além da componente teórica, pode produzir uma coisa com aplicação imediata para as pessoas?

Foi muito precursora porque na altura não havia exemplo nenhum desta colaboração universidade-indústria. Aliás, havia muita gente da universidade que achava que isso era vendermo-nos ao comércio porque isso não era digno de a universidade fazer - isso, aliás, é uma área em que a universidade se transformou completamente. Não se encontra ninguém, neste momento, que não ache correto que a universidade transfira conhecimento diretamente para a sociedade colaborando com outras instituições. Nem se questiona, pelo contrário. Mas naquela altura quem fazia isso eram uns malucos que não se sabia bem se estavam na universidade.

Ou seja, um académico criar um computador era visto como uma coisa maluca...

Criar um computador não era propriamente um problema, embora fosse fora dos parâmetros da altura, agora dar o passo da colaboração com a empresa... Esta colaboração não envolveu dinheiro nenhum: não houve financiamento, a universidade não recebeu nada, nós não recebemos nada, foi tudo feito na base da boa vontade.

Não tiveram nenhum ganho com a venda?

Zero. Ganhámos algumas coisas em via indireta, no sentido em que recebemos mais um par de computadores que ficaram connosco e algum material. Agora, de resto, não houve rigorosamente nada para o departamento.

Quando se pensa no reitor de Coimbra pensa-se nas áreas tradicionais: no Direito ou das Letras e depois descobre-se que é um engenheiro doutorado em informática. A sua eleição em 2011 também foi uma revolução no contexto da universidade de Coimbra?

Não lhe chamo revolução, mas que é uma forma de ver a enorme revolução que a Universidade de Coimbra teve. Isso é, seguramente, quer pela novidade da área (a informática existe desde 1990) quer porque alguém proveniente dessa área tem esta responsabilidade de estar à frente da universidade. Mesmo assim prefiro que se veja essa revolução olhando para o Instituto Pedro Nunes. Um exemplo fantástico é o facto de a BMW ter escolhido recentemente uma spin-off da Universidade de Coimbra, a Critical Software, para desenvolver o carro do futuro. Uma empresa completamente saída daqui, os três criadores iniciais foram meus alunos, com ideias daqui, em resultado da investigação feita aqui. Doutoraram-se, não são meras pessoas que fizeram aqui o curso, foram pessoas que foram até à fronteira do conhecimento de determinada área de investigação e depois então lançaram-se numa empresa. E a BMW, depois de um processo de seleção extremamente alargado, acabar numa empresa saída de Coimbra tem um significado notável. Quem diria? Ainda há na cabeça de muita gente o preconceito, que é um preconceito puro, apenas, da universidade velha, parada no tempo. Se houver uma universidade em Portugal que tenha um incubadora de empresas que chegue sequer perto do Instituto Pedro Nunes, pois chegue-se à frente. Não há! A do Porto tem alguma proximidade e em Lisboa não há nenhuma que chegue sequer perto.

Recuemos um pouco no tempo. Naquele período conturbado pós-revolução, em 1975, como foi entrar numa das universidades mais antigas do mundo? O que sente um jovem naquela altura ao entrar numa universidade com este peso?

Não senti isso muito porque para mim não havia escolha. A minha família não tinha condições económicas para me mandar para mais lado nenhum, portanto ou entrava na Universidade de Coimbra ou não ia para a universidade. Éramos cinco irmãos, para mim nem havia escolha, era um desafio: "Vamos ver se consigo aguentar o ritmo da universidade," Aliás, a minha família mudou-se para Coimbra para conseguir que os filhos fossem para a universidade. Os meus pais viviam em Pombal, eu nasci em Pombal, não tinham condições para ter os filhos deslocados numa universidade, fosse aqui ou noutro sítio qualquer. Eles mudaram-se para Coimbra a pensar no futuro dos filhos. Mais: o meu pai regrediu profissionalmente. Era chefe da delegação da Companhia Elétrica das Beiras e veio para empregado de escritório standard aqui em Coimbra porque foi o emprego que arranjou cá. A razão de ser da mudança foi poder dar uma educação universitária aos filhos, ponto final.

À volta da sua família, no círculo de amizade dos seus pais, isso era uma coisa extraordinária: pais que tivessem essa convicção de apostar na educação dos filhos?

Não era comum. Não sei até que ponto é que era generalizado, mas para pessoas que não tinham formação superior, de famílias muito modestas, ter esse foco na necessidade de dar aos filhos uma formação superior, para ter aquilo que eles nunca conseguiram, era importante. Quer o meu pai quer a minha mãe estabeleceram como objetivo de vida darem aos filhos aquilo que não conseguiram ter. Já houve vezes que disse e isto está-me muito marcado na memória, lembro-me de a minha mãe comentar de vez em quando "cá em casa não há dinheiro para um restaurante mas há sempre dinheiro para um livro".

O que fazia a sua mãe?

Era professora primária.

Mas na altura não era preciso curso superior...

Ao fim do quinto ano do liceu, agora o nono, havia mais dois anos de magistério primário que correspondia ao 11.º atualmente.

Sei que no ano que andou à espera para entrar na universidade passou meses a apanhar azeitona na aldeia do seu pai, em Cabaços, perto de Alvaiázere. Essa experiência foi uma daquelas coisas exóticas que um futuro estudante universitário faz ou é algo habitual em si, de ligação à terra?

Com aquela dimensão, de não sei quantos meses a apanhar azeitona, foi a primeira vez, mas participar dos trabalhos no campo era recorrente. Lembro-me bem de andar a trabalhar em casa dos meus avós paternos. Eu passava lá muito tempo e andava-se por lá a fazer o que era preciso. Quando era bebé lembro-me da quantidade de terra que eu comi. Nós vivíamos em Pombal, numa casa fora da povoação, onde era mais barato o aluguer, que tinha um quintal interessante, e eu sempre semeei feijões, alfaces, batatas... Faz parte da minha existência.

Mantém alguma dessas lógicas? Tem uma horta?

Neste momento não tenho tempo. Nem vale a pena tentar porque isto é demasiado absorvente.

Mas é dono de algum pedaço de terra?

Eu diretamente não. Os meus pais, que felizmente são vivos, têm algumas terras partilhadas com outros irmãos. Eles têm uma terrazita pequenita em Formoselha, que compraram e onde vão tratar das galinhas e das couves e tudo o mais. Isso faz parte da minha vida desde o início. Aliás, uma das atividades que manterei até morrer, quando deixar esta pressão diária que aqui tenho, é também ter uma componente agrícola, sem qualquer hesitação.

Esse ano de 1975 foi especial por outras razões porque foi chamado a prestar uma espécie de serviço cívico. O que é que fez exatamente?

Teve duas componentes: tive uma componente em julho, em São João do Campo, em que estive lá acampado numas casas em mau estado e a minha missão era fazer um levantamento ornitológico da Mata de Geria para uma eventual transformação em área protegida - que nunca aconteceu e eu também não sabia nada daquilo. Cheguei lá armado com um fogareiro para cozinhar para mim próprio, dormia lá numa casa num saco-cama e tinha um guia de aves. Depois ia tentando identificá-las. É evidente que ao fim daquele mês eu mal arranhava à superfície o que é que isso era, portanto a minha contribuição não foi muito grande, ou quase nenhuma. Depois fui chamado para ir para uma aldeia ao pé de Aljustrel, chamada Carregueiro, em que havia lá um monte de gente a ajudar a abrir valas, em agosto, para estabelecer o saneamento e a distribuição de água na aldeia. Andar a abrir valas em agosto em pleno Alentejo. Tudo manual, não havia máquinas, era pá e pica, de modo que não fazíamos muito isso, fazíamos mais doutrinamento do que outra coisa.

Sentia um entusiasmo revolucionário por essas tarefas do serviço cívico, era obrigatório ou fazia porque tinha de fazer?

Sentia, essencialmente, curiosidade. Queria perceber o que lá andavam a fazer, o que era aquilo tudo. Como cada uma das atividades só durava um mês, particularmente a parte de doutrinamento, também não havia crise, portanto lá fui ouvindo o que eles diziam e ia mandando umas patacoadas.

Mas havia uma componente ideológica...

Muito forte, mas para mim era uma experiência ouvir aquele pessoal, aquela perspetiva. Nunca me senti maltratado, embora felizmente aquilo tenha durado só um mês.

Mas também tem um lado de aventura estar um mês fora do ambiente familiar. Já tinha acontecido antes de outras formas?

Tirando períodos de férias em que ia para casa dos avós... mas não, naquele tipo de ambiente nunca tinha estado. Juntavam-se jovens de várias zonas do país. Não fiquei com o contacto de ninguém... Não me recordo bem, mas nesse acampamento estavam umas centenas largas de jovens todos na mesma situação, a fazer serviço cívico para entrar na universidade.

Desde os mais entusiastas aos que estavam lá para passar o tempo?

Havia alguns entusiastas, mas estávamos lá porque nos tinham convocado.

Como foi chegar à universidade depois daquele ano em que não houve avaliações?

Foi nesse ano em que tive o serviço cívico. Aliás, apanhei o ano em que houve essa interrupção. Eu devia ter entrado na universidade em 1974 mas não havia condições e nenhuma universidade recebeu novos estudantes...

Perdeu um ano de estudos...

Perdi.

Vamos voltar a esse momento inicial aqui na universidade. Era um aluno superestudioso? Ou um aluno que se envolvia nessa parte mais boémia da universidade? Se calhar o facto de a família estar em Coimbra também não ajudava?

Também nunca tive muita queda para isso, confesso. Além disso, tinha uma consciência muito aguda do esforço que os meus pais estavam a fazer para nós estarmos no ensino superior, portanto não havia ali espaço para falhas, para andar a arrastar os anos. E depois era uma matéria de que gostava, que queria aprender. Eu gosto de aprender. Para mim, enquanto aprender estou vivo, quando deixar de aprender já estou meio morto. Para mim aprender é fantástico. Gostava daquilo, aliás chateei-me no início quando ao chegar à primeira aula nos dizem que estamos em greve. Tínhamos estado um ano fora, estamos doidos para ter aula e depois dizem-nos da greve, nós nem percebíamos porquê.

Era ainda o PREC a funcionar?

Era o PREC a funcionar, havia umas questões de instalações. Isto é anterior ao decreto de gestão, e aplicava-se a regra de uma pessoa, um voto, portanto a direção da faculdade era estritamente constituída por estudantes e eles encarregavam-se de se eleger exclusivamente, portanto eram eles que geriam a FCTUC e pronto...

E houve a greve?

A greve manteve-se, já estava decretada, eles vieram só comunicar. Nós é que ficámos todos lá: a sala 17 de Abril da Matemática é aquela mítica em que o Presidente da República do tempo da outra senhora, a que chamávamos o Cabeça de Abóbora, o almirante Américo Tomás, veio aí fazer a inauguração do departamento de matemática e houve aquele famoso levantamento dos estudantes em que o presidente da Associação Académica perguntou se podia falar e eles não o deixaram falar e isso desencadeou toda a crise de 69, que foi muito intensa. Foi nessa sala que tudo aconteceu. Na altura, nem percebíamos bem o que estava a acontecer. A sala tem capacidade para 200 pessoas, mas estavam à vontade 500 pessoas na sala, portanto completamente à pinha. O professor ia começar a dar aulas, um professor muito interessante que tinha sido expulso da universidade por questões políticas, João Miranda, um excelente professor. Ele ia começar a dar a aula e entram lá aqueles fulanos que não conhecíamos de lado nenhum a dizer que estávamos em greve e não achámos piada nenhuma. A primeira coisa que perguntámos é o que é que era preciso para acabarmos com a greve. Queríamos ter aulas, qual era a questão? Sei que foi antes do 25 de Novembro.

Com o 25 de Novembro sente-se a diferença depois na Universidade de Coimbra?

Muito lentamente e muito pouco, foi um processo lento de normalização do funcionamento, não teve nenhum impacto direto.

Há uma altura em que consegue finalmente aquilo que quer, que é estudar. Quando é que percebe que estudar vai significar seguir uma carreira académica?

Na altura, estávamos numa situação muito diferente na universidade portuguesa e na Universidade de Coimbra. Praticamente todos os bons alunos, e eu terminei com média de 18, ficavam como assistentes. Não é como agora, que é um inferno para entrar. Um bom aluno entrava para assistente e desde que não fizesse nada de muito complicado tinha basicamente a carreira à sua frente sem grandes dificuldades.

Como é que essa carreira desemboca em ser reitor? Como é que se candidata a ser reitor de uma universidade desta dimensão?

Gostava de dizer que foi uma coisa planeada, mas não foi. Sempre tive esta curiosidade de fazer coisas e uma pulsão muito forte de rejeitar que em Portugal ou em Coimbra não é possível fazer isto ou aquilo. Claro que é mais difícil fazer aqui investigação de ponta do que se estivermos no MIT. Se alguém quer o desafio, é aqui, mas não é impossível. Praticamente não havia investigação científica no departamento de engenharia eletrotécnica - eu participei no primeiro projeto que lá houve, liderado pelo António Dias de Figueiredo, um excelente professor, e começámos a tatear terreno. Foi no âmbito dessas tentativas que surgiu o computador. Fui sempre avançando em direção à ligação à sociedade, por um lado, e depois à investigação e começámos a ter resultados interessantes, tinha um grupo de investigação que formei à volta de ideias que andávamos a desenvolver e começámos a candidatar-nos a projetos europeus - tive o primeiro projeto europeu financiado pela UE na Universidade de Coimbra, na década de 90.

Ninguém se candidatava?

Praticamente não havia candidaturas. Mesmo eu e as pessoas que trabalhavam comigo, só conseguimos à terceira tentativa. Coimbra não era uma universidade conhecida... Portugal não era conhecido, não havia grande investigação. Rapidamente percebi aquilo que acontece a toda a gente que está a fazer investigação com base em projetos: os projetos são limitados no tempo, às vezes tem-se, outras vezes não se tem. Enquanto temos projetos temos de deixar um pé-de-meia para os tempos de menor abundância para conseguirmos manter o grupo a funcionar. Na altura, não havia internet nem coisa nenhuma, portanto para montarmos uma proposta de projeto europeu tínhamos de ir lá de avião e era tudo mais caro do que é agora. Um grupo de investigação ou tinha um pé-de-meia para financiar essa fase de preparação dos projetos ou nem sequer se conseguia candidatar. No meio desses projetos todos fomos arranjando um pé-de-meia na FCTUC - havia quem pusesse isso fora da universidade, eu sempre me recusei, sempre trabalhei 100% dentro da universidade - e subitamente o dinheiro desapareceu. E porquê? Porque a direção da faculdade na altura tinha tido necessidade de não sei o quê e decidiu pegar nesse dinheiro e gastá-lo. E não foi só comigo. Eles basicamente tinham um orçamento descontrolado, não sabiam o que andavam a fazer, gastavam o que não tinham e depois foram buscar o dinheiro dos grupos de investigação. Não achámos graça nenhuma. Portanto, nós juntámo-nos numa lista e ganhámos as eleições. Fui para a direção da faculdade e o professor que liderava a lista não quis continuar e acabei por ficar eu à frente do conselho diretivo e depois à frente da faculdade em eleições sucessivas e depois, quando o anterior reitor terminou o mandato, basicamente estava a formar-se apenas uma candidatura, que estava muito afastada da ideia que eu defendia para a universidade. Pensei cá para mim: andei aqui a trabalhar no FCTUC no sentido do desenvolvimento de sermos uma universidade internacional, de ser o mérito aquilo que conta e não os amigos, conhecidos, compadrios, etc., e temos de aceitar esse patamar de exigência se queremos ir a algum lado. Quem me vem propor essencialmente a manutenção do statu quo... Resumidamente: pá, não, isto precisa de muita transformação, não pode ser de maneira nenhuma manutenção do statu quo e, portanto, decidi chegar-me à frente.

Mas candidatar-se a reitor significa também que já não pode contar com o pequeno grupo da sua faculdade, vai ter de mobilizar...

Está bem, mas vamos a isso, why not? Também já conhecia gente.

Estava convicto de que podia ganhar?

Estava convicto de que podia ganhar, não estava propriamente convencido. Não estavam as favas contadas, até porque ganhei por uma diferença pequena de votos. Perder por falta de comparência é que não, a gente vai lá. Se eu vou defender a minha ideia para universidade e perder, pronto, a universidade fez a sua escolha mas ninguém me pode acusar de não ter tentado.

Isto foi em 2011, em sete anos conseguiu impor a sua marca na Universidade de Coimbra? Quando se tem séculos de história, sete anos conseguem fazer a diferença?

Não se consegue fazer tudo o que se queria. E às vezes também me enganei, também fiz algumas asneiras, mas acho que no essencial a universidade avançou bastante positivamente e em muitas áreas, como a internacionalização. Neste momento, somos a maior universidade portuguesa com estudantes não portugueses e estamos a atraí-los não só em Erasmus mas pessoas que vêm cá tirar o curso - e como o Estado português não financia, vêm cá a pagar por inteiro os custos da sua formação, que anualmente são sete mil euros aqui na universidade. Atingimos neste ano os 20% de estudantes não portugueses, é um número raro em termos europeus e não há nenhuma universidade portuguesa que esteja sequer perto.

Tem que ver com o prestígio histórico de Coimbra?

Tem que ver com o prestígio histórico, seguramente, isso dá-nos um cartão-de-visita essencial mas o marketing não serve para nada se o produto não for bom. Como nós já cá estamos há muitos anos, se muitos do que cá chegaram atrás do mito da Universidade de Coimbra encontrassem uma coisa desqualificada...

Sente que os alunos recomendam uns aos outros?

Absolutamente. Neste ano tivemos uma quase duplicação de candidatos, estamos a recusar candidatos internacionais que não entram porque não há espaço.

Os brasileiros têm um peso importante?

São para aí 80%.

Sente que para os brasileiros Coimbra é mais importante? Tive em tempos de estudar o tempo da independência do Brasil e uma das causas da unidade pós-1822, além da figura do imperador, é que toda a gente que manda em algum sítio do Brasil foi formada em Coimbra. Ou seja, podem ser do Maranhão ou do Rio Grande do Sul, mas tiveram um ponto de contacto. Isto reflete-se no fascínio dos brasileiros hoje?

Seguramente. A Universidade de Coimbra tem um valor mítico no Brasil, é, digamos, uma das grandes instituições fundadoras do Brasil. Aliás, demos um doutoramento honoris causa a um historiador brasileiro, José Murilo de Carvalho, há dois anos, que muito em resultado do estudo aprofundado que fez sobre a Universidade de Coimbra e uma das conclusões que ele tirou, de forma muito fundamentada, diz que em larga medida o fator número um da unidade do Brasil é a Universidade de Coimbra. Se olharmos para a zona espanhola, aquilo partiu-se tudo aos bocados e a zona portuguesa manteve-se unida. Aquilo tem o tamanho de um continente, não havia "celular" na altura, portanto ir de um lado ao outro do Brasil eram meses de viagem. Portugal, que tinha medo da independência das colónias, já na altura, uma das técnicas que usava é que não havia um governo único no Brasil, havia capitanias que respondiam diretamente a Lisboa. A construção colonial no Brasil foi sempre fragmentária para garantir que ninguém ganhava ideias. Havia uma grande rotação de todos os funcionários públicos de topo, os juízes, procuradores, não podiam estar mais de determinado tempo num sítio, não se podiam casar lá. O facto de virem à Universidade de Coimbra, porque eles tinham de vir todos à Universidade de Coimbra, fazia que se encontrassem pessoas que depois constituíam a elite do Brasil e que não teriam encontrado de outra forma. E, mais do que encontrarem-se, vinham para cá naquele período de boémia, com certeza, e em que muitos de nós formam a base da sua rede social para a vida durante os anos da universidade. Havia uma consciência plena dos reis portugueses entre os séculos XVIII e XIX de utilizar a Universidade de Coimbra como forma de manter a unidade do Império. Portanto, obrigar toda a gente a passar por Coimbra e ter só uma universidade (os espanhóis permitiram muitas universidades na sua zona). Aliás, Murilo de Carvalho fez uma análise com muita graça e foi ver quais foram as universidades do tempo colonial espanhol e depois comparou com os países atualmente existentes e a conclusão a que chegou é que há uma relação de quase um para um.

Onde há uma universidade há a génese de uma nação?

Naquela altura, obviamente, formou-se uma elite que se considerava diferente dos outros. É como o Sporting-Benfica, em que não há diferença nenhuma. Não havia diferença religiosa nem cultural, nada assim de muito fundamental, mas eram clubes diferentes. A universidade X formou o país Y e assim sucessivamente. O caso que ele refere é o do Simão Bolívar, que libertou os espanhóis uma zona imensa, foi desde a Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, Panamá, foram libertados por ele. Porque é que deu tanto país diferente? Porque as elites que depois formam a administração não sentiam a mesma coisa. Os brasileiros, como vieram todos para aqui, ganharam um sentido de pertença a algo de comum e quando depois da independência houve várias revoltas em vários pontos do Brasil eles sentiam que aquilo tinha que ver com eles e iam lá tratar daquilo. Naturalmente que a ida da corte para o Brasil também teve o seu papel, mas o Murilo de Carvalho diz que o que conta é o que está na cabeça das pessoas, é o sentimento que eles têm de pertencer ou não pertencer...

Isso, estando tratado pelos historiadores, também os alunos brasileiros chegam cá com essa noção?

Uns mais, outros menos. Mas o mito de Coimbra é muito intenso. É impossível estudar a história do Brasil sem ouvir falar da Universidade de Coimbra 50 ou cem vezes. A começar pelo José Bonifácio, o grande patriarca da independência, que foi aluno e professor aqui em Coimbra...

E chefe de uma guerrilha de estudantes de professores contra os invasores napoleónicos...

Contra os franceses, sim. Chefe não diria, mas um elemento importante. Ainda temos aí registos do batalhão académico em que ele aparece lá com um posto de capitão, acho. Ele não era o chefe, mas tinha um cargo.

Recentemente pronunciou-se contra a ideia de a Universidade de Coimbra ser uma fundação e manter a estrutura tradicional. Isso é o produto de uma reflexão que tem estado a fazer como reitor. Qual é a vantagem de manter um modelo tradicional?

Reconheço que é mais difícil algumas coisas serem feitas cá, mas não acho que seja impossível, é um desafio maior, apenas. Recuso muito a ideia de que o público é ineficiente e o privado é eficiente, que é uma ideia que nos estão a matraquear na cabeça e que recuso por completo. É evidente que o público tem os seus problemas, e muitos, mas o privado também tem os seus problemas, e muitos. A ideia simplista de que o público não funciona e o privado funciona... Ainda há dias estava a ler a propósito da morte do Pedro Queiroz Pereira, do enfrentamento com o Ricardo Salgado e o caso do colapso do BES e todas as confusões por trás disso mostram bem quão perfeito o privado é. Estar a partir do princípio de que nós ao apostar num serviço público temos de seguir as regras privadas é um princípio que recuso. Até porque para estarmos a cumprir uma missão pública - isto é uma universidade pública, sempre foi, desde 1290, com formatos jurídicos e organizacionais adaptados a cada época -, a nossa missão pública é educar e fornecer conhecimento à sociedade, pois temos de cumprir as regras públicas e estas passam por coisas simples como o mérito...

O público é meritocrata?

Tem de ser. As regras da meritocracia, da transparência, da justiça, da equidade do acesso, da não discriminação sob todos os pontos de vista é algo que está na matriz do direito público. O direito público é para garantir esses princípios, em particular a transparência, a justiça e a equidade. Ora, há aqui uma contradição quando queremos dizer que esses princípios que devem ser respeitados no mundo público devem ser executados no âmbito do direito privado. O direito privado não é feito para garantir estes princípios. É feito para permitir a expressão de interesses particulares legítimos mas que estão sujeitos a outras coisas que pode ser maximização do lucro, satisfação pessoal, mas que não são os princípios da coisa pública, daquilo que é comum. Estar a querer transformar instituições - aqui com os séculos de história isso é ainda mais relevante - e a fazê-las desistir do direito público porque afinal é uma porcaria... Vale mais deitar fora os professores de direito público e legisladores e poupar o dinheiro que lhes estamos a pagar, porque afinal não é preciso. Se se quer fazer para uma universidade com sete séculos, então porque é que não se faz para os outros setores da administração? Há aqui uma contradição profunda de princípio. Eu pus isso em discussão, porque achei que devia ser discutido pela comunidade, podíamos dizer que o governo...

Quando pôs em discussão era para pôr em discussão apenas em teoria. A sua posição não estava em dúvida?

Confesso que nunca achei muita graça à ideia mas estava completamente aberto a outros desfechos. Se o entendimento da comunidade fosse noutro sentido, eu executava-o e concretizava-o, embora sem grande entusiasmo. Havia aqui vários problemas: um deles é que o Estado, nas suas leis, faz alguma diferença entre as universidades em regime fundacional e as universidades em regime de direito público - e dá vantagem ao regime fundacional. Há uma vontade do legislador de dar vantagem às universidades fundacionais, que é um convite a que nos transformemos em universidades fundacionais. Tenho alguma dificuldade em perceber, confesso. Mas não estou aqui a defender o meu interesse pessoal, tenho a obrigação de defender o interesse da Universidade de Coimbra. Portanto, se o legislador dá vantagem às universidades fundacionais ou dá desvantagens às universidades de direito público que põem em causa o cumprimento ou dificultam em demasia a missão da UC, pois pronto... somos uma entidade pública e temos de obedecer ao legislador. Além disso, havia aqui o problema de se poder formar a ideia de que as universidades a sério, com mais energia, com mais espírito de futuro, são as fundacionais, e as com maior capacidade de se desenvolverem e afirmarem são as que ficam pobrezinhas no regime de direito público e isso é um problema reputacional relevante.

Mas aqui há uma convicção de que se devem manter leais à lógica pública?

A votação final no conselho geral e no senado foi unânime, não houve sequer vozes contra. Depois demorou tempo, houve muita discussão, foi ano e meio de discussão, não gosto de fazer estas coisas à pressa, é preciso que se reflita porque não é uma coisa simples. Por exemplo, se uma universidade fundacional quiser regressar ao regime público pode fazê-lo mas é complicado. Enfim... E tem custos a vários níveis, portanto entrar no regime fundacional não é uma coisa que se faça assim de supetão. Mas foi muito claro, no final não havia uma única pessoa a defender a entrada no regime fundacional. Criou-se um consenso e foi uma decisão pacífica.

Como reage à saída da Universidade de Coimbra do top500 do ranking de Xangai?

A Universidade de Coimbra está solidamente nas 500 melhores universidades do mundo nos grandes rankings internacionais. Apenas no ranking de Xangai ficámos este ano ligeiramente abaixo desse patamar, por causa de termos publicado um pouco menos em duas revistas às quais esse ranking atribui um peso que é, na minha opinião, manifestamente desproporcionado. Na produção científica global continuamos a subir bem, como um dos critérios do ranking de Xangai também mostra, pois estamos este ano mais perto do que nunca da universidade de topo desse ranking, a Universidade de Harvard. A estratégia de longo prazo de melhoria da qualidade da Universidade de Coimbra está surtir efeito, mas é necessário dar-lhe tempo. As mudanças verdadeiras demoram o tempo de uma geração. Mudanças de resultados imediatos só na cosmética.

É um homem de ação e de convicções. Um reitor de Coimbra é uma voz que quando fala tem impacto fora da comunidade académica? Alguma vez sentiu que quem mexe na política quer ouvir a sua opinião?

Confesso que nunca me virei muito para esse lado. Reconheço que o reitor de Coimbra tem um peso acrescido, embora às vezes sinta isso ao contrário, ou seja, a responsabilidade de, falando na qualidade de reitor da Universidade de Coimbra, saber o que estou a dizer para não dizer coisas sem reflexão suficiente.

Sente a responsabilidade do cargo...

Uma pessoa tem de pensar bem para não deslustrar a linhagem. E é verdade que o reitor de Coimbra tem tipicamente um bocadinho mais de peso mas também é verdade que uma das tradições de Coimbra é a independência dos reitores, que sempre dizem aquilo que pensam, espera-se que sempre de forma muito refletida e solidamente baseada. Mas como são em regra muito independentes, como é o meu caso, nem sempre dizem aquilo que os poderes instalados gostariam de ouvir, por isso a sua influência é alguma, mas depende de algumas circunstâncias. A minha preocupação essencial quando falo em nome da Universidade de Coimbra é fazê-lo com algo que esteja de facto bem refletido e bem fundamentado. Se mantiver essa qualidade de reflexão, umas vezes terá mais impacto, outras menos impacto, mas será sempre defensável em qualquer ambiente.

Imagina-se a ter uma vida política para que as suas ideias chegassem a um público mais amplo?

Estou a seis meses de terminar o segundo mandato - e sou grande defensor da limitação de mandatos -, saio com a sensação de dever cumprido... Mas gosto de investigar e de ensinar e há muitos anos que não o faço. Tenho saudades de voltar a falar com estudantes e aprender com eles...

Portanto, a sua ideia é voltar a ensinar e um dia lá vai trabalhar a terra quando for bem velhinho?

Não será só isso, porque não tenho propriamente uma lista mas tenho uma ideia das coisas que quero fazer. Não sei quais é que vou conseguir concretizar, mas não vou de maneira nenhuma ficar parado. Não vou ficar sentado a olhar para a televisão, mas, de facto, carreira política não é algo que esteja no meu horizonte.

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