Andaluzia: o laboratório do Vox
A região mais pobre de Espanha foi o palco perfeito no momento perfeito para o partido criado em finais de 2013 por militantes desencantados com a corrupção no PP e a inação diante dos independentismos. E foi o ponto de partida para a "reconquista". (Texto originalmente publicado a 27 de abril de 2019)
As sondagens davam-lhe 6,8% das intenções de voto e na noite eleitoral conquistou 11%. A 2 de dezembro de 2018, a extrema-direita do Vox fazia história ao entrar para o Parlamento andaluz com 12 deputados (em 109). "A verdade é que foi muito surpreendente", contou ao DN o subdiretor do jornal Diario de Sevilla, Juan Manuel Marqués Perales, lembrando que, apesar de o Partido Popular (PP) não ser residual nesta comunidade autónoma, os socialistas governavam ali desde 1982. Um engano? "Fala-se muito que as pessoas não sabiam em que estavam a votar, mas acho que nestas eleições gerais, pelo menos na Andaluzia, o Vox vai ter um resultado semelhante. As pessoas não estão arrependidas", explicou. E uma coisa é certa: o partido liderado por Santiago Abascal vai chegar neste domingo ao Congresso espanhol.
O Vox garantiu na Andaluzia os votos necessários para afastar os socialistas de Susana Díaz, ao dar os seus votos no Parlamento à coligação liderada por Juan Manuel Moreno, do PP, com Juan Marín, do Ciudadanos, como seu número dois. Um "tripartido" que poderá repetir-se nos mesmos moldes no governo espanhol, se a direita conseguir uma maioria. "O Vox ainda não condicionou o governo andaluz. Ainda não há nada que se possa dizer: isto foi devido ao Vox", referiu Marqués Perales. "Mas a 1 de junho vota-se no Orçamento e acho que vai pedir a derrogação da lei da memória histórica e uma modificação da lei andaluza de violência de género como condição para o aprovar", acrescentou. Será essa a primeira prova de fogo do tripartido.
"A Andaluzia converteu-se no laboratório eleitoral do Vox", explicou Alicia de Navascués, uma das líderes do coletivo feminista Mujeres 24H, de Huelva, defendendo que esta região não é mais conservadora do que outras. "Foi o primeiro cenário no qual se convocaram eleições no meio de um debate territorial que afeta todo o Estado e que fez disparar a polarização na sociedade espanhola", acrescentou, lembrando que a extrema-direita sempre existiu mas ninguém esperava que pudesse tornar-se chave para a mudança do governo.
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O debate territorial de que falava refere-se à Catalunha, que o jornalista também considera o "gatilho" para o Vox. "No fundo, os seus eleitores acham que o ex-primeiro-ministro Mariano Rajoy não atuou com contundência suficiente. Disse que não ia haver referendo e no final houve, referiu, lembrando os acontecimentos de 1 de outubro de 2017. O cansaço com a governação socialista, marcada também por casos de corrupção na região, em conjunto com o que consideraram laxismo do executivo do PP, levaram os eleitores a procurar a alternativa mais extrema que havia.
A região mais pobre de Espanha (e uma das mais pobres da Europa) acabou por ser o palco perfeito no momento perfeito para um partido que nascera em finais de 2013 , formado por militantes desencantados com os escândalos de corrupção no PP e a política que acreditam ir contra a "unidade de Espanha", que até então nunca tinha sequer alcançado 2% de votos em qualquer eleição. E o ponto de partida para a "reconquista" de Espanha, proclamada por Abascal, de 43 anos.
Crise, desinformação, migrantes
Mas porque votou esta região no Vox? "A crise ajudou um pouco, a desinformação e a manipulação fizeram o resto", explicou José Manuel Alvarez, da Plataforma de Afetados pelas Hipotecas (PAH) de Sevilha, que tem trabalhado para evitar que as famílias fiquem na rua, sem casa, por não conseguirem pagar os empréstimos que pediram aos bancos. "A crise ainda não passou. Quando dizem que passou, mentem. Temos quase 170 despejos por dia em Espanha. Deixou-se de falar disso, porque as pessoas já estão acostumadas. Ao princípio era algo que chocava", referiu. A crise afetou em especial a Andaluzia, apontada sempre como uma das regiões mais pobres de Espanha, porque o setor da construção é um dos mais importantes.
A situação económica melhorou um pouco, mas os serviços públicos continuam deteriorados. O desemprego está mal: 21%. "A taxa é sempre quase mais dez pontos percentuais do que o resto de Espanha. É assim há 40 anos", explicou Marqués Perales. O desemprego ronda os 14% no país. O Vox não tem propriamente um programa destinado a acabar com a crise, mas propunha medidas contra a imigração e os refugiados, erradamente vistos como culpados de alguns dos problemas da região. "É um fenómeno muito estranho, porque não têm um programa económico. Na realidade sabem que não vão chegar ao poder, apenas que vão poder decidir quem é o poder", disse o membro do PAH Sevilha.
Alvarez admite que ficou surpreendido por descobrir entre os amigos quem tivesse votado no partido de extrema-direita. "Não se falava disso antes. Era um franquismo que estava um pouco escondido", admitiu. O subdiretor do jornal da capital andaluza fala do "franquismo sociológico", dos "nostálgicos do tempo de Franco" que não querem propriamente voltar a ter um regime assim mas têm saudades desse tempo. Mas não só. "O Vox também conquistou muitos votos nos municípios com mais problemas de migração, apesar de a imigração não ser um problema na Andaluzia. E, no mundo rural, dos entusiastas da caça e dos touros e que acham que estão ameaçados", contou Marqués Perales.
"Votou-se com o medo", referiu também Alvarez, falando no "ódio aos estrangeiros, aos imigrantes, aos refugiados". Com as imagens de barcos de migrantes que cruzam o estreito a desembarcar nas praias andaluzas ainda nas cabeças de muitos eleitores e os números a mostrar um aumento das entradas ilegais através da rota espanhola, o Vox aproveitou para defende a "deportação dos ilegais para os seus países de origem", mas também dos imigrantes legais que tenham cometido crimes graves. Querem que a imigração seja feita através de quotas consoante as necessidades da economia espanhola, privilegiando-se nacionalidades que partilham idioma e importantes laços de amizade com Espanha.
"Na Andaluzia a imigração ilegal não é um problema. Recolhe-se os pobres que cruzam o estreito, dá-se-lhes algo, e normalmente eles seguem para o norte de Espanha ou da Europa. Não há bolsas de imigração muito grandes", refere o jornalista, admitindo que o Vox está a tentar empreender medidas na Andaluzia contra os migrantes, mas essa política depende do governo de Espanha. "Têm muito pouca margem de manobra." Ainda assim, o Vox quer que a Junta da Andaluzia entregue à Polícia Nacional e à Guardia Civil os dados dos cerca de 35 mil imigrantes sem papéis na região aos quais terá prestado assistência. A Junta diz que dará se as autoridades pedirem.
Impacto do Vox
Apesar de não ter tido impacto ainda a nível governativo na Andaluzia - a diminuição dos impostos também estava no programa do PP e do Ciudadanos na região - isso não significa que o Vox não tenha já tido um impacto indireto, não só na Andaluzia mas em toda a Espanha. "Na luta para obter votos dentro do mesmo perfil eleitoral conservador impulsionado pelo nacionalismo espanholista, PP e Ciudadanos extremaram as suas posturas para a direita, já não só no tema territorial mas também da migração e do feminismo, ao ritmo imposto pelas ocorrências retrógradas do Vox", disse Alicia de Navascués.
"Os seus programas são uma regressão para os direitos e as liberdades das mulheres", acrescentou, não só ao nível da ideia de substituir o conceito de "violência de género" pelo de violência intrafamiliar, "que nega a realidade incontestável da especial virulência das agressões que as mulheres sofrem", como na aposta numa educação que está "nas mãos de entidades religiosas que transmitem valores sexistas e homófonos" e "uma educação segregada por sexos". Ao olhar para a possibilidade de um "tripartido" de direita, Alicia mostrou ainda mais medo. "Temos grande receio de que possa regular de forma regressiva contra os direitos e as liberdades das mulheres em temas como o aborto, as barrigas de aluguer, a prostituição ou a identidade sexual", referiu.
"A direita radicalizou-se muito. Os que eram de centro-direita radicalizaram-se e estão a ter um discurso parecido. Um discurso que na realidade não o é, são frases lançadas nas redes sociais sem um programa sério", referiu Alvarez. "São pessoas extremistas no seu discurso, no verbal, mas nas ruas não se nota, não há tensão. Não é um grupo de extrema-direita como noutros países da Europa. Não é um grupo violento", disse Marqués Perales.
OUTRAS REGIÕES A OBSERVAR DE PERTO
Catalunha
A situação nesta região autonómica é muito específica, dada a luta dos últimos anos entre independentistas catalães e o Estado central espanhol por causa dos referendos ilegais e da declaração ilegal de uma república na Catalunha. Numa sondagem recente da GAD3, os socialistas surgem à frente na Catalunha, seguidos dos independentistas da Esquerda Republicana da Catalunha. O seu líder, Oriol Junqueras, é um dos presos que estão a ser julgados por rebelião por causa do referendo ilegal de 1 de outubro de 2017. Porém, se a ERC se juntar ao Junts per Catalunya tem 17 deputados, tal como PSOE. A direita, dividida, consegue poucos eleitos: Ciudadanos 5, PP 2 e Vox 2. Os independentistas apoiaram Sánchez na moção de censura contra Rajoy mas chumbaram o seu Orçamento. Resta saber se voltará a precisar do apoio deles mais uma vez e se o pedirá.
País Basco
Nesta região autonómica, em que durante anos a questão dominante era o terrorismo da organização basca ETA, o Partido Nacionalista Basco (PNV) parece resistir aos socialistas. Mas também existe a hipótese de empatar com eles. Nas conjugações de cenários pós-eleitorais, algumas sondagens dão maioria absoluta a uma aliança entre PSOE, Unidas Podemos e PNV.
Comunidade Valenciana
Este pode ser um dos casos em que o prejuízo causado ao PP de Casado pela divisão da direita ameaça ser flagrante. O PP pode assim ver-se derrotado após três décadas no poder nesta região autonómica mediterrânica. Se em 2016 o PP elegeu aqui 13 deputados, agora pode só eleger nove. O PSOE pode passar de seis para 12. A Unidas Podemos de Iglesias desce de nove deputados para três, o Ciudadanos de Rivera desce de cinco para quatro e o Vox entra logo a eleger três. Também nas Baleares o PSOE ameaça vencer o PP. E em Ceuta o deputado a eleger pode ir para o Vox.