O decisivo voto evangélico
Estamos a três dias do primeiro debate presidencial e a cinco semanas da eleição mais importante da história recente dos EUA. O tom da campanha está definitivamente marcado pela ameaça de uma transição caótica caso Trump perca, pela pressa em preencher o lugar no Supremo Tribunal por um conservador, e por tiradas abjetas sobre Joe Biden ou jornalistas agredidos pela polícia. Esta é a moldura que enquadra a campanha republicana, limita a construção de uma construtiva alternativa democrata e antecipa um par de meses a ferro e fogo.
A forma como o circo está montado para lidar com uma eleição que passou de previsível a disputada, perante o choque brutal provocado pela pandemia (200 mil mortos), está já a criar uma pressão tremenda à democracia americana, seja na logística eleitoral (tão complexa como frágil), na qualidade do debate político (num nível assustador), na pertinência legislativa (repetidamente bloqueada) ou nas imprescindíveis relações entre órgãos de soberania (absolutamente disfuncionais). Esta pressão, autoimposta diga-se, tem uma incidência evidente sobre o funcionamento da democracia, mas também sobre a coesão social e, acima de tudo, sobre a saúde da Constituição. Qualquer que seja o resultado das presidenciais, todos estes sintomas continuarão a assumir protagonismo político. Contudo, parece acertado dizer que a reeleição de Trump oficializará uma crise constitucional agravada, quanto mais não seja pelo facto de o atual presidente não ter sequer em conta o princípio da separação de poderes como eixo fundamental da democracia americana. Trump é um autoritário numa democracia sob pressão, procurando mudá-la por dentro, enfraquecendo as suas instituições, começando no partido republicano e acabando na Casa Branca. No fundo, procura desinstitucionalizar a política para fazer emergir o narcisismo autoritário que o caracteriza.
Mas para cumprir esta estratégia, tão perigosa para os EUA como para as democracias europeias umbilicalmente ligadas, a reeleição é tudo. E para que isso aconteça não há grupo de eleitores mais importante do que os evangélicos brancos, 26% do eleitorado total em 2016, 85% dele ao lado de Trump. Se a vitória em 2016 se deveu a uma plataforma em crescendo que juntou raivosos anti-Clinton, independentes descontentes e republicanos clássicos convertidos ao trumpismo, a verdade é que não teria sido possível surpreender o mundo sem o eleitorado evangélico, praticamente metade do que esteve com Trump. Hoje, o raciocínio é o mesmo: são o grupo mais leal e a partir do qual se expande a plataforma eleitoral trumpista.
Para o garantir não é sequer preciso que Trump tenha tido um comportamento moral convergente com aquele ideário conservador, coisa que como sabemos nunca teve. Os três casamentos, a sua passagem pelo partido democrata, os reality shows ou a atividade financeira especulativa não tiraram nem tiram o sono aos "eleitores dos valores", cujas sondagens apontam para 82% a repetirem o voto em 2020. O seu raciocínio é pragmático: Trump foi e continua a ser o único candidato capaz de reverter a legislação prioritária (aborto) e travar a agenda progressista nos costumes, imigração e educação. O anúncio recente da criação de uma comissão para promover a "educação patriótica" nas escolas também encaixa nessa lógica. Tal como a pressa em preencher a vaga no Supremo, que procura tranquilizar ideologicamente esse eleitorado para a batalha legislativa, mas igualmente passar a ideia de que, caso a eleição seja decidida juridicamente, existe uma blindagem favorável no Supremo que descansa o evangélico mais inquieto. Não sendo, por isso, um ícone do conservadorismo bíblico (Mike Pence cumpre melhor esse papel), Trump é instrumental à agenda desse eleitorado. Ao contrário de outros presidentes republicanos, mais próximos desse modelo clássico, a relação com Trump é mais transacional do que moralmente defensável. Por isso todos os condimentos para fortalecer essa ligação contam. Sobretudo se pensarmos na sequência excecionalista com que os evangélicos americanos se definem: fundadores, exilados, vítimas e salvadores.
É aqui que entra Israel, da mudança da embaixada para Jerusalém aos recentes acordos com os Emirados e o Bahrein, mesmo tendo estes relações com Telavive anteriores aos pactos assinados. Não foi por acaso que os líderes evangélicos americanos exultaram com a mediação da Casa Branca: são hoje eleitores mais sensíveis a qualquer iniciativa sobre Israel do que propriamente os eleitores judaicos, que praticamente migraram para o progressismo democrata e, dizem as sondagens, estão mais preocupados com os temas clássicos das campanhas americanas, como a economia, a saúde e o emprego. Era por isso importante criar a ilusão de mais um feito diplomático que projeta Trump como um mago da paz, mas acima de tudo protetor de Israel. Há quem peça mesmo um Nobel, repetindo o peditório aquando da extraordinária campanha diplomática na Coreia do Norte que, como sabemos, desnuclearizou o país, normalizou as relações com vizinhos e trouxe a prosperidade e os direitos humanos às prioridades do regime. Valia a pena não cairmos novamente na ingenuidade.
A primeira impressão é a de que a rede de acomodação a Israel está em expansão no Médio Oriente, apesar da importância limitada destas monarquias do Golfo na dinâmica de poder da região e de nenhuma ser, objetivamente, uma ameaça a Israel. A segunda diz que a passada mediadora encarreira definitivamente o processo de paz entre israelitas e palestinianos. Vale a pena lembrar como reagiram o Hamas ou a Fatah aos acordos e de como isto inviabiliza negociações ambiciosas. A terceira, não escrita mas concreta, aponta o verdadeiro alvo dos acordos para o isolamento acelerado do Irão, fazendo dele um pária regional, impedindo assim o seu programa nuclear. Ora, não há estabilidade no Médio Oriente, quanto mais uma paz duradoura, sem a integração do Irão nas negociações. Além disso, isolá-lo só acicata o seu interesse em obter capacidade nuclear para sobreviver, deixando-o sem qualquer monitorização exterior, como aliás previa o acordo de 2015.
Trump não tem qualquer interesse, nem engenho, em articular uma política externa ativa para a estabilização do Médio Oriente, para a coesão da Europa ou para o desanuviamento das tensões latentes no sudeste asiático. O seu único objetivo é transformar ficções de sucesso diplomático, qualquer que seja o tabuleiro, em ganhos rápidos na frente eleitoral interna. Não há qualquer hipótese de reeleição sem a mobilização da plataforma evangélica. É tão simples como isto.
Investigador universitário