Sociedade
25 outubro 2021 às 22h33

Exército confirma que excluiu cânticos pelo "baixo efeito das ações de voz"

Depois de ter alegado que não tinha havido qualquer proibição do cântico dos paraquedistas, o Exército vem agora afirmar que a medida teve "em consideração as restrições em vigor decorrentes da pandemia" aplicadas igualmente noutros eventos que decorreram em 2021

O Exército confirma que excluiu os cânticos do desfile comemorativo do dia do Ramo por entender que devido às restrições da pandemia e ao baixo número de militares envolvidos as "ações de voz" teriam "baixo efeito". O DN tinha colocado várias questões durante o dia de ontem, mas a resposta só chegou esta manhã.

"Em 2021, os vários eventos realizados no âmbito do programa de comemorações do Dia do Exército, tiveram em consideração as restrições em vigor decorrentes da pandemia, e a Cerimónia Militar do passado dia 24 de outubro, não foi exceção.
Ou seja, considerando o contexto e a reduzida dimensão das forças militares envolvidas no desfile, concluiu-se pelo baixo efeito de ações de voz em pequenos efetivos da mesma natureza, portadores de máscaras de proteção e enquadrados por música de banda militar, pelo que aquelas, seja de que natureza, não foram, desde logo, previstas na fase de planeamento e, consequentemente, na fase do desfile", disse ao DN o gabinete do Chefe de Estado-Maior do Exército (CEME), tenente-general Nunes Fonseca.

Como foi notório o "efeito" acabou por ser muito maior porque foi entoado por centenas de militares que assistiam à cerimónia.

Ao que o DN apurou, a ordem que levou à indignação de milhares de paraquedistas, porque o pelotão que desfilou não podia entoar o emblemático cântico "Pátria Mãe", terá sido dada verbalmente pelo próprio CEME, reconduzido este mês no cargo pelo Presidente da República. O Exército nega esta ordem do CEME.

De acordo com duas altas patentes, uma no ativo outra na reforma, que acompanham a situação, houve uma primeira diretiva sobre a comemoração do Dia do Exército, assinada pelo comandante das Forças Terrestres , general Martins Pereira (ex-chefe de gabinete do ministro da Defesa Azeredo Lopes, que ficou conhecido no caso do roubo das armas em Tancos), depois replicada pelas várias unidades.

A diretiva terá 15 páginas e indica se vão manter as medidas de proteção sanitária em vigor e a decisão de assegurar que toda as atividades decorrem de acordo com essas normas, não havendo nada especificamente escrito quanto aos cânticos.

Segundo ainda estas fontes, que pediram anonimato, é na diretiva da Brigada de Reação Rápida (BRR), onde estão integradas as unidades de paraquedistas, assinada pelo brigadeiro-general Gonçalves Soares, "que é referido um telefonema do chefe de gabinete do CEME no qual reafirma a decisão do Chefe de não haver cânticos durante a cerimónia".

O DN não teve acesso a este documento - impedimento que as fontes justificaram por ser reservado e a sua divulgação estar sujeita a sanções - cujo conteúdo resultou num protesto histórico pelo facto de ter sido a primeira vez que um Chefe de Estado-Maior do Exército foi vaiado por militares.

Os assobios e vaias acabaram por atingir também o ministro da Defesa, cujo gabinete, questionado sobre o DN sobre a sua posição quanto à condução do processo pelo CEME, remete para o Exército.

Contactada pela LUSA domingo, no dia dos protestos, a porta-voz do Exército tinha afirmado desconhecer a proibição ou qualquer ordem interna nesse sentido.

No entanto, durante todo o fim de semana as redes sociais tinham sido incendiadas por vários grupos públicos e privados ligados aos militares a reagir à referida proibição e a mobilizar os antigos paraquedistas para irem à cerimónia , o que teria permitido ao Exército travar os protestos esclarecendo que não era verdade - o que não fez.

Por outro lado, a declaração da porta-voz do Exército também não batia certo com a de Marcelo Rebelo de Sousa, que veio dizer que "não houve proibição nenhuma, continuará a haver os cânticos, o que houve foi por razões meramente de medida sanitária nesta cerimónia dada uma orientação para que não existisse". Só depois de instalada a polémica o Exército esclareceu e acertou a resposta com Marcelo.

O facto é que os paraquedistas partiram para Aveiro mentalizados e inconformados com essa ordem, fosse ela por que motivo fosse e nunca foi desmentida nem clarificada. Também os comandos se viram proibidos de entoar o seu famoso grito guerreiro "mama sume".

Mas como se chegou a este ponto de rutura entre estas tropa de elite que Portugal envia para as missões mais arriscadas e o Exército?

Note-se que ainda esta segunda-feira o Estado-Maior-General das Forças Armadas anunciava que a força nacional destacada na República Centro Africana, "maioritariamente constituída por paraquedistas" tinha sido distinguida com uma medalha da ONU pelos serviços prestados naquele país.

"Há antecedentes longínquos, intermédios, recentes e os últimos que foram a luz verde para estes protestos espontâneos", sublinha coronel Miguel Machado, fundador da Revista e do blogue militar "Operacional".

Recorda que as coisas começaram a correr mal desde a transferência das tropas paraquedistas da Força Aérea para o Exército, em 1994, "sem ter em conta as razões do seu sucesso como organização militar"; depois a "desarticulação", em 2006, da organização do comando da Brigada Aerotransportada, "destruindo a já limitada autonomia e retirando um comando de oficial-general, fundamental no Exército para se ser ouvido; em 2019 foi a polémica das boinas, com os paraquedistas da BRR a terem de usar boina preta (comum a todo o Exército) em vez da tradicional boina verde das unidades.

"Foi-se criando a perceção nos antigos paraquedistas militares que havia a intenção de destruir a sua identidade, a sua história comum. Quem está no ativo não se pode expressar publicamente, os que estão "fora" sentem que devem assumir essa indignação. Cresceu muito esse sentimento a partir das medidas de 2019/2020 que atingiram o seu símbolo maior e mais querido, a boina verde".

Antigo comandante de paraquedistas e comandos, o presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, brigadeiro-general Duarte Costa, usou uma metáfora na sua página de Facebook, onde deixa implícito a sua crítica.

Num texto que intitula "Gosto mais de painéis de azulejos do que de "melting pots"", explica porque é importante a diferença e identidades próprias para benefício do todo.

"Em todas as organizações, a questão da identidade tem por base a consciência e o importante valor da pertença e exprime a crença na existência de certas características comuns numa comunidade de que queremos fazer parte. Daí que se possa afirmar que a identidade pressupõe a vontade das pessoas em continuarem juntas ou ligadas a um ideal, a uma tradição e uma simbologia comum", assinala.

"Da mesma forma, uma identidade nacional é uma alma, uma família espiritual e resulta de um passado, de recordações, de sacrifícios, de glórias, com frequência de batalhas comuns. É um princípio espiritual constituído por um passado e um presente, pelo possuir de um conjunto rico de tradições gerais e particulares que se agregam pelo respeito dos grupos sociais que coabitam na expectativa de que juntos valemos mais do que separados. É o consentimento atual e geral de vivermos juntos com essas mesmas tradições. É ter glórias passadas comuns, ter feito grandes obras no passado e continuar a querer a fazê-las no presente e no futuro. E daí ser tão importante respeitar as tradições, pois mais do que separarem, cimentam a riqueza de uma heterogeneidade cultural de quem continua a querer viver em conjunto", acrescenta.

"Tal como o sal, o azeite e o vinagre, que isolados são apenas mais um condimento, em conjunto, transformam-se num tempero essencial. (...) Tal como num painel de azulejos, onde individualizando cada azulejo com o seu valor, integramos todos na mesma obra de arte, a beleza e o valor do conjunto resultam da essencial diferença de cada entidade em particular", conclui.

E porque é tão importante este cântico para os paraquedistas ou o "mama sume" para os comandos? Estes cânticos, são vários, são entoados desde o primeiro dia da recruta, sempre no final de cada um dos dois treinos diários. Faz parte da formação para fomentar o espírito de grupo e camaradagem.

A RCA veio ativar esse espírito de novo, pois os paraquedistas voltaram a estar em missão de combate, o que, tirando algumas exceções na missão no Afeganistão, não acontecia com tanta intensidade desde a guerra colonial.

"Somos uma tropa com provas dadas, temos a nossa tradição e orgulho, uma preparação especial e somos capazes de muitos sacrifícios para conseguirmos levar a cabo a nossa missão arriscada", defende o General Avelar de Sousa, da União Portuguesa dos Paraquedistas, que congrega várias associações, e comandou a antiga Brigada Aerotransportada.

"Se nos retiram os símbolos, as práticas e as tradições que alimentam a nossa coesão estão a enfraquecer uma das melhores tropas especiais do país. E porquê? Nem custa dinheiro. É esta prática que alimenta o espírito que permite pedir a qualquer um destes militares que cumpra uma missão sabendo que pode morrer", sublinha.

Explica que "o espírito de corpo e a coragem conseguem-se pelo cultivo de símbolos como os cânticos. Para uma tropa de combate a maior importância que o militar atribui é o conceito em que ele é tido pelos camaradas. A pátria está a olhar para ele, mas é um conceito abstrato, é ao camarada que está ali ao lado que tem de responder. Esse estado de espírito consegue-se pelo cultivo de determinados pequenas coisas que os distinguem. Dizer-lhes que não podem deixar a boina verde ficar mal é levado muito a sério e dão a vida por ela".

Avelar de Sousa não atribuí responsabilidade pelo que aconteceu ao ministro João Gomes Cravinho e atira contra Nunes Fonseca: "é um assunto exclusivamente militar e um exemplo desastroso de condução das tropas", afiança.

Alguns dos paraquedistas que desfilaram acabaram por entoar o "Pátria Mãe" acompanhando as centenas de militares, que já não estão no ativo, que assistiam à cerimónia. Soube o DN que podem ser sujeitos a sanções disciplinares, mas o Exército não respondeu à pergunta sobre se tinha instaurado algum processo.

Entretanto, o Exército contactou o DN pelas 19h30 desta terça-feira para dizer que "não é verdade que o CEME tenha dado qualquer uma ordem verbal para proibir os cânticos, ao contrário do que está na notícia".

O DN tinha na segunda-feira pedido ao gabinete do CEME que esclarecesse o conteúdo da diretiva referida neste texto. "De acordo com informações que obtivemos, existe uma diretiva assinada pelo comandante da BRR (na sequência de uma outra sobre as comemorações do dia do Exército subscrita pelo sr. Tenente General Martins Pereira) onde é referido um telefonema do sr. Chefe de Gabinente do Sr. CEME reafirmando a decisão de não haver cânticos dos paraquedistas no desfile. Podem explicar-me o contexto deste documento, para que não esteja só a ter por base informação parcelar?", foi perguntado.

Atualizado às 10h com a resposta do Exército

Atualizado de novo às 22h com a nova informação do Exército